Ana Raquel Moniz
Tomada de Posse da Entidade para a Transparência
15 de fevereiro de 2023
Tribunal Constitucional
As primeiras delas dirigem-se ao Tribunal Constitucional, na pessoa do Senhor Conselheiro Presidente, Doutor João Pedro Caupers. Além da admiração que V. Ex.ª sempre me inspirou como Académico e Professor Universitário, agradeço hoje, de modo especial, a confiança em mim depositada para o exercício de um munus tão exigente quanto responsabilizante. Trata-se de um agradecimento que estendo às Senhoras e Senhores Juízes Conselheiros, que compõem o Plenário do Tribunal Constitucional, e que muito me honraram (assim como aos meus Colegas, membros da Entidade) com a votação por unanimidade. A missão que, em fidúcia, nos confiaram só ficará certamente satisfeita mediante uma superlativa dedicação ao serviço da Res Publica.
Não poderia omitir, de igual modo, uma saudação muito particular à Senhora Doutora Mónica Bessa Correia e ao Senhor Dr. Pedro Nunes, que me acompanharão no exercício das funções. Ainda que nos conheçamos há pouco, já surpreendo nos meus Colegas da Entidade a sua vocação de pessoas bem-dispostas e dispostas ao bem, e, sobretudo, dispostas a partilhar o encargo de erigir a Entidade para a Transparência – com todas as agruras e desafios que tal tarefa ineliminavelmente implicará, num ambiente que será, estou certa, de cooperação leal e de incentivo recíproco.
Permitam-me, então, que afivele já a máscara de Presidente, tendo como mote alguns versos iniciais de uma Ode de Horácio: “O homem justo e tenaz no seu propósito/Em sua firme mente não se perturba”. Na verdade, o elevado horizonte de expectativas que rodeia a Entidade para a Transparência revela-se de molde a perturbar. Naturalmente, tudo farei para que não se verifique a prognose avançada pelo Poeta: “E se o céu em pedaços sobre ele cair,/ Impávido o hão de atingir suas ruínas”. Mas não se devem escamotear as escarpas íngremes cuja escalada se impõe para que a Entidade para a Transparência cumpra cabalmente a sua missão.
Tal missão consiste, nos termos legais, na apreciação e fiscalização da declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
Esta referência demonstra, desde logo, que transparência não representa um fim a se stante, mas antes um meio para a satisfação de um fim. O que, por sua vez, exige duas observações complementares, relativas, quer a identificação da finalidade a atingir, quer à posição da Entidade no contexto de outros mecanismos institucionais, criados para responder ao mesmo fim.
Assim, a Entidade para a Transparência traduz uma manifestação do imperativo da eticização do agere dos poderes públicos, considerando que à transparência se associam, em regra, as dimensões de isenção, objetividade e imparcialidade.
A confiança, a probidade ou mesmo a lealdade reveladas pelos titulares de altos cargos públicos ou dos ofícios públicos constituem, aliás, preocupações que mergulham fundo na memória nacional. Uma demonstração particularmente interessante de tais preocupações reside numa provisão emanada durante o Reinado de Filipe III (Filipe IV de Espanha), aplicável em Portugal através de uma Lei de 31 de janeiro de 1623, que impôs um controlo dos bens dos titulares de cargos públicos, exigindo uma declaração da riqueza que possuíam desde 1592, com o objetivo de “atalhar quanto fôr possível á desordenada cubiça, que é raiz de todos os males”. Estávamos diante de uma obrigação de inventário, secreto e selado, que não só vinculava os titulares no momento da nomeação para o ofício, como ainda se renovava aquando das promoções ou da movimentação de um cargo para outro, e cujo incumprimento tinha como sanção privilegiada “o perdimento de tudo quanto maliciosamente [sonegassem] (…)”, acrescido de um quarto para a Câmara Real e outro quarto para o acusador. Afinal, como se recordava, pelo menos, desde as Cortes de Coimbra de 1473, “hua regra antigua muy proveitosa que tinham os reys amtiguos em este caso a qual era que davam os homeens aos oficios e não os oficios aos homeens”.
A associação entre valores públicos e exercício de funções públicas no contexto atual destina-se a revitalizar a integridade e a fomentar a consequente confiança dos cidadãos, com o desígnio de alcançar uma mais eficiente satisfação do interesse público no quadro do direito. A democracia e o Estado de direito englobam a defesa de um conjunto de valores públicos da ação estadual, quer de natureza substantiva (respeito pelos direitos fundamentais, proporcionalidade, imparcialidade, racionalidade), quer de índole procedimental/processual (transparência, garantias procedimentais e processuais). Tal significa, pois, que a transparência não vive num solipsismo existencial, convivendo impreterivelmente com outras dimensões jurídico-constitucionalmente relevantes, como sucede com os direitos de todos cidadãos, num equilíbrio dialético entre os direitos de eleitores e os direitos de eleitos, enfim entre os direitos dos titulares de cargos políticos altos cargos públicos e os direitos dos demais cidadãos.
Neste horizonte, a Entidade para a Transparência representa apenas um dos mecanismos que podem contribuir para tais desideratos, tal como sugere já a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, onde, inter alia, se prevê justamente, que, com o propósito de reforçar a dimensão de integridade no exercício da atividade política e de altos cargos públicos, se assegure o cumprimento do regime declarativo previsto para os respetivos titulares. E tal finalidade congrega instrumentos (organizatórios e substanciais) necessariamente mais amplos, para que se torne viável assegurar o cumprimento da Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, no que concerne ao objetivo de desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes, a todos os níveis.
Por isso, não tomemos a nuvem por Juno. Se, como entidade administrativa independente, perspetivada no conjunto das entidades vocacionadas para a tutela da juridicidade do Estado e para a defesa dos direitos fundamentais – numa palavra, para a defesa da Respublica –, a Entidade para a Transparência terá um papel a desempenhar na garantia dos fins prosseguidos por aquele imperativo, não será, com certeza, a única, deverá ser presidida por finalidades de prevenção geral e encontra os seus poderes delimitados pelo princípio da legalidade da Administração.
A circunstância de a Entidade para a Transparência começar a trilhar, hic et nunc, o seu próprio caminho, com todas as vantagens da juventude, não permite descurar as dificuldades – desde logo, físicas e materiais – que se lhe opõem. Independentemente de obrigações regulamentares (também impostas pelo legislador), tem a Entidade que se construir: não ex nihilo, pois que beneficiará da experiência decantada pelo Tribunal Constitucional, mas ex novo – a impor, na ausência de um regime legal de instalação, um período transitório de funcionamento não integral, que envolve todas as tarefas imprescindíveis ao nascimento de qualquer estrutura institucional (desde os procedimentos mais gerais relativos ao recrutamento de recursos humanos àqueloutros mais específicos atinentes à operação da plataforma informática que receberá as declarações únicas).
Daí que o desempenho da missão da Entidade para a Transparência e a prossecução do interesse público a que se encontra adstrita só se revelem possíveis com a dedicação e a cooperação ativa entre todos os membros da Entidade e dos seus futuros trabalhadores, bem como com a inestimável colaboração do Tribunal Constitucional e dos seus serviços de apoio.
Na sequência do compromisso de honra que, há instantes, assumi, posso apenas afirmar que tentarei envergar o fato de trabalho do «homem do leme» perpetuado em “O Mostrengo”. E, por isso, a vontade inexpugnável que me comanda (que me ata ao leme), se não é a vontade de El-Rei D. João II, é, certamente, o interesse público superior da República Portuguesa.
Disse.