Manuel da Costa Andrade
Sessão solene de abertura da Conferência Comemorativa do 35º Aniversário do Tribunal Constitucional
24 de maio de 2018
Centro Cultural de Belém
Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República em representação do Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhora Ministra da Justiça em representação do Senhor Primeiro‑Ministro
Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em representação do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, Conselho Constitucional e Tribunais Constitucionais da Guiné-Bissau, Moçambique, Angola e Cabo Verde
Senhora Vice-Presidente do Tribunal Constitucional de Itália
Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares
Senhora Procuradora-Geral da República
Senhor Chefe do Estado-Maior da Força Aérea em representação do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas
Senhora Provedora da Justiça
Senhores Representantes da República para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira
Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional
Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados
Ilustres Conferencistas
Minhas Senhoras e
Meus Senhores
I
1. Propomo-nos com esta Conferência, comemorativa dos 35 anos do Tribunal Constitucional, promover uma reflexão sobre alguns temas nucleares do Direito e da Justiça Constitucionais. Contando com a lição de nomes cimeiros da teoria e da doutrina, nacionais e estrangeiros, todos referências obrigatórias. Que, além de emprestarem ao debate clarificação metodológica e modelos teórico-doutrinais de enquadramento e superação, nos confirmam no propósito da abertura e renúncia a uma postura fechada e paroquial.
Permitam que me detenha mais na circunstância do que na substância, já que a esta votaremos os trabalhos de hoje e amanhã. Abrindo, com uma concessão à esfera da emoção, para dar curso a intensos sentimentos de júbilo e de gratidão.
Começarei pela confissão das dívidas e pela tentativa da sua remição com protestos de agradecimento.
O primeiro vai para V. Exa, Senhor Presidente da República. Por estar aqui, portador da dignitas suprema da República. O que, sendo muito, está longe de ser, para nós, tudo. Por mais diretamente atinente à circunstância, deixarei um sublinhado à teia de vínculos que ligam o Tribunal ao pensamento e à ação de V. Exa, duas memórias com momentos significativos de comunicabilidade.
Por ser o eminente professor de gerações de juristas: apontando valores, infundindo princípios, proporcionando categorias de enquadramento epistémico e normativo. Como um dos expoentes da cultura jurídico-constitucional de que este Tribunal é beneficiário.
Por pertencer ao núcleo daqueles que, na idade heroica da afirmação da democracia, protagonizaram o processo que levaria à aprovação da Constituição de 1976, em cuja letra e espírito deixou, como Constituinte, marcas inconfundíveis.
Por ter sustentado no Parlamento a proposta de Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, como arquiteto de um subtil e decisivo momento de legiferação, que resultou na pauta em que o Tribunal inscreve os seus andamentos.
Agradecemos também ao Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República em representação do Senhor Presidente, por si e pela instituição que representa, sede da consciência dos valores democráticos, depositária, em exclusivo e permanência, do poder constituinte e autora principal das normas cuja solvabilidade constitucional cabe sindicar. Também por manter com o Tribunal um relacionamento sem mácula.
Um agradecimento igualmente sentido para a presença do Governo, na pessoa da Senhora Ministra da Justiça, também ele interlocutor no diálogo sobre a constitucionalidade e um interlocutor de inexcedível abertura democrática. É também com gratidão que registamos a presença do Senhor Vice-Presidente do STJ em representação do Senhor Presidente e dos Senhores Presidentes do, STA e do Tribunal de Contas, que têm partilhado connosco a tarefa comum de realizar a Justiça e dizer o Direito.
2. Numa peregrinação de memória e gratidão, é forçoso visitar aqueles que fizeram a história do Tribunal. Juristas com domínio das leges artis da heurística e hermenêutica de normas, que liam à luz da sua projeção histórico-cultural, no respeito pelas constantes antropológicas da aventura humana. E que aplicavam com sabedoria às condições contingentes e irrepetíveis dos casos segregados pela vida. Juristas de muitos credos que transpuseram os umbrais do Tribunal em “fusão horizôntica” de compromisso com o contrato social subjacente à Constituição. Muitos continuam felizmente entre nós; outros partiram para o mundo imperecível do espírito. Partilhamos com os primeiros um abraço fraterno e curvamo-nos perante a memória dos segundos. Na certeza de que a divisória é muito ténue: todos continuam presentes no nosso quotidiano, sendo fácil desvelar os seus rostos e vozes nos textos e intertextos dos nossos pronunciamentos.
Nesta evocação vão coenvolvidos os membros da Comissão Constitucional e do Conselho da Revolução. Que iniciando a jornada num quase-deserto, vazio de fontes e de arrimos, ergueram sobre alicerces sólidos uma cultura e um paradigma de julgamento da constitucionalidade das normas. A eles ficou Portugal a dever uma rutura no modo de superação dos conflitos. Que até ali obedecia preferentemente à razão do volume do protesto e da violência das máscaras, trunfos que garantiam o triunfo e a legitimação, à custa do silenciamento do outro. Com a Comissão e o Conselho da Revolução, os trunfos passaram a estar nas razões da razão e do direito, tendo o vencimento de uns como reverso o reconhecimento do outro, na intocada legitimidade para continuar a ser e a procurar novas oportunidades de sucesso democrático. Como se, tantos séculos depois, se renovasse o milagre das Euménides, quando a resposta aos conflitos que pairavam sobre a casa dos Átridas é retirada ao terror sangrento das Erínias, e confiada a um Tribunal de homens, para decidir sob a serena majestade da lei.
3. Agora, o júbilo. Por celebrar 35 anos, densificados de vicissitudes, a ampliar a medida do tempo fenomenológica e “verdadeiramente” vivenciado, ao longo do qual o Tribunal foi deixando um rasto de sucesso.
Logo pela excelência do serviço prestado ao Estado de Direito, com cujos valores e princípios Portugal assumiu um compromisso existencial, tão autêntico como unívoco. E tanto pela tempestividade como pelo acerto das soluções. Na direção dos direitos fundamentais, polarizados em torno da dignidade humana e da garantia da prossecução do projeto existencial de cada um, em que se atualiza a expressão autorresponsável e insindicável da autonomia. Na direção do regular fluir da sociedade ou no desempenho dos seus subsistemas: cultura, justiça, ciência, educação, economia, artes, religião, comunicação, desporto, administração pública, autarquias e autonomias regionais. Ou na direção do funcionamento, sem perturbações ilegítimas, do sistema político democrático.
E sem esquecer a qualidade dos juízos, vistos à transparência das mais decantadas realizações do pensamento dogmático. Em consonância com um dos marcadores do modo de ser e operar do Tribunal, vigilantemente atento à elaboração prudencial dos demais tribunais e à especulação doutrinária da Academia. A cuja porta batemos, fazendo-nos eco da interrogação do Profeta, custos, quid de nocte? (“Sentinela, o que nos dizes da noite e do que está para além da noite?”). Bem se justificando nesta sede um tributo sublinhado aos autores dos grandes comentários da Constituição portuguesa, – como o dos professores de Coimbra (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA) ou o dos professores da Universidade Católica (liderado por JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS) tantas vezes a irromperem de viva voz no nosso discurso. Mesmo quando tal não se dá, não deixam de estar presentes, oferecendo tópicos incontornáveis ao “círculo hermenêutico”, assegurando gramática dogmática à construção, aplanando os terrenos da progressão.
Nossos interlocutores são também os autores estrangeiros, onde quer que tenham cátedra ou administrem justiça. Privilegiando compreensivelmente as Universidades e Tribunais europeus, nacionais e supranacionais, como aqueles a que cabe dizer o Direito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da União Europeia. Onde colhemos a lição do Direito da Europa democrática, por vocação secularizada e plural, não vergada ao peso de monolitismos transcendentes, radicados em teogonias ou sucedâneos metafísicos ou ideológicos. Sem perder de vista a memória daquela germinal “herança dupla de Atenas e Jerusalém”, na expressiva síntese de GEORGE STEINER e onde, segundo o pensador, brilhou “a intensa claridade matinal da Europa”. Que importa preservar face às nuvens que se levantam do lado de alguns Estados europeus, com risco para os valores fundamentais da rule of law, particularmente da independência dos Tribunais.
Dentre as credenciais do Tribunal Constitucional avulta ainda a serenidade – mesmo a coragem – das relações com o ambiente: titulares do poder político, portadores de mundivisões dissonantes, não raro antinómicas; ou a opinião pública, animada e dividida por expectativas, quase nunca sobreponíveis, quase sempre contrapostas, aflorando em debates, com intenso pathos agónico. As relações entre o Tribunal e as expectativas destes outros significantes ganham assim um coeficiente de contingência e imprevisibilidade. Daí a possibilidade, que a experiência confirma, de os pronunciamentos do Tribunal resultarem em surpresa e frustração de expectativas.
São algumas das razões que nos permitam refazer a história e viver esta efeméride como celebração. Razões convocadas por quem, chegado já na vigésima quinta hora, pode louvar-se da distanciação, objetividade e autenticidade de quem, nesta parte. não se pronuncia pro domo sua.
II
4. O olhar sobre o passado, à procura de motivos de celebração e gratidão, dá a medida da responsabilidade de aceitar esta herança. Mas reconforta-nos na certeza de continuar uma construção com fundações sólidas. O Tribunal oferece hoje um acervo único de doutrina que, muitas vezes, antecipa as premissas da resposta aos conflitos. Quando tal não se dá, sobra sempre uma lição de método a iluminar o caminho. A alimentar a confiança na hora de, debruçados já sobre a fronteira do futuro, enfrentarmos os problemas do presente.
Que se desdobram e multiplicam, em quantidade e diversificação qualitativa. Logo porquanto problemas de hoje são ainda muitos dos problemas de ontem – e de sempre – que continuam a aflorar no quotidiano das pessoas e do sistema democrático. Nada, de resto, mais inseguro do que as categorias do tempo – do antes e do depois, do ontem e do hoje, do novo e do velho – para arrumar problemas jurídico-constitucionais, refratários a esta malha conceitual. Mesmo os “velhos” problemas, com longo historial judiciário, são portadores de momentos de singularidade e “novidade”: nunca são inteiramente “velhos”, porque nunca são inteiramente os “mesmos”.
Significativo, por exemplo, que o Tribunal continue a votar tanto cuidado ao tratamento de domínios que têm atrás de si séculos de elaboração, como os problemas criminais e processual-criminais ou as matérias tributárias. Que nos amarram ao destino de Sísifo, continuamente obrigados a começar de novo. Mesmo um instituto como a propriedade – oriundo da noite dos tempos, cinzelado pelo génio dos romanos e depurado por intermináveis controvérsias entre teses liberais e antíteses socialistas – mesmo ele persiste como referente de conflitos de complexidade insuspeitada. O mesmo podendo dizer-se do princípio da igualdade, que o século das luzes imprimiu no consciente coletivo, com o fulgor das evidências. E que permanentemente reaparece, com a novidade dos mundos por desvendar. E, como a linha do horizonte, se vai deslocando à frente dos nossos passos, cada vez mais próxima e mais distante.
5. O quadro repete-se, agora em sentido inverso, na fronteira do futuro: muitas vezes acordamos com problemas que na véspera projetávamos como lugares difusos do imaginário, perdidos na utopia e ucronia do futuro. Mas que os desenvolvimentos técnico-científicos chamaram à luz do dia e ao direito constitucional, provocando sobressaltos e tropismos de adaptação. Como sucede com os direitos fundamentais. Ora densificando a área de proteção de direitos preexistentes, como ilustra a experiência da inviolabilidade das telecomunicações, que tem visto a compreensão e extensão ampliadas, ao ritmo das novas formas de comunicação eletrónica, de produção, transmissão, armazenamento e tratamento de dados. Ora alargando a constelação dos direitos fundamentais, autonomizando dimensões da personalidade expostas às intempéries. Como sucedeu nos anos oitenta com o direito à autodeterminação informacional e, recentemente, com o chamado direito à integridade e fiabilidade dos sistemas informáticos, ambos devendo ao Bundesverfassungsgericht a sua primeira proclamação. Ora ainda reforçando a tutela dos direitos fundamentais, face às formas mais gravosas de invasividade. Como a definição de uma linha intransponível, de uma “área nuclear inviolável” (unantastbarer Kernbereich), também ela avançada pelo mesmo Tribunal.
Hoje não fará sentido imputar ao futuro o cortejo de problemas trazidos pelos avanços das ciências biomédicas e da genética, em especial. Que abalaram construções sociais da realidade que tinham por si a evidência aproblemática das representações cosmogonizadas. E atinentes, designadamente, ao início e ao termo da vida, com projeção em matéria de dignidade humana. Reforçando a ideia da vinculação da dignidade à história e a sua abertura ao futuro. E questionando a compreensão duma dignidade que assistiria, rígida e igual, em todo o desenvolvimento da pessoa, nomeadamente nas fases anteriores ao nascimento. A que alguns contrapõem “uma compreensão de modelo processual (prozesshaften) a proteger com intensidade diferenciada em função do desenvolvimento” e “tomando em conta as circunstâncias concretas” (HERDEGEN).
E, noutra direção, a provocarem modelos alternativos de uma das cristalizações mais consolidadas: a família. Que, abrindo mão da estrutura monolítica, assume maior plasticidade e adota um desenho polimórfico, abrindo-se a possibilidade de os vínculos biológicos ou genéticos e os laços jurídicos se afastarem e se combinarem segundo novos e diferenciados modelos. Mas em que todos continuam a ser pessoa, na plenitude das exigências jurídico-constitucionais deste conceito, uma das realizações maiores da civilização de Elias e de Sócrates. Na impressiva formulação do filósofo de Coimbra, BAPTISTA PEREIRA, a pessoa como “reserva de solidão perante as totalidades sistémicas”. E portadora, em condições de igualdade e universalidade, da dignidade humana e dos direitos fundamentais à liberdade, à autonomia, ao desenvolvimento da personalidade, à identidade pessoal. Gozando dum insindicável direito a ser, agir, conhecer, conhecer-se e relacionar-se, no irrestrito e exclusivo domínio da sua irrepetível história.
6. Enquanto isto, vai ganhando contornos, provocando espanto e cuidado, o desafio das neurociências.
Sobretudo porque o sucesso dos axiomas teóricos das neurociências, pode trazer consigo o toque a finados pelo Direito e pelos direitos, como hoje os conhecemos. Porque não sobraria alternativa para um paradigma monista-naturalista de sentido neurológico em que os fenómenos psíquicos seriam pré-determinados pelos processos neurológicos, inteiramente “subordinados às leis determinísticas do mundo das coisas” (SINGER). O que faria emergir um “neues Menschenbild” (SINGER), à vista do qual, a liberdade da vontade – a autonomia e a responsabilidade – não passariam de “ilusão” que importaria abandonar. Com reflexos profundos nesta “camada do ser” que é o direito. Como KRIELE adverte, seriam atingidos os alicerces do conceito e do princípio da dignidade humana. Para a qual pouco espaço sobraria numa “idade da neurojurisprudência” (Zeitalter des Neurojurisprudenz).
Noutra direção avultam os desafios da revolução digital, particularmente da internet, porventura o mais poderoso poder fáctico, que, para além dos seus múltiplos e celebrados benefícios, comporta o risco de desagregação da esfera pública. E ameaça os pressupostos do Estado democrático e da ordenação constitucional. Logo porque propicia a formação de fortes correntes de opinião, à margem da liberdade, pluralismo e contraditório, pressupostos pelo ideal de participação democrática.
7. Decisivas também as transformações do lado do terrorismo.
Deixando de privilegiar as estruturas do poder, o terrorismo assume hoje uma vocação sistémica, procurando abalar os fundamentos do Estado de direito e da civilização de que emerge. Em vez de eleger os alvos entre os símbolos e as elites daquelas estruturas, almeja infligir o maior sofrimento ao maior número de cidadãos anónimos, surpreendidos no trabalho, na rua ou nos espaços de lazer. Com a consequente hipostasiação do valor da segurança, a justificar a reivindicação de um “direito fundamental à segurança” (ISENSEE). E obrigando a privilegiar a prevenção sobre a repressão, que pode revelar-se inócua. Além do mais porquanto, aos olhos de muitos dos seus destinatários – animados de proselitismo religioso e apelos escatológicos –, a punição às mãos dos “infiéis” pode aparecer como penhor de carisma e graça ou como encurtamento da distância que separa da felicidade. Sendo consensual que a prevenção deverá antecipar a intervenção para o “campo avançado” (Vorfeld), para as estruturas que suportam os atos de terrorismo, antes de estes se manifestarem como dano ou perigo concreto. O que pode levar à aporia de, em nome da luta pelo Estado de direito, ser o próprio Estado a sacrificar valores que são marcas eidéticas do Estado de direito.
Esta experiência tem propiciado constelações fácticas, que obrigam o Estado a dilemáticas tragic choices de dignidade contra dignidade, de vida contra vida. Em que, chamado a salvar a vida de um, de muitos, de toda uma cidade, só pode fazê-lo ameaçando, coagindo ou infligindo sofrimento ao suspeito ou agente, detentor de informação cujo conhecimento é necessário à proteção das vítimas.
Não cabendo ensaiar uma resposta, deixaremos um apontamento de caracterização destas situações. Que, apresentando momentos de comunicabilidade com a tortura de sentido inquisitório, denotam outrossim marcas de diferenciação. Que podem induzir uma mais ou menos pronunciada assimetria de categorização dogmática e de enquadramento normativo.
Ao carácter repressivo da tortura inquisitória, contrapõe-se aqui um propósito preventivo. Ali sacrifica-se a autonomia e a dignidade com vista à prova e sancionamento de um facto passado, que já consumou o sacrifício dos valores protegidos, apenas sobrando a satisfação das pulsões da sociedade punitiva. Aqui o Estado intervém, orientado para o futuro, com a finalidade da defesa, possível e exigível, dos bens jurídicos ameaçados, nomeadamente a vida de vítimas inocentes.
Ali o conflito esgota-se nos polos de uma relação binária: Estado contra suspeito: a salvaguarda da dignidade do suspeito é assegurada exclusivamente à custa da renúncia e recuo dos interesses (punitivos) do Estado. Na expressão de HERDEGEN, da “auto-relativização antropocêntrica do Estado”. Diferentemente, o conflito assenta aqui numa relação triádica: “Estado–perturbador–vítima. Com o Estado no meio do conflito: entre o perturbador, cuja dignidade tem de respeitar e a vítima cuja dignidade tem de proteger” (ISENSEE). Certos de que o respeito pela dignidade do primeiro – alguém responsável pelo destino que autonomamente escolheu – tem como reverso o abandono da segunda, sacrificada de forma heterónoma, em nome da dignidade do outro e mesmo da autorrepresentação e da boa consciência do Estado.
8. Centrais na experiência constitucional do presente, os problemas de interconstitucionalidade ou de constitucionalismo multinível. Correspondente à interação reflexiva entre normas de diferentes fontes, subjetivizadas, para além do Estado, por instâncias infranacionais e, sobretudo, supranacionais, que convergem na solução de problemas jusfundamentais. Um pluralismo que sinalizando o ocaso do constitucionalismo correspondente ao Estado vestfaliano, vê emergir entidades – de que a União Europeia é, para nós, o caso paradigmático – heteronomamente construídas e modeladas pelos Estados-membros, mas detentoras de poderes tradicionalmente estaduais, produzindo direito que goza de primazia aplicativa sobre o direito dos Estados. Com os complexos problemas de relacionamento e conflitualidade. Cuja superação se vai alcançando, em estádios diferenciados de sedimentação e estabilização, através sobretudo do diálogo entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e os Tribunais Constitucionais dos Estados-membros. Na síntese de HÄBERLE, a “nossa” constituição é hoje um mosaico de constituições parciais, de normas de diferentes origens que se interrelacionam num espaço de internormatividade. Sobrando como fronteira, cuja guarda está cometida ao Tribunal Constitucional, “os princípios fundamentais do Estado de direito democrático” (artigo 8º, nº 4 da CRP).
9. Uma referência ao problema matricial da dignidade humana, com um peso crescente na justiça constitucional e nas controvérsias doutrinárias. Pela emergência de problemas de new frontier: avanços técnico-científicos, terrorismo e também as crises económico-sociais. Quer as vividas dentro dos Estados, que parecem refluir, mas que deixam na praia uma memória dolorosa que, do ponto de vista da dignidade humana, confronta o Estado social com as suas antinomias e ausências. Quer a avassaladora crise dos refugiados que não dá sinais de abrandamento e que expõe aos olhos da Europa, multiplicado por milhões, o rosto chagado de Lázaro em busca de lenitivo. Desafiando a consciência da Europa, e a proclamação que abre a Carta dos direitos fundamentais: “A dignidade do ser humano é inviolável”.
O alargamento em extensão tem como reverso a multiplicação das controvérsias do lado da compreensão. Particularmente no plano dogmático em que se perdeu o consenso das primeiras décadas de vigência jurídico-positiva da dignidade humana. Que tinha por si a evidência que advinha: pela negativa, da memória das monstruosidades do nazismo; pela positiva, da ligação a “um conteúdo pré-positivo e ético-espiritual” (BÖCKENFÖRDE). A dignidade denotava a consistência das categorias metafísicas, correspondente a uma qualidade do ser, a um “dado do mundo do ser” (Seinsgegebenheit, (DÜRIG).
As dissonâncias começam logo pela natureza da dignidade: a que uns continuam a adscrever natureza substancialista; outros perspetivam como relação/comunicação; outros como realização, num processo de autorrepresentação na comunicação. Uma insegurança que se transmite ao estatuto dogmático da dignidade, na doutrina dos direitos fundamentais. Se, em geral, não se contesta a afirmação do Bundesverfassungsgericht da dignidade como “raiz de todos os direitos fundamentais”, já é mais problemática a sua categorização e tratamento à categoria e ao regime do direito fundamental.
As dissensões afloram também a propósito do peso relativo da dimensão jurídico-positiva, face à componente transcendente-cultural. Bem como à identificação de um conceito operativo de lesão – sc. dos atentados pertinentes ao Tatbestand das normas relativas à dignidade e à pertinente área de tutela. Onde se reflete a insegurança relativa à dignidade como objeto da ação e como “bem de proteção” (Schutzgut). O que obriga, não raro, a definir a lesão a partir de momentos da finalidade ou da atitude do agente.
E ganham amplitude na discussão sobre o carácter absoluto ou relativo da tutela constitucional. Num primeiro período, era consensual a tese da tutela absoluta, segundo a qual a Constituição vetaria toda e qualquer afetação, sacrifício, compressão ou atentado à dignidade. Sem exceção, sem ponderação. Hoje cresce o número dos adeptos duma tutela relativa, idêntica à dos direitos fundamentais e exposta à ponderação. Elucidativa a jurisprudência do Tribunal Constitucional federal alemão. No plano dos grandes enunciados, fiel à ideia de tutela absoluta e duma dignidade unantastbar. Não faltando, detrás desta proclamação, manifestações de tolerância de sacrifícios ditados pela prossecução de interesses conflituantes.
10. Apesar de tudo, chegados à encruzilhada onde a pergunta de LUHMANN – Há ainda normas indisponíveis na nossa sociedade? – parece incontornável, cremos que a resposta deve ser, afirmativa. No sentido de que há atentados à dignidade humana que é forçoso considerar inadmissíveis, à margem de toda a ponderação. Tudo está em precisar este “absoluten Stoppsignal” (LADEUR/AUGSBERG), definindo o limiar de lesão a partir do qual se atinge já o “núcleo da dignidade” (Würdekern) (HERDEGEN) a que há-de reservar-se tutela absoluta. Um objetivo prosseguido por diferentes vias, como a trilhada por ALEXY, assente na distinção entre: norma-princípio, aberta à ponderação; e norma-regra, a assegurar, de forma definitiva e fechada, a tutela da dignidade na medida em que ela é coberta pelo respetivo Tatbestand. Precisando que “a regra só é violada quando o princípio da dignidade humana tem prevalência sobre os princípios conflituantes”. Uma construção possibilitada, segundo o autor, pela “abertura semântica do conceito de dignidade humana”.
Tudo permite antecipar que as querelas continuarão o seu curso no plano dogmático-doutrinal. Uma insegurança ao nível da razão teórica, que não se comunica inteiramente ao plano da razão pragmática. Onde é possível identificar enunciados normativos que sinalizam áreas em que se reflete o carácter “inviolável” (nunantastbar) da dignidade.
A título meramente exemplificativo:
A dignidade humana assiste a todas as pessoas, independentemente do seu modo de ser ou agir. Persona est nomen dignitatis (S. TOMÁS). Na síntese do Tribunal Constitucional federal alemão: “Todos a possuem independentemente das suas qualidades, das suas realizações e do seu estatuto social. Ela assiste também àquele que, por causa do seu estado físico ou psíquico, não pode agir com sentido. Nem sequer a perde pelo seu comportamento indigno”.
Como corolário, a dignidade assiste mesmo ao inimigo da Constituição. Devendo recusar-se, sem concessões, a ideia de um direito do inimigo – em rigor um não-direito – contraposto ao direito dos cidadãos. No sentido de que, degradado à categoria de “não-pessoa” (unperson), o inimigo estaria excluído da comunidade jurídica, do seu reconhecimento e proteção.
Cito ainda a relação entre a dignidade e a autonomia, traduzida na pertinência da autonomia à dignidade, mesmo ao seu núcleo essencial. Porque “a autonomia é a razão da dignidade humana” (KANT), no conteúdo da dignidade humana prevalece a “decisão (…) de se determinar a si mesmo e de se conformar a si mesmo e ao seu ambiente” (DÜRIG). E porque nenhum ser racional obedece a leis de que ele próprio não se tenha dotado (KANT), “a Constituição, de forma vinculativa para o Estado, faz de cada ser humano a sua autoridade moral, em termos tais que a intromissão nesta liberdade contende sempre com a dignidade” (SCHAEFER).
Na síntese de NETTELSHEIM, “não se pode invocar a dignidade humana contra a autonomia”
III
11. Termino, regressando à gratidão, agora para alargar o círculo àqueles que, na diversidade de papéis e de posições na topografia da competência e domínio das questões, criticam as nossas decisões. Crítica bem-vinda, porque oportunidade para repensar, melhorar e corrigir. Não nos reivindicamos duma perfeição, em que não acreditamos, nem pecamos por hybris de autossuficiência.
Seria ocioso convocar lugares de legitimação da crítica, quando estão em causa as coisas e as causas últimas da ordenação comunitária. Não resistirei, todavia, à atratividade de um desses lugares, situado nos alvores da civilização. Muito antes do aparecimento de doutrinas recentes como a “da sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição”, que encaram o destinatário das normas constitucionais como participante ativo do processo hermenêutico. Refiro-me ao mito de Prometeu, tomado na versão do Protágoras de PLATÃO.
Chocado com a disparidade entre o homem e os animais – estes apetrechados com dons e defesas naturais para enfrentar o destino; aquele indefeso e débil, incapaz de, só por si, sobreviver – o Titã sobe ao Olimpo, onde rouba o fogo de Hefestos e as artes de Atena, distribuindo cada dom e cada técnica. Fazendo deste médico, daquele ferreiro, de outro soldado, mercador, etc. Só que esta civilização da técnica, este domínio dos ofícios não assegurava a convivência em paz, justiça e prosperidade. A techne sem nomos apenas potenciaria desagregação e autodestruição. Mas Prometeu não lograra entrar no palácio de Zeus onde se encontravam os dons da justiça, da lei, da tolerância, do respeito indispensáveis ao governo da cidade. Apiedado, Zeus mandou Hermes levar estes dons aos homens, ordenando que, diferentemente das artes e das técnicas, eles fossem distribuídos pelo coração de todos os homens. Porque, argumentava Zeus, não haverá cidades se apenas alguns especialistas partilharem estes dons. É por isso, conclui Protágoras, que em Atenas, quando o assunto é medicina ou carpintaria, damos a voz aos especialistas; mas quando se trata de justiça e das leis da cidade, com razão se aceita a opinião de qualquer homem.
Queremos que, hoje e aqui, seja como em Atenas.
Na certeza de que, no fim do processo hermenêutico, o juízo e definitivo será subjetivado e subscrito pelo Tribunal Constitucional.