Marcelo Rebelo de Sousa
Sessão de encerramento da Conferência - Construção da Democracia e Justiça Constitucional
24 de outubro de 2024
Salão Nobre da Academia das Ciências de Lisboa
Na pessoa do Senhor Presidente Emérito, saúdo as raízes fundacionais da mesma Instituição, testemunha qualificada que foi, dos tempos em que não existia, obreiro que também foi da sua génese, quer antes da Comissão Constitucional, quer na Comissão Constitucional, que integrou, quer na revisão constitucional, que acompanhou, quer na Lei matriz, que, com António Barbosa de Melo e José Carlos Vieira de Andrade elaborou, quer no debate parlamentar, a que assistiu sessão após sessão, quer no arranque e, depois, na segunda Presidência, em que assegurou um papel insubstituível.
E aqui afasto-me do texto que tinha preparado depois da lição magnífica do nosso Mestre.
Primeiro, para agradecer e saudar a forma jurídica e, em geral, a forma intelectiva excecional em que se encontra, e que sempre se encontrou.
Mas há muito tempo que não fruímos aquilo que hoje pudemos fruir, uma lição notável sobre um tema que a todos importa.
E ouvindo a explanação da originalidade do modelo português, que de facto é muito original, e até me senti tentado a acrescentar mais duas vertentes da originalidade que não desenvolveu.
A chamada fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, que não teve, a partir de determinado momento, pela alteração do sentido atribuído à Constituição e, portanto, à sua fiscalização, o sucesso que os pais constituintes auguravam, e a fiscalização preventiva da constitucionalidade, que não sendo única no Direito português, é verdade que não é muito comum, noutros Tribunais Constitucionais, que tiveram uma história diferente, uma génese diferente e tem tido um percurso também diverso.
E, naturalmente, como imaginarão, como Presidente da República, tenho-me debruçado com muita frequência sobre esta segunda componente, não a primeira e, por princípio, com grande relutância no recurso a ela.
Algumas vezes esse recurso existiu, mas tive sempre a sensação de que a fiscalização preventiva tinha, não por demérito do Tribunal, mas pela sua própria conceção, riscos enormes de conjunturalismo, de visão imediata das circunstâncias, de peso do contexto no momento em que é suscitada e, portanto, de reforço naquele equilíbrio que tão bem analisou de uma das componentes do equilíbrio, a componente da realidade político-partidária de cada momento.
É verdade que o Tribunal Constitucional tem sabido ultrapassar isso, mas também é verdade que ajuda o não haver um recurso excessivo à fiscalização preventiva como forma de dirimir situações de equilíbrio ou de empate na cena política nacional.
Isso aconteceu, por vezes, no passado, é um risco no presente e no futuro, é uma virtualidade naquilo que permitiu ao Tribunal Constitucional desincumbir-se com prudência, inteligência e brilho, mas não deixa de ser, naturalmente, uma responsabilidade acrescida para quem é chamado a exercer esse tipo de controle.
Só para lhe explicar que de tão fascinado me encontrava com a explanação feita, e a diferenciação entre o nosso percurso e outros percursos, que me senti levado a acrescentar mais alguns pontos para além daqueles pontos fundamentais a que aludiu.
Excelências,
Como tenho dito, vezes sem conta, poucas são as Instituições cuja celebração – delas ou do seu contributo nacional – mais encha de júbilo o Presidente da República do que o Tribunal Constitucional.
Estudou Direito Constitucional, no tempo em que era um sonho impossível. Fez Curso Complementar de Ciências Político-Económicas logo após renovado debate académico, mas sem sucesso político possível sobre a sua criação, em 1971. De novo, acalentou o antigo sonho, como constituinte, tendo de esperar seis anos, até que por efeito do II Pacto MFA-Partidos fosse possível ver cessar o período de transição e pudesse defender - na Assembleia da República - a Proposta de Lei do Governo fundadora do Tribunal e de todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade de atos de poderes públicos. Ainda como governante, cooperou na tarefa inédita da instalação material da recém-nascida Instituição. Ensinou, décadas a fio, a Constituição que acolhera o Tribunal Constitucional e a relevância da sua singular função no novo ordenamento jurídico.
Foi, até hoje, o primeiro Presidente da República Professor de Direito Constitucional, e constituinte a naquele cargo poder cotejar teoria e prática, no relacionamento com o Tribunal Constitucional.
Excelências,
De 1982 até hoje são quarenta e dois anos de vivência democrática, com o contributo único do Tribunal Constitucional, a caminho de quarenta e três.
E, isto, não aditando a esses anos, alguns mais de uma pré-história, em como o recordou primorosamente o Presidente Emérito, a Comissão Constitucional abriu avenidas, forjou o espírito de corpo e estabeleceu quase jurisprudência, essencial para os tempos que se lhe seguiriam.
Tomemos os anos volvidos e sublinhemos áreas como as versadas no Encontro de hoje — doutrinárias, ideológicas, políticas, económicas, sociais, culturais.
Recordemos muitas, muitas outras, em que não foi menor o protagonismo do Tribunal Constitucional — forma do Estado, regime político, sistema de governo, regime económico, sistema social, desafios críticos em todos eles, e, claro, como se compreenderá, com primazia, direitos e deveres fundamentais, sua natureza, objeto, conteúdo, exercício, limites, restrições e compatibilização.
E, sempre, conjugação de valores, princípios e regras constitucionais.
Ou seja, resumindo, axiologia, contexto estrutural, decisão política e normatividade.
Excelências,
No dealbar, nos anos 80 e 90, para não dizer fim dos anos 70, se se incluir a pré-História, tal como na viragem do século, ou nos cerca de vinte e cinco anos no século XXI, não houve passos diferentes, entendimentos diversos, juízos distintos, desafios mais fáceis ou mais difíceis, escrutínios mais pacíficos e escrutínios mais exigentes, acerados ou contundentes? Sem dúvida que os houve.
Mas, a isso se chama Democracia, a que a garantia da Constituição não é realidade nem alheia nem indiferente.
Em Democracia respeitar o que deve ser respeitado não impede o exercitar a liberdade natural de pensar e exprimir concordância ou discordância, consenso ou dissenso.
E, a meu ver, não devem esquecer-se, nunca, algumas evidências, que, de tão óbvias, correm o risco de nunca serem tidas em conta e, muito menos, expressas.
Citarei, apenas, três.
Primeira — A Constituição que nos rege hoje, vigora desde 1976 e é tratada como a mesma, uma só, ao longo de quase cinquenta anos.
Mas, a verdade é que dimensões nucleares da sua substância mudaram, e muito, por força de importantes revisões. E digo isto tanto mais à vontade quando fui constituinte votei a favor da Constituição, e votei, mesmo, a favor de muitas das disposições da Constituição económica e social mais do que a bancada a que pertencia então.
Por exemplo, o regime político do pós-1982, tal como o sistema de governo, era em vários dos seus traços e é bastante diverso do regime do pré-1982.
O mesmo se diga por maioria de razão do regime económico e do regime social. Um de 76 a 82, outro de 82 a 89, e outro, bem diverso, de 89 em diante.
Estes exemplos são os mais óbvios. Mas poder-se-ia juntar, no pormenor, outros ainda.
Segunda — mesmo onde a letra da Constituição não mudou, como acontece em todo o Direito, pode ter mudado — e mudou, certamente, amiúde —, a interpretação objetivista e atual dessa letra.
E, nestes quase cinquenta anos, o que não faltou foi tempo acelerado nos factos, nas situações, na realidade objetiva sucessivamente atual.
Terceira — tão intensas têm sido as mudanças que, além de a realidade se alterar, se alteraram quadros mentais ou sua concretização em perceção. Já que novas formas de pensamento jurídico, de construção dogmática, de encadeamento entre o pensado e o explicitado, vão despontando outras, antigas, conhecendo desfavor ou reformulação de grau diverso.
Quem ensinou ou ensina Direito percebe-o muito bem. No domínio dos temas como na própria linguagem utilizada. Não é o mesmo tratamento há 40 anos, há 30 anos, há 20 anos, há anos ou hoje.
Isto para dizer que o mais importante, o decisivo é o apurar se uma Instituição pilar da Democracia, no caso vertente o Tribunal Constitucional, foi, ou não, como V. Exa. sublinhou, as mais das vezes determinante para a própria vivência, vitalização, atualização, capacidade de ligar passado-presente e futuro da própria Democracia.
Como Presidente da República Portuguesa, a minha resposta é, inequivocamente, afirmativa.
Como cidadão, e até como eterno estudante de Direito Constitucional, diria o mesmo.
Mas há domínios, meios, instrumentos, orientações, decisões ou deliberações que não colhem avisos idênticos e tão afirmativos — dirão uns.
Há períodos variados e juízos não homogéneos sobre alguns eles — dirão outros.
Repito — mas essa é a riqueza da Democracia.
Não ser uma ditadura, nem no poder que lhe dá corpo, nem na apreciação cidadã sobre esse poder.
Excelências,
Temos, em 2024, uma Democracia que nunca não tivemos em longuíssima História da nossa Pátria.
O Tribunal Constitucional, todos os dias, trabalha para lhe dar futuro.
Por esse contributo quotidiano lhe estamos gratos.
Em nome de Portugal.