Marcelo Rebelo de Sousa
Sessão solene de abertura da Conferência Comemorativa do 40.º Aniversário do Tribunal Constitucional
2 de março de 2023
Academia das Ciências de Lisboa
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhor Presidente da Academia das Ciências de Lisboa e nosso também anfitrião, honrando-me eu muito de ser sócio a título pessoal, sócio honorário desta Academia, Senhor Presidente do Tribunal de Justiça, aqui presente, bem-haja pela sua vinda,
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas,
Senhora Procuradora-Geral da República,
Senhora Provedora de Justiça,
Senhor Secretário de Estado junto da Senhora Ministra da Justiça,
Senhoras e Senhores Conselheiros,
Excelências,
Celebrar quarenta anos de vida do Tribunal Constitucional convoca, a um tempo, memórias pessoais da génese, gratidões institucionais aos precursores e aos fundadores, bem como balanços, também eles institucionais, de um já longo serviço ao Estado de Direito em Portugal.
Memórias pessoais da primeira – bom, já não digo da votação da Constituição. Revi aquele momento e pensei que seria porventura o único presente nesta sala que tinha tido a oportunidade de ter votado a Constituição e estar ainda vivo e, perante vós a testemunhar aquele momento verdadeiramente histórico –, mas indo mais longe, memórias da revisão constitucional e do acordo, difícil acordo extraparlamentar - entre as lideranças dos dois principais partidos que viabilizaram a criação do Tribunal Constitucional -, até à elaboração do anteprojeto da Lei que ainda rege este Tribunal, por António Barbosa de Melo, José Manuel Cardoso da Costa e José Carlos Vieira de Andrade. E, depois, da apresentação e defesa da correspondente Proposta de Lei, pelo atual Presidente da República, então Ministro dos Assuntos Parlamentares, à procura e instalação no Palácio Ratton, com especial empenho do Primeiro-Ministro, Francisco Pinto Balsemão e do futuro Presidente do Tribunal, Armando Marques Guedes. E o essencial e primeiro ensaio complexo de entendimento entre os líderes dos dois principais partidos com assento parlamentar, Francisco Pinto Balsemão e Mário Soares, quanto aos nomes dos Juízes Conselheiros a submeter a voto da Assembleia da República.
Um tempo singular, só superado pelo revolucionário e pelo constituinte.
Um tempo, ademais, assinalado pela dificuldade da conclusão da revisão constitucional, no primeiro semestre de 1982, sobretudo no tocante à extinção do Conselho da Revolução, e à sua parcial substituição pelo Tribunal Constitucional e pela pré-anunciada dissolução da Assembleia da República, desde o termo desse mesmo ano de 82.
Quarenta anos volvidos, é impossível não olhar, com um misto de saudade e de curiosidade histórica, para esse agitado período tão marcante para a génese de um pilar cimeiro da nossa Constituição e da nossa Democracia.
Excelências,
Passando das memórias pessoais para as gratidões institucionais, não há como deixar de reconhecer que são muitas e intensas.
Aliás, tantas, que impossível se torna a todas abarcar. Pelas omissões, involuntárias, fica expressa a devida penitência.
De entre os vultos da pré-História, mais próxima, do Tribunal Constitucional, afigura-se justo referir, em lugar proeminente, os grandes constitucionalistas do novo regime: José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda e Vital Moreira e o da transição constitucional: Miguel Galvão Telles.
Mas, importa não esquecer, na vigência da Constituição de 1933 ou na antecâmara da Constituição de 76, além dos já citados, porque, por uma vez pelo menos, defensores de um Tribunal Constitucional, André Gonçalves Pereira, Rui Machete e Francisco Lucas Pires.
Imperioso é, ainda, na pré-História do Tribunal, agradecer aos membros da Comissão Constitucional – que aqui foi explicado, e bem, não era o Tribunal Constitucional -, mas que abriu o caminho ao, ainda incógnito, futuro. E fazê-lo nas pessoas daqueles que lhe deram legitimação académica e jurisdicional – evocando nomes como Eduardo Correia, Isabel de Magalhães Collaço, Jorge Miranda, Carlos Mota Pinto, Jorge Figueiredo Dias, Vital Moreira, Armindo Ribeiro Mendes, claro, sempre presente, José Manuel Cardoso da Costa, Messias Bento e Antero Monteiro Diniz.
Da História de quarenta anos ser-me-á permitido cumprimentar todos os relevantes protagonistas, a saber, todas e todos os Senhores Juízes Conselheiros, e, felizmente, aqui estão presentes várias e vários de sucessivas formações, nas pessoas dos sucessivos Presidentes: Armando Marques Guedes, José Manuel Cardoso da Costa, Luís Nunes de Almeida, Artur de Faria Maurício, Rui de Moura Ramos, Joaquim de Sousa Ribeiro, Manuel da Costa Andrade e João Pedro Caupers.
E, manda a verdade, que se junte aos Senhores Juízes Conselheiros os imprescindíveis e qualificados procuradores, assessores, e os incansáveis funcionários deste Tribunal.
Sem todas e todos quantos, no Tribunal Constitucional, ou em Entidades que agem por sua autoridade, na fiscalização das contas político-partidárias e das declarações de rendimentos de titulares de cargos políticos e dos altos funcionários do Estado, inviável seria apresentar quarenta anos depois tão significativa obra jurisdicional, doutrinária e cívica.
Excelências,
Não dispõe o Presidente da República de poder de iniciativa, nem de decisão, nem de livre promulgação, pedido de fiscalização preventiva, ou veto, em matéria de revisão constitucional.
Não dispõe, também, de poder de iniciativa ou decisão relativamente à lei estruturante do Tribunal Constitucional, embora disponha de livre intervenção quanto à promulgação, pedido de fiscalização preventiva, ou veto político.
Neste quadro, dita o bom senso institucional, que se abstenha de formular pistas de alteração constitucional ou legal num domínio tão sensível. Antecessores meus assim o fizeram, não sigo esse caminho.
Nada impede, porém, que o Presidente da República evoque algumas das principais dificuldades e sucessos usualmente recenseados por legisladores, observadores e aplicadores, ao longo destes variados e intensos quarenta anos.
Do lado das dificuldades, antigas ou recentes, se elencam as seguintes:
1ª. – a originalidade e complexidade de um sistema misto, conjugando fiscalização abstrata concentrada, de matriz austríaca, com fiscalização concreta desconcentrada, de matriz americana-brasileira, com unificação, por recurso, no Tribunal Constitucional;
2ª. – o sistema de designação dos juízes conselheiros, suas vicissitudes, seus compassos de espera, sua compaginação de linhas de força estáveis com as realidades das conjunturas;
3ª – em paralelo, a concertação entre orientações mais estáveis e outras mais sensíveis ao natural fluir das construções doutrinárias e técnico-jurídicas para não dizer da evolução económica, social, cultural e política das sociedades;
4ª. – a especificidade da fiscalização preventiva, por natureza mais atenta ao tempo que passa e, porventura, se possível, mais política;
5ª. – a conceção e o esvaziamento apreciável da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, legatária de uma visão originária e muito forte de Constituição dirigente;
6ª. – o equilíbrio entre o controlo mais criativo de alguns pares europeus e o controlo mais contido de outros desses pares, fruto do percurso nacional e de certos temas e tópicos;
7ª. – a ligação entre a fiscalização sucessiva concreta e abstrata e a ausência de recurso de amparo, tantas vezes reclamado para reforçar a proteção dos direitos fundamentais;
8ª. – as controvérsias recorrentes ou intermitentes em áreas como a unidade do Estado e os regimes autonómicos, a descentralização política e administrativa, o alcance e os limites dos estados de exceção, os contornos do regime económico, em geral e, em particular, em situações críticas;
9ª. – o papel objetivamente acrescido do Tribunal Constitucional no sistema constitucional português, nomeadamente, em instantes de fragilização, bloqueamento relativo ou temporário da sua capacidade de encontrar soluções políticas, sem o recurso ao Tribunal, nas suas vestes jurídicas;
10ª. – a capacidade de o Tribunal conseguir manter incólume o seu papel crucial e, ao mesmo tempo, preservar-se quanto ao poder de arbitragem que não possua o mínimo de justificação jurídico constitucional.
Do lado dos sucessos, que muitíssimos têm tido de reconhecer, é possível averbar:
1º. – a preocupação de retirar do sistema adotado na Constituição o maior número de virtualidades e o de tentar reduzir o maior número de riscos de excessos de ação ou de omissão:
2ª. – o constante esforço para minimizar as vicissitudes das renovações de titulares, as atempadas e as retardadas, e de gerir a designação dos cooptados;
3ª. – o zelo na busca de solidez e de consistência na jurisprudência firmada;
4ª. – a preocupação de, com meios muito limitados, acorrer a solicitações crescentemente mais exigentes, tentando dar coerência a opções doutrinárias e responder a situações em mutação e a escrutínio externo cada vez mais político e menos jurídico, cada vez mais incisivo e menos contemporizador;
5ª. – o comedimento, às vezes quase impossível, na ponderação de apelos a ruturas posicionais com caminhos vindos do passado;
6ª. – a cuidadosa resistência a converter o Tribunal em substituto dos outros órgãos de soberania, quando estes se encontram em perda momentânea ou com necessidade de alijar responsabilidades ou de solicitar a terceiros definições de certeza e segurança na interpretação ou aplicação do Direito;
7ª. – a disponibilidade para acorrer a missões cada vez mais complexas, fruto da relevância da Justiça Constitucional, da sucessão vertiginosa de dinâmicas e solicitações comunitárias, com recursos circunscritos e tempo escassíssimo.
Excelências,
Como é bem de ver, comparando o prato da balança das dificuldades recenseadas com o das realizações possíveis, pode haver, ao menos de quando em vez, quem de fora faça reparos – boa parte dos quais estritamente relacionados com condicionalismos prévios, constitucionais e legais, a que o Tribunal é alheio.
Nasceu e tem vivido com esses condicionalismos, mesmo quando reconhece o seu fardo e as suas exigências.
Não obstante, é claramente maioritário o entendimento de que, no quadro prédefinido, o Tribunal Constitucional tem singrado, reforçado o seu protagonismo, resistido às dúvidas ou suspeições de oscilação nos equilíbrios doutrinais, ideológicos e políticos, logrado não desmerecer, até superar, na qualidade da sua doutrina, a tradição e a experiência dos seus pares, sobretudo europeus.
E, isto, com permanentes apelos comunitários para que chame a si, direta ou indiretamente, controlos financeiros sobre a vida política, a transparência, o acesso a cargos de maior tomo, ou seja, a decisões nucleares no nosso sistema de governo.
Ironicamente, aqueles que o veem ou insinuam vê-lo, aqui e ali, como alinhado com aquilo que desaprovam, ao mesmo tempo, o invocam, em momentos de aperto, como instância ajustada para atuar supra partes e resolver os becos de saída mais ingratos na vida coletiva.
Em suma, sem se pronunciar sobre o que pensa existir a rever na Constituição e na lei, com as lições destes quarenta anos, o Presidente da República não pode deixar de admitir que é próprio da Democracia a divergência e a conflitualidade, quer nas soluções constitucionais, quer na sua aplicação na lei ordinária.
Tudo isto é próprio da Democracia.
Mas também é próprio da Democracia distinguir aquilo que a Constituição e a lei dizem e aquilo que o Tribunal pode fazer diante da Constituição e das leis vigentes.
E é próprio da Democracia lembrar que o Tribunal Constitucional nasceu no pósditadura, com a pré-História de uma Comissão Constitucional notável, mas enquadrada num processo tributário da transição revolucionária, e se afirmou de forma irreversível ao longo de quarenta anos.
E não num tempo muito superior qual seja o somatório de anos de outros Estados, nomeadamente europeus.
Quarenta anos. E quarenta anos em Portugal. Com a economia, a sociedade, a política e as crises que tivemos e temos. Quarenta anos com os partidos, os parceiros sociais, a sociedade civil e a Administração Pública que tivemos e temos.
Podia ter sido diferente e muito melhor?
O que foi, foi, e francamente muito bom. É credor da nossa gratidão jurídica, constitucional e cívica.
Não incondicional, porque há sempre muito a aprender e muito caminho a andar para todos os órgãos de soberania. E porque nada nem ninguém é perfeito, em qualquer tempo ou lugar.
Para o Presidente da República deste tempo, que foi constituinte em 75 e 76, e, então, começou a ensinar o que teve de esperar quase dez anos até ser realidade, a saber, um Tribunal Constitucional, mentiria se não dissesse que, naqueles primeiros dias, que na verdade foram anteontem na nossa vida coletiva, era puro sonho o que se transformou em realidade.
Mas depois há o futuro e esse não o trouxe escrito, suscitou-me no meu espírito aquilo que aqui foi dito por V. Excelência, Senhor Presidente do Tribunal Constitucional.
Costuma dizer-se que à medida que se avança no peso dos anos se é cada vez mais pessimista. Há exceções, mas são exceções. E eu tenho dificuldade em não partilhar algumas das preocupações de V. Excelência.
Em termos globais no momento em que assistimos ao nascimento de uma nova balança de poderes no mundo, não é ainda uma nova ordem internacional, demorará tempo a surgir, mas é certamente uma nova balança de poderes no mundo.
Também me preocupa o papel da União Europeia, e ele é tão importante, como aqui foi referido, no domínio da atuação do Tribunal Constitucional português como dos demais tribunais congéneres a nível europeu, porque a União Europeia defronta, nesta transição para nova balança de poderes, esta opção muito simples a de, de facto, corresponder à expetativa dos europeus de constituir um protagonista cimeiro na nova balança de poderes ou apenas um protagonista secundário nessa balança.
Isso depende de fatores uns intrínsecos e outros extrínsecos. Uns facilmente controláveis outros não controláveis. De entre os controláveis ou parcialmente controláveis a superação da fragilidade que os sistemas políticos, económicos e sociais europeus.
Não há instituições europeias e lideranças europeias fortes baseadas em sistemas nacionais fracos. E a realidade é que o conjunto de circunstâncias que apontou, de toda a ordem, têm fragilizado sistemas políticos democráticos, diríamos nós Estados de Direito Democráticos, no quadro europeu.
Nuns casos no domínio estritamente institucional noutros casos no domínio dos sistemas económicos e sociais.
Noutros, ainda, na aderência desses sistemas à evolução dos acontecimentos e à intervenção por várias formas dos povos europeus.
E essa é uma realidade que não pode deixar de condicionar a vivência das Constituições, a produção legislativa, as decisões políticas e, depois, inevitavelmente, e a título definitivo. o papel dos órgãos jurisdicionais e, neles, em particular do Tribunal Constitucional.
Significa isto, portanto, que ninguém está imune a esta tendência, em curso, de prognóstico indefinido e que será um desafio cimeiro para os próximos quarenta anos da vida do Tribunal Constitucional.
Excelências,
Agora é o futuro que vos interpela, que nos interpela depois de um passado que permite afirmar que o Tribunal Constitucional representou um bastião, um pilar crucial da nossa Liberdade, dos nossos Direitos, da nossa Democracia, da nossa constitucionalidade, do Estado de Direito Democrático.
Mas há mais Democracia a construir.
Há mais Esperança a recriar.
Algumas e alguns em nosso lugar, aqui, estarão, daqui a quarenta anos, para testemunhar quarenta anos volvidos que esse ciclo não desmereceu daquele que hoje celebramos virados para o futuro.