Gonçalo de Almeida Ribeiro
Conferência A Justiça antes e depois do 25 de abril
21 de março de 2024
Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian
Na versão originária da Constituição da República Portuguesa de 1976, entrada em vigor dois anos após o 25 de Abril de 1974, o principal órgão de justiça constitucional era o Conselho da Revolução. Este era composto pelo Presidente da República e por representantes das forças armadas, competindo-lhe aconselhar o Chefe do Estado, legislar em matéria militar, salvaguardar o espírito da revolução e garantir o cumprimento da Constituição. Nesta última vertente, o Conselho da Revolução exercia um controlo preventivo sobre os diplomas enviados para promulgação, emitia recomendações visando o cumprimento de deveres constitucionais de legislar e declarava a inconstitucionalidade de normas que lhe houvessem sido submetidas para apreciação. Em qualquer destes casos, a Comissão Constitucional, um órgão auxiliar composto por um membro do Conselho da Revolução, por juízes dos tribunais e por cidadãos de mérito, emitia parecer sobre a matéria. A Comissão Constitucional tinha ainda o poder de julgar definitivamente, nos casos concretos, a constitucionalidade de normas constantes de diploma legislativo ou decreto regulamentar cuja aplicação tivesse sido recusada pelos tribunais, após esgotamento dos recursos ordinários, ou de quaisquer normas por si anteriormente julgadas inconstitucionais que viessem a ser aplicadas pelos tribunais.
Este sistema de justiça constitucional resultou de um compromisso político. Na proposta inicial do Movimento das Forças Armadas, o Conselho da Revolução, enquanto órgão de justiça constitucional, ocupava o lugar que as democracias ocidentais do pós-guerra, como a República Federal da Alemanha e a República Italiana, tinham reservado a um tribunal especializado na garantia da constituição. Para além da competência de fiscalização abstracta da constitucionalidade, o Conselho da Revolução, no pensamento dos juristas que assessoraram os militares, apreciaria a constitucionalidade de normas a pedido dos tribunais, mediante um procedimento de reenvio prejudicial. Pelo contrário, na solução concertada com os partidos políticos na Segunda Plataforma de Acordo Constitucional, negociada após o 25 de Novembro de 1975, os tribunais conservavam o poder, que lhes tinha sido nominalmente atribuído desde a Constituição de 1911, sob influência brasileira, mas com raízes mais ou menos remotas e discutíveis no período da monarquia constitucional, de recusar a aplicação de normas que julgassem inconstitucionais, ainda que as suas decisões fossem agora recorríveis. Por outro lado, os partidos asseguraram que, nos recursos de constitucionalidade, a decisão definitiva coubesse, não ao Conselho da Revolução, mas à Comissão Constitucional, um órgão francamente menos político e que, não obstante a sua natureza não judicial, constituía uma jurisdição constitucional embrionária. O sistema repousava, assim, numa transacção ideológica, característica da versão originária do nosso quadro constitucional, entre um princípio de legitimidade revolucionária e um princípio de legitimidade democrática.
O Conselho da Revolução foi extinto com a revisão constitucional de 1982, que promoveu a normalização democrática do regime e as condições institucionais indispensáveis para a adesão europeia. As suas competências consultivas foram atribuídas a um reinstituído Conselho de Estado; a competência legislativa em matéria militar foi absorvida pelo Parlamento e o Governo; a função de salvaguarda do espírito da revolução foi obliterada e substituída por uma ideia, tradicional no nosso constitucionalismo, do Chefe do Estado como titular de um poder moderador; e a garantia do cumprimento da Constituição foi confiada a um novo órgão de soberania – o Tribunal Constitucional –, como sucedia nas democracias constitucionais alemã, italiana e espanhola. Ao contrário da generalidade dos tribunais constitucionais europeus, porém, o nosso não foi concebido como órgão único de justiça constitucional – concentrando em si todo o poder de julgar a conformidade constitucional de normas –, mas como órgão máximo nesse domínio, concentrando em si a função de fiscalização abstracta e apreciando recursos interpostos de decisões dos demais tribunais em fiscalização concreta. Isto deveu-se ao facto de a criação do Tribunal Constitucional não ter sido contemporânea da construção do sistema de justiça constitucional, tendo-lhe sido entregue o lugar originariamente reservado no âmbito deste ao Conselho da Revolução e à Comissão Constitucional – um lugar largamente ditado pelas contingências do período pós-revolucionário. A única novidade de monta no regime da fiscalização concreta foi a recorribilidade para o Tribunal Constitucional não apenas das decisões de recusa de aplicação de norma ou aplicativas de norma anteriormente julgada inconstitucional, mas ainda daquelas que aplicam normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no processo – a espécie de recurso largamente predominante nas quatro décadas de actividade da jurisdição constitucional.
São estas as origens do nosso modelo misto de justiça constitucional, um modelo assim caracterizado pela combinação peculiar dos traços essenciais dos dois modelos puros de justiça constitucional: o modelo difuso norte-americano e o modelo concentrado austrogermânico. Tal como no primeiro, no sistema português todos os tribunais podem julgar a constitucionalidade de normas, as suas decisões são passíveis de recurso ordinário e a decisão sobre a matéria produz efeitos exclusivamente no caso concreto. Tal como no segundo, temos um tribunal especializado na administração da justiça constitucional, composto por juízes designados de acordo com um método específico e com o poder exclusivo de expurgar a ordem jurídica de normas inconstitucionais. A reconciliação dos opostos realiza-se através de uma admirável ourivesaria jurídica, ainda que desconsoladora para espíritos geométricos, em que se podem discernir dois veios principais. Em primeiro lugar, a dicotomia entre a fiscalização abstracta da constitucionalidade – preventiva, sucessiva ou por omissão –, exclusivamente confiada ao Tribunal Constitucional, e a fiscalização concreta, em que a questão de constitucionalidade é um incidente de um pleito ordinário. Em segundo lugar, a figura do recurso de constitucionalidade, um pedido de reapreciação de uma decisão de outro tribunal mediante o qual é reservada ao Tribunal Constitucional a última palavra – uma palavra simultaneamente subsidiária e insindicável – sobre a constitucionalidade das normas aplicáveis nos casos concretos. Como o juízo de inconstitucionalidade, neste âmbito, só produz efeitos no pleito, a lei prevê a possibilidade de se organizar um processo de fiscalização abstracta que tenha por objecto uma norma julgada inconstitucional em três ou mais casos concretos e em que uma decisão de acolhimento tem força obrigatória geral – o expediente através do qual se assegura, como é bom de ver, a comunicação entre os hemisférios abstracto e concreto do sistema.
A criação do Tribunal Constitucional em 1982 foi a pedra-de-toque da nossa transição democrática, o momento em que o regime passou a integrar plenamente a família das democracias liberais. Esta afirmação pode parecer estranha ou exagerada num país em que não é incomum ouvir-se que o Tribunal Constitucional é um órgão político, cujos membros, indicados por partidos ou identificados com blocos ideológicos, carecem de independência e imparcialidade substanciais. Não falta mesmo quem defenda a extinção da jurisdição constitucional e a atribuição das suas funções a uma secção especializada de um dos supremos tribunais. Estas opiniões procedem de um duplo equívoco. Por um lado, ignoram que na generalidade dos países em que a justiça constitucional é administrada pelos tribunais comuns – como os Estados Unidos ou o Brasil –, a composição do supremo tribunal, quando não de todos os tribunais, é determinada por escolhas políticas. Nem poderia ser de outro modo: a justiça constitucional não é politicamente sensível por ser administrada por um tribunal com pergaminhos políticos, mas pela própria natureza das questões a que respeita e pelos efeitos extraordinários das suas decisões. Por outro lado, perde-se de vista que a preocupação com o equilíbrio ideológico da jurisdição constitucional não implica nenhuma assunção de que as suas decisões agregam as preferências eleitorais dos juízes ou se baseiam na correlação de forças políticas no colégio, mas na importância de prevenir a captura sectária de um órgão ao qual é confiada a missão de preservar os pressupostos mínimos da convivência civilizada, tolerante e razoável entre pessoas livres e iguais divididas por lealdades mundividenciais concorrentes. Oxalá esta arquitectura institucional moderadora e merecedora de confiança pública se mantenha imperturbada pelos humores da luta política e dos ciclos eleitorais.