José João Abrantes
Sessão de abertura da Conferência - Construção da Democracia e Justiça Constitucional
24 de outubro de 2024
Salão Nobre da Academia das Ciências de Lisboa
No que toca à separação e interdependência de poderes, o poder judicial assume o seu espaço e nele, especificamente para efeitos de administração da justiça em matérias jurídico-constitucionais, existe o Tribunal Constitucional.
A ele cabe a garantia da Constituição, dos direitos fundamentais dos cidadãos e do Estado de direito democrático. É ele, assim, uma trave mestra do regime democrático nascido a 25 de Abril de 1974, nas palavras de Sophia de Mello Breyner, “O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo” ou, nas de J. Carlos Ary dos Santos, o dia em que se abriram “as portas da claridade”.
Foi a Democracia que trouxe o Tribunal Constitucional, mas este tem também, juntamente com outros atores previstos na Constituição, ajudado a construir a Democracia, a consolidar e a aprofundar o Estado de Direito democrático.
Com a criação de uma instância jurisdicional de garantia do primado da Constituição e controlo da conformidade constitucional da atuação de um poder político democraticamente constituído, Portugal acompanhou o restante constitucionalismo ocidental, tendo-se a justiça constitucional convertido em condição de legitimação e existência de um Estado de Direito democrático.
A justiça constitucional é hoje encarada, com toda a naturalidade, como elemento imprescindível à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e a um funcionamento adequado das instituições democráticas, tal como aconteceu noutros ordenamentos jurídicos que transitaram, no pós-guerra, de regimes autoritários para o constitucionalismo democrático (Alemanha e Itália são exemplos expressivos).
Creio poder dizer-se que o Tribunal tem prosseguido a sua função de uma forma marcada pela prudência e pelo equilíbrio na sua intervenção, bem como pela qualidade científica demonstrada na sua jurisprudência. Por isso, e como consequência, a forma como as suas decisões têm sido acolhidas, quer pelas restantes jurisdições, quer pelos restantes atores políticos tem-se caraterizado por um enorme respeito por essas decisões, por si só, reflexo de um verdadeiro espírito democrático.
Nos últimos 40 anos, muitas foram as matérias sobre as quais o Tribunal se debruçou. Nesta Conferência, entendeu-se dar particular relevância a algumas delas, que tenham sido (i) marcas fundamentais do projeto de democratização saído da Revolução; (ii) em cujo desenvolvimento o Tribunal Constitucional teve um papel relevante; e, finalmente, (iii) sejam de indiscutível relevância presente e futura.
Assim, e durante o dia de hoje, teremos a oportunidade de ouvir e debater, num diálogo entre quem diz o Direito e quem o lê, sobre:
• Liberdades;
• Socialidade;
• Integrações e inclusões; e
• Justiça Democrática.
Permitam-me um comentário sucinto para cada uma destas matérias.
No que diz respeito às liberdades, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem-lhe permitido ser um fator de relevância ímpar na sua estabilização e consolidação, o que se reflete, sobretudo, numa jurisprudência amiga dos direitos fundamentais e dos valores em que assenta a República Portuguesa – neles se incluindo a liberdade de expressão e o pluralismo partidário.
Foi e é no domínio da socialidade que está mais presente o confronto que se pode verificar quando a aplicação da Constituição e a respetiva garantia da sua supremacia jurídica não só significa, por um lado, uma arbitragem entre posições políticas que se confrontaram no momento de emissão da norma objeto de controlo pelo Tribunal, como, por outro lado, se faz num contexto conflitual ou, no mínimo, de confronto de legitimidades, seja a legitimidade do legislador democrático, seja a legitimidade própria do exercício da função jurisdicional pelo Tribunal Constitucional. Na verdade, quando o Tribunal «diz o Direito» não está (nem pode estar) alheado das eventuais consequências políticas da sua decisão. É impossível não referir aquela que ficou conhecida como a Jurisprudência da Crise, por referência às decisões do Tribunal emitidas durante o último período de assistência económica e financeira a que Portugal esteve sujeito, e que, precisamente, diziam essencialmente respeito às questões do Trabalho e do Estado Social.
O 25 de Abril permitiu que deixássemos de ser um Estado «orgulhosamente só». Também a nossa jurisdição constitucional não é, nem pode ser, uma jurisdição isolada – pelo contrário, tem em devida conta não só as restantes jurisdições constitucionais dos outros Estados, em especial daqueles que fazem parte do chamado constitucionalismo ocidental, como também as jurisdições que decorrem de tratados do qual Portugal faz parte, em especial, às jurisdições do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O Tribunal Constitucional, em determinadas matérias – nomeadamente as relativas à imigração, asilo e aquisição da nacionalidade -, através de uma jurisprudência uniforme e muitas vezes convergente com outras jurisdições estrangeiras, tem sido essencial na garantia de uma integração e inclusão próprias de um regime democrático.
Um dos desafios do Tribunal Constitucional – um desafio permanente – é o aprofundamento da Justiça Democrática. Ora, este aprofundamento é sempre feito quando o Tribunal Constitucional se vê confrontado com novas e desafiantes questões, como sejam, por ex., a reserva de juiz e a reapreciação de decisões judiciais. O Tribunal Constitucional, quando confrontado com essas novas e modernas questões, desempenha o seu papel de verdadeira instituição de uma justiça constitucional.
Em geral, se percorrermos o acervo jurisprudencial do Tribunal Constitucional relativas a todas estas matérias, verificamos que os fundamentos das suas decisões – sejam estas decisões de inconstitucionalidade, sejam de não inconstitucionalidade – radicam nos princípios estruturantes do Estado de Direito democrático.
Faço aqui um parêntesis, para anunciar que o Tribunal e a Comissão Comemorativa dos Cinquenta Anos do 25 de Abril vão levar a cabo um concurso de ensaios originais dedicados ao tema ‘O princípio do Estado de direito democrático na jurisprudência do Tribunal Constitucional’, para estudantes de mestrado e de doutoramento de instituições de ensino superior portuguesas, não só de direito como de outras áreas disciplinares vizinhas (história, filosofia, sociologia, ciência política, etc.), podendo os trabalhos ser individuais ou em co-autoria. O júri do concurso é constituído pelo Senhor Presidente Emérito do Tribunal Constitucional José Cardoso da Costa, pela Professora Doutora Maria Inácia Rezola e pelo Professor Doutor Vitalino Canas. Criou-se uma página web especialmente dedicada a este concurso, onde poderá ser consultado o respetivo regulamento.
Termino como comecei: num Estado de Direito é indispensável que as decisões do poder político, por mais ampla que seja a maioria pontual que o sustente, respeitem as garantias e liberdades individuais e se conformem ao equilíbrio, separação e interdependência dos poderes constitucionalmente consagrados. Em última análise, aí está o Tribunal Constitucional a garantir que assim é e continuará a ser.
Não nos esqueçamos, porém, do longo caminho andado para aqui chegar. E não nos esqueçamos do primeiro passo que foi dado há 50 anos e que, permitindo que se iniciasse o projeto de democratização em Portugal, também culminou na criação de uma jurisdição e Tribunal constitucionais: a Revolução do 25 de Abril de 1974. Se hoje aqui estamos, se hoje vivemos em Democracia e em Liberdade, a ela o devemos.
Muito obrigado.