João Caupers
Sessão solene de abertura da Conferência Comemorativa do 40.º Aniversário do Tribunal Constitucional
2 de março de 2023
Academia das Ciências de Lisboa
Há dias um amigo enviou-me via internet, de França, um quadradinho com o desenho de dois pequenos animais vistos de costas, olhando para o firmamento. Um deles perguntava:
Qual é o teu dia da semana favorito?
O outro respondia:
Amanhã.
Esta resposta ajuda a explicar por que razão dedicamos esta conferência internacional ao futuro. Celebramos, no âmbito deste 40.º aniversário do Tribunal Constitucional, também o passado e o presente, nomeadamente com a publicação de quatro livros: um, sobre algumas das mais relevantes decisões do Tribunal tomadas ao longo destes quarenta anos e outro sobre o Palácio Ratton – o passado, portanto. Um terceiro sobre o processo de tomada de decisões pelo Tribunal – o presente. Por último, um livro sobre o Tribunal Constitucional destinado às crianças, procurando incutir-lhes a ideia da importância dos direitos fundamentais e explicar-lhes o papel do Tribunal Constitucional na defesa destes. O futuro, decididamente.
O futuro é gerador de incerteza. Muitos encaram-no com ansiedade e com compreensível receio do desconhecido. Mas é bem mais estimulante vê-lo, com expetativa e entusiasmo ou, adaptando Popper, como um mundo de oportunidades. Vistas bem as coisas, dele apenas sabemos, ou julgamos saber, que será diferente do presente. Este não é mais do que um fugaz relâmpago que serve de ponte entre o futuro, que não adivinhamos, e o passado, que vai ficando lá para atrás. Pessoa procurou fixar esse instante, escrevendo: «Vivo sempre no presente. O futuro, não conheço. O passado, já não o tenho». Porém, de um modo ou de outro, todos perseguimos o futuro, mesmo aqueles que o temem – até porque não existe alternativa -, sem jamais o conseguir agarrar.
Quem se aproxima do fim da vida tem a sensação de que o presente é cada vez mais curto e que o futuro se aproxima cada vez mais depressa. Como acertadamente escreveu Paul Valery, «o problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser».
Se considerarmos aquilo que se vai passando no mundo da justiça constitucional, observaremos muitas mudanças: algumas já estão a acontecer, outras divisam-se no horizonte.
Sem qualquer preocupação de exaustividade, tão-pouco de seguir alguma ordem de suposta importância, começo por referir os problemas relativos às alterações climáticas e à sustentabilidade das políticas públicas. Algumas jurisdições constitucionais já foram confrontadas com questões desta natureza. Entre estas avultam previsivelmente as dificuldades em traçar os limites da jurisdição constitucional relativamente aos legisladores, designadamente parlamentares.
Como irão as jurisdições equilibrar as exigências dos cidadãos e das suas organizações com as limitações que sobre ela impendem por força do princípio da separação de poderes? Dará uma jurisdição constitucional essencialmente cassatória lugar a uma jurisdição condenatória ou, mesmo, subrogatória, invadindo áreas tradicionalmente reservadas ao legislador? Mais profundamente, como enfrentará o Estado de direito democrático um eventual esbatimento do valor daquele princípio?
Outro tipo de problemas situar-se-á, provavelmente, no equilíbrio entre os valores da liberdade e da segurança. A geração de que faço parte cresceu numa sociedade marcada pelas restrições às liberdades, nomeadamente das liberdades de expressão do pensamento, de intervenção política e de reunião e associação. Com a implantação da democracia, com o que esta teve de libertador, a defesa das liberdades tornou-se o bem mais precioso. Do mesmo passo, uma sociedade essencialmente fechada sobre si converteu-se ao cosmopolitismo, tolerando, se não mesmo cultivando, a diferença e relacionando-se crescentemente com outros povos e outras nações.
Na geração seguinte, porém, as transformações que o mundo conheceu, em resultado, designadamente, de fenómenos como a globalização e o terrorismo, alteraram aquela hierarquia de valores. O valor da segurança foi ganhando peso; o medo – intensificado devido ao impacto da pandemia de COVID19 -, foi acentuando as pulsões securitárias, incrementando restrições às liberdades até há pouco tidas como inaceitáveis e agora consideradas inevitáveis.
E não foi apenas a preocupação com a segurança, no sentido mais estrito desta, que pôs em causa a liberdade: somou-se-lhe a “normalização” da devassa da privacidade dos cidadãos - também facilitada pelas medidas de combate à pandemia - sem a qual não há liberdade que resista. A acumulação de dados pessoais sobre os cidadãos, com alegado fundamento na defesa destes, dramatizou o respetivo acesso, situação que se encontra refletida na controvérsia que grassa na Europa e nas suas instituições sobre os chamados metadados.
Mais recentemente ainda surgiram reações quanto ao uso de algoritmos preditivos, designadamente pelas forças policiais e de segurança, na medida em que possibilitam o estabelecimento de perfis de possíveis culpados ainda antes de qualquer crime ser cometido. Desempenharão as jurisdições constitucionais um papel relevante para obstar a que o terrível futuro imaginado por Philip K. Dick no seu famoso Minoritary Report se torne realidade? Lendo a decisão do Verfassungsgericht de 16 de fevereiro deste ano, que julgou ilícito o uso do software de vigilância Palantir pelas polícias do Hesse e de Hamburgo, percebe-se que um futuro ameaçador já nos bate à porta. Mas a decisão do prestigiado tribunal alemão também demonstra que se pode e deve lutar contra ele.
As jurisdições constitucionais e também o TJUE terão, acredito, um relevante papel na resolução deste grave problema.
Um terceiro tipo de problemas que as jurisdições constitucionais terão de encarar decorre das consequências da guerra que grassa na Europa. Num continente beneficiado por mais de setenta anos de paz, apenas pontuada por conflitos regionais nos Balcãs, a atual situação já produziu consequências muito sérias. Tendo em consideração que a guerra foi desencadeada na ressaca da pandemia, a acumulação de efeitos negativos - nomeadamente no que respeita à escassez de alguns bens e ao aumento generalizado do preço de muitos outros - pode produzir consequências devastadoras. O Estado de direito democrático habituou os cidadãos à prosperidade e o acordar para uma época de vacas magras torna-se doloroso. Pode prever-se que aumentem as solicitações de intervenção das jurisdições constitucionais em situações de carência social extrema, para as quais não dispõem de instrumentos adequados. Como responderão estas?
Associado à guerra agigantou-se um outro problema, decorrente dos movimentos migratórios maciços. Estes já se vinham intensificando nos últimos anos, num fluxo crescente de sul para norte, exercendo enorme pressão sobre os países da Europa meridional. Mas a invasão da Ucrânia pelas tropas da Federação Russa, criou uma nova e enorme vaga de refugiados, deslocando-se agora de este para oeste, exercendo desta feita pressão sobre os Estados da Europa oriental. Os sistemas de saúde, ensino e segurança social europeus são testados até ao limite.
Esta espécie de “procura intensiva” da Europa, caso não seja acompanhada pelo constante reforço de medidas de integração, particularmente custosas num contexto de elevada inflação, arrisca fazer aumentar e aprofundar os conflitos sociais, os nacionalismos e os confrontos étnicos, ameaçando desagregar as sociedades. Que reflexos terão na ação das jurisdições constitucionais, muito vocacionadas para a proteção da igualdade, as crescentes diferenciações - de origem geográfica, de localização, de geração, de situação económica, de acesso à educação e à cultura?
Por último, tempos recentes têm assistido à intensificação da exposição das jurisdições constitucionais à opinião pública. Os casos mais relevantes pendentes nos tribunais portugueses, incluindo o Tribunal Constitucional, são abundantemente comentados, nos meios de comunicação e nas redes sociais, ainda antes de serem decididos, por quem, pouco ou nada conhecendo das questões, frequentemente muito delicadas, envolvidas, nem por isso se abstém de emitir juízos precipitados e mal fundados.
Se umas vezes o desconhecimento é compreensível e demanda um esforço mais intenso dos tribunais no sentido de explicar melhor os seus mecanismos decisórios, outras vezes disfarça - mal - tentativas de pressionar os tribunais no sentido de decidir em certo sentido. Seja como for não parece possível reverter esta situação, pelo que haverá que ponderar a melhor forma de lhe fazer face, sem afetar a reserva da atividade jurisdicional e a tranquilidade indispensável à ponderação judicial.
Como se vê, o futuro das jurisdições constitucionais apresenta-se complexo, problemático e desafiador. Para lhe fazer face, estas irão ter de se reinventar. Saberão fazê-lo? Poderão fazê-lo? Quererão fazê-lo?
Concluo, recordando a advertência de Kierkegaard: a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para a frente.