Manuel da Costa Andrade
Sessão de abertura da 3.ª Conferência Quadrilateral Portugal-Espanha França - Itália
11 de outubro de 2019
Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa
Senhor JUAN JOSÉ GONZALEZ RIVAS, Digníssimo Presidente do Tribunal Constitucional de Espanha;
Senhor LAURENT FABIUS, Digníssimo Presidente do Conselho Constitucional da França;
Senhor GIORGIO LATTANZI, Digníssimo Presidente do Tribunal Constitucional da República Italiana;
1. Permitam-me que, em nome do Tribunal Constitucional de Portugal — dos seus Juízes e dos seus Colaboradores —, saudemos fraternalmente V. Exas. e as delegações a que presidem. E lhes demos conta do indizível sentimento de honra e de júbilo com que os recebemos. Bem como da expectativa com que encaramos a realização desta Quadrilateral, que nos coube organizar. Votada, como sempre, à reflexão e à tentativa de clarificação das questões com que a vida, em permanente movimento e tumulto, vai surpreendendo e “irritando” os Tribunais Constitucionais. Reunião para a qual, com o assentimento dos demais Tribunais, propusemos, como tema, os problemas com que os recentes desenvolvimentos técnico-científicos — particularmente nos domínios das ciências da vida e das comunicações electrónicas — confrontam hoje o Direito e, sobretudo, o Direito Constitucional que nos cabe dizer, e a Justiça Constitucional que nos cabe ministrar. Na linearidade do título adoptado: A Justiça Constitucional Face aos Desenvolvimentos Tecnológicos.
Os problemas são, no essencial, novos. Mas a problemática tem atrás de si um passado e uma memória à medida da história secular da Humanidade. Invariavelmente escrita de encontro ao vento, debruçada sobre o futuro, virada para o desconhecido e o novo. Originando novas formas de ser, de ação e de relação e novas linhas de fronteira e de conflito. Tudo à espera de respostas normativas: morais, éticas e jurídicas. Que emergiram sistematicamente com uma maior ou menor assimetria temporal, já que a vida — e com ela os problemas e as perplexidades — chega sempre à frente das normas. Que, como a coruja de Minerva, apenas levantavam voo ao cair do crepúsculo, iam já adiantados os trabalhos, os dias e as angústias dos homens.
2. Nova é, desde logo, a prodigiosa aceleração das inovações e a amplitude das transformações do mundo, da vida e das pessoas, surpreendidas com as mudanças e a plasticidade das dimensões e das estruturas mais estabilizadas da condição humana. Que até ontem eram tidas como pré-dados aproblemáticos, fechados e inamovíveis, cobertos pela “necessidade transcendental” das teodiceias ou a definitividade das vinculações cosmogonizadas.
A tendência é hoje para o manipulável e o contingente. Pode decidir-se quase de tudo: do início e do fim da vida, mesmo do antes e do depois da vida; manipular-se a identidade genética; escolher-se o corpo, condicionar-se a alma. Fazendo emergir perante o Direito Constitucional uma terra incognita de problemas para cuja solução não dispõe de categorias, de valores e de normas prontas a levar à subsunção.
Noutra direcção, os progressos em matéria de comunicações electrónicas e sistemas informáticos vêm oferecendo meios cada vez mais invasivos de vigilância e monitorização, possibilitando a recolha massiva de dados e abrindo a porta a uma devassa e controlo panópticos e indiscriminados. Sobre as comunicações, os conteúdos, as circunstâncias, os lugares, os tempos, as condutas, os sonhos, os desejos, os valores, os desvios … não sobrando espaço nem tempo para a intimidade de um encontro, de um sofrimento, de um solilóquio.
Enquanto isto, os cultores das neurociências anunciam o triunfo de um modelo de monismo-naturalismo, em que os fenómenos psíquicos estão pré-determinados pelos processos neurológicos. E, como tais, “subordinados às leis determinísticas do mundo das coisas” (SINGER). No que vai coenvolvida a tese de que a liberdade — a autonomia, a responsabilidade, a culpa — não passam de ilusões. Como se, mais de vinte séculos volvidos, se assistisse ao retorno do monismo físico-atomístico de DEMÓCRITO. Que reduzia o homem a um joguete na cadeia da racionalidade das leis físicas dos átomos a que ele, como tudo na natureza, se reconduzia. O que, como MARTIN KRIELE sublinha, traria consigo o fim do direito constitucional, como hoje o concebemos. Logo por comprometer drasticamente o sentido, a validade e a fecundidade normativa da dignidade humana.
A aceleração — acontecendo ao ritmo dos dias o que antes obedecia ao ritmo dos séculos —, a profundidade das transformações e a extensão dos (novos) campos problemáticos vieram reforçar e ampliar o desfasamento temporal entre os problemas e as respostas normativas. E aqui reside outro dos marcadores da
novidade com que as questões se colocam hoje.
Novidade que ganha evidência reforçada à vista da complexidade e das dificuldades sem precedentes de que se reveste a decantação das respostas. Ao contrário do que ontem sucedia, hoje não dispomos de categorias, princípios ou axiomas, unívocos no sentido, pacíficos na subscrição generalizada e consensual, aproblemáticos na validade e universais na vigência. Tal era possível nos tempos de monismo religioso, filosófico ou cultural e de sociedades vergadas ao peso de credos ou mundivisões. Então podia, como as personagens de D. PEDRO CALDERÓN DE LA BARCA, perguntar-se ao Autor de El Gran Teatro del Mundo pelas normas de conduta e representação. Para ouvir, unívoca de sentido, uma só resposta: “obrar bién que Dios es Dios” . Um caminho vedado no contexto actual do Estado de Direito e da de sociedade secularizada, aberta e plural. Feita agora, aquela pergunta só poderia colher as respostas incontáveis dos muitos deuses, a apontarem para conceitos dissonantes, antinómicos e potencialmente conflituantes sobre o que seja “obrar bién” . Desencanto e frustração que, de algum modo, se repetem mesmo com categorias ou princípios da sociedade secularizada e plural como paradigmaticamente sucede com a “dignidade da pessoa humana” , o “fundamento do fundamento” (DÜRIG) do Estado de Direito. E cuja extensão e compreensão normativas estão longe de valerem de forma consensual e pacífica. Sendo frequentes as constelações em que, face a novas realizações das ciências da vida, a dignidade seja invocada; por uns, como fundamento de legitimação e validade; por outros, inversamente, como razão de recusa e proscrição. Enquanto uns vêem nelas a expressão autêntica e arquetípica da dignidade, outros esconjuram-nas como atentados intoleráveis à mesma dignidade
3. Foi, por isso, em boa hora que decidimos votar estas horas de reflexão ao exame de alguns dos problemas enunciados e dos muitos que se deixam adivinhar. Podendo, à partida, ter-se como bom augúrio a circunstância de nos encontrarmos aqui, em Lisboa. Que carrega no nome — Olisipo — a memória de Ulisses, a vocação da errância e da aventura, a paixão pelo desconhecido e pelo novo, a abertura ao outro.
Lisboa, 11 de outubro de 2019
Manuel da Costa Andrade