Discurso de Sua Excelência o Presidente da República por ocasião da Sessão Solene comemorativa do XX Aniversário do Tribunal Constitucional
Jorge Sampaio
Sessão Solene comemorativa do XX Aniversário
do Tribunal Constitucional
27 de novembro de 2003
Mosteiro dos Jerónimos
A celebração de efemérides constitucionais como a que hoje
nos reúne tende a repetir-se, cada vez com mais frequência nos
Estados de Direito que nos são mais próximos. Nesta verificação
não vem envolvida qualquer menorização deste tipo de acontecimentos,
mas antes o reconhecimento de um dado de facto que, felizmente, tem caracterizado
o constitucionalismo ocidental a partir da segunda metade do século XX.
E esse dado é o da estabilidade e da confluência constitucionais
que, precisamente, dão azo a este tipo de celebrações:
estabilidade nos textos das Constituições nacionais e nas instituições
que delas emanam; uniformização das práticas das jurisdições
constitucionais dos diferentes Estados em torno dos mesmos princípios
estruturantes; aproximação, convergência e integração
nas relações internacionais.
Permitam-me que aproveite a justa celebração do XX Aniversário do Tribunal Constitucional para abordar aspectos deste património comum de estabilidade e convergência do constitucionalismo ocidental e de primazia atribuída aos valores e princípios que fundam o Estado de Direito, que talvez não sejam, entre nós, tão apreciados ou reconhecidos como deviam. Vou, assim, tecer algumas considerações sobre o papel da justiça constitucional, especialmente do Tribunal Constitucional, no equilíbrio dos poderes do Estado e na defesa dos direitos e liberdades fundamentais e abordarei, seguidamente, o problema da estabilidade constitucional.
Em primeiro lugar, uma referência positiva capital neste domínio é devida ao sucesso obtido pela instituição de uma verdadeira justiça constitucional e, particularmente, ao papel aí desempenhado pelo Tribunal Constitucional, o que nos coloca perfeitamente a par do sentido da evolução verificada na Europa Ocidental.
No seguimento da excelência da jurisprudência pioneira da Comissão Constitucional, o Tribunal Constitucional tem sido, nos últimos vinte anos, um factor de relevância ímpar na estabilização e consolidação de um Estado de Direito. Como tenho assinalado noutras ocasiões, estes resultados devem-se em grande medida à prudência e equilíbrio da intervenção do Tribunal, mas, sobretudo, à qualidade indiscutida de uma jurisprudência amiga dos direitos fundamentais e dos valores em que assenta a República Portuguesa. Daí resulta que, mesmo nos momentos de maior tensão política ou comoção pública, a intervenção do Tribunal Constitucional seja normalmente recebida, pela generalidade dos actores políticos, pelos governantes e governados e pelas restantes jurisdições, com a naturalidade de elemento imprescindível à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e a um funcionamento adequado das instituições democráticas. É este um património valioso que devemos proteger, acarinhar e prosseguir.
Gostaria de salientar particularmente a importância e os resultados obtidos da intervenção do Tribunal Constitucional em dois domínios onde, precisamente, ela tenderia a ser mais controversa, ou seja, nos domínios da fiscalização preventiva e da fiscalização concreta.
A fiscalização preventiva apresenta características próprias que se manifestam, desde logo, entre outras particularidades, na especial natureza da decisão que se solicita ao Tribunal Constitucional.
Quando Presidente da República e Ministros da República suscitam a intervenção do Tribunal Constitucional em sede preventiva não estão a antecipar uma qualquer censura da actuação dos agentes do poder político, nem, tão pouco, precisam de estar convictos da existência de inconstitucionalidades. Nos termos da Constituição, na fiscalização preventiva aquelas entidades não requerem a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, mas suscitam somente a apreciação da sua constitucionalidade.
Todavia, se isto é assim no estrito rigor dos princípios jurídicos, é indesmentível o impacto que um pedido com esta natureza e a decisão que se lhe segue sempre projectam sobre o processo legislativo e sobre o contexto político em que ele se desenvolve. De resto, a fiscalização preventiva foi sempre, desde a aprovação da Constituição, terreno fértil para a crítica ao Tribunal Constitucional como órgão político, já que é normalmente aí, quando ainda não há verdadeiramente acto legislativo, que a decisão do Tribunal Constitucional funciona, de alguma forma, como arbitragem do debate, por vezes ainda em curso, entre as diferentes forças políticas. Neste sentido, a fiscalização preventiva empurra objectivamente o Tribunal Constitucional para a arena da luta política e estimula as extrapolações jornalísticas, por vezes lamentáveis, sobre o sentido e as pretensas razões extra-jurídicas do voto dos Senhores Conselheiros.
Devo dizer, porém, após os anos que levo de exercício da função presidencial, que reforcei positivamente as convicções pessoais que sempre tive sobre a justificação da fiscalização preventiva e os proveitos que dela retira o sistema político. Pesando vantagens e desvantagens, considero que o balanço é largamente favorável à existência da fiscalização preventiva e, mais, que o seu abandono ou desvirtuação significariam uma perda considerável para o equilíbrio institucional dos poderes e para o bom funcionamento do nosso Estado de Direito.
No âmago da razão de ser da fiscalização preventiva está, obviamente, a tentativa de impedir ou filtrar a entrada em vigor de normas e diplomas inconstitucionais, com todo o conjunto de problemas que daí adviriam para o sistema constitucional no seu todo e para as garantias individuais. De facto, muitas das vezes a simples entrada em vigor de uma norma, com a imediata produção de efeitos jurídicos, cria situações de muito difícil ou até impossível reparação. A possibilidade de atalhar, em tempo útil, as inconstitucionalidades, sobretudo quando elas são mais evidentes ou de consequências mais dificilmente reparáveis constituiria, por si só, factor justificativo do instituto. Mas, as vantagens da fiscalização preventiva vão muito para além disso.
Não raras são as situações em que as suspeitas e divergências jurídico-constitucionais — que muitas vezes ensombram a necessária clareza do debate político— apenas se dissipam ou apaziguam através da intervenção e arbitragem clarificadoras do Tribunal Constitucional, permitindo, só então, a recondução do debate para o domínio das opções políticas que estão em causa. Não fôra este instituto e, relativamente às leis mais importantes e, por isso mesmo, mais controversas, os agentes políticos e administrativos ver-se-iam, por sistema, na ingrata situação de ter de aplicar normas em vigor sobre as quais perduravam suspeitas de inconstitucionalidade.
Os particulares teriam, por sua vez, de viver por muito tempo na insegurança de poderem a todo o momento ver postas em causa as relações jurídicas estabelecidas sob a égide de normas de duvidosa e discutida constitucionalidade que quando entraram em vigor já estavam enfraquecidas por essas suspeitas.
Por último, mas não menos importante, a fiscalização preventiva funciona, mesmo que imperceptivelmente, como factor de dissuasão da tendência natural que as maiorias no poder têm para se exceder na forma de alcançar os objectivos que perseguem. Sem o risco de verem as suas opções escrutinadas preventivamente à luz do respeito para com a Constituição — com o desgaste político que uma decisão de inconstitucionalidade sempre acarreta —, as maiorias seriam seguramente mais autocomplacentes, mais tentadas a explorar os efeitos do facto consumado, e a voz e os argumentos das oposições e das minorias seriam menos tidas em conta. Os riscos que da confluência desses factores resultariam para as liberdades individuais e os direitos das minorias seriam consideravelmente acrescidos.
E é exactamente neste domínio — o da defesa e protecção dos direitos fundamentais — que me parece de toda a justiça salientar também o papel que, porventura na função mais mediaticamente desconhecida da sua actividade, a da fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional vem desempenhando.
Também aí, tal como acontecia na fiscalização preventiva, as condições objectivas de intervenção do Tribunal Constitucional não são as mais favoráveis, já que o nosso complexo sistema de fiscalização envolve directamente o Tribunal Constitucional no julgamento de processos em curso e coloca-o frequentemente na posição de obrigar os tribunais comuns, incluindo os tribunais superiores, a reformarem decisões já tomadas no processo.
Assim, só uma atitude de contenção, mas, simultaneamente, de apego estrito aos princípios constitucionais tem permitido que a jurisprudência do Tribunal Constitucional se tenha aí podido desenvolver sem reservas ou objecções significativas por parte dos diferentes operadores jurídicos e, sobretudo, tenha desempenhado um papel inexcedível na defesa de valores constitucionais que, com demasiada frequência, são indevidamente preteridos nas jurisdições comuns. E, sem prejuízo das virtualidades da intervenção do Tribunal Constitucional como guardião da Constituição e das liberdades fundamentais, valerá a pena determo-nos mais demoradamente nas razões dessa preterição.
Entre essas razões não está, seguramente, um menor empenho na administração de uma justiça adequada aos valores de um Estado de Direito ou uma qualquer falta de habilitação intrínseca. A deficiência também não residirá nas leis, pois ao abrigo dos mesmos parâmetros legislativos encontramos boas e más decisões. De resto, se tivéssemos que alterar as leis — e essa é sempre a resposta mais fácil— cada vez que elas são mal aplicadas, não haveria sistema legislativo que resistisse.
Talvez valha a pena interrogarmo-nos se estaremos a proporcionar aos nossos juristas uma preparação académica e uma formação profissional adequadas às exigências actuais de um Estado de Direito, um Estado que tem sido justamente caracterizado como Estado de direitos fundamentais. Essa dúvida ganha nova consistência quando, atentos às perplexidades que sacodem a comunidade jurídica, verificamos simultaneamente que seguramente mais de 90% dos nossos magistrados judiciais, dos magistrados do Ministério Público e dos advogados nunca tiveram, ao longo de toda a sua formação universitária e profissional, uma simples disciplina de Direitos Fundamentais. Mais grave ainda, esta percentagem é igualmente válida para as gerações mais novas, incluindo para aquelas que estão agora a sair das nossas Faculdades de Direito.
E se quanto aos direitos fundamentais as deficiências são chocantes, também quanto ao Direito Constitucional, no seu todo, o défice é pouco menor. Na maior parte dos casos, deste ramo do Direito resta, na memória dos nossos juristas, uma ténue reminiscência do que ficou do conglomerado de informação transmitida no primeiro ano das Faculdades de Direito. Da Constituição prevalece a imagem de uma coisa de políticos que serve para alimentar ciclicamente os noticiários, mas que não interfere na administração da justiça nem importa estudar seriamente até porque, como é sistematicamente revista, mais vale esperar pela revisão do ano seguinte para ver o que aí vem.
E, todavia, o tema dos direitos fundamentais, da sua protecção e promoção, e dos princípios constitucionais que estruturam o nosso Estado de Direito atravessa ou deveria atravessar as inquietações quotidianas de quem labora na administração da justiça. Essas deveriam ser preocupações centrais que, contudo, correm o risco de não ser devidamente assumidas quando na base está uma cultura jurídica deficientemente alicerçada ou até de prioridades invertidas: o jurista procura exclusivamente na lei as respostas que estão prioritariamente na Constituição e tende a encarar a lei como se de regras de aplicação mecânica se tratasse, quando muitas das vezes o seu sentido não será adequadamente percebido se não se tiverem na devida conta os princípios constitucionais que concretiza.
No que vem dito não está implícita nem pode ler-se uma qualquer ideia de sacralização dos direitos fundamentais ou de que eles devem prevalecer indiferentemente sobre os outros valores que o Estado de Direito está também obrigado a prosseguir. É que, precisamente, como em Estado de Direito todas as funções e fins do Estado estão, tal como os direitos fundamentais, orientados à protecção e promoção da dignidade da pessoa humana, então não há prevalências absolutas e só uma adequada ponderação feita à luz dos grandes princípios constitucionais pode conduzir a uma administração adequada da justiça.
Tão pouco se pode ver nestas palavras uma qualquer identificação entre o sentido constitucional dos direitos fundamentais e a sua invocação por parte de quem normalmente recorre ao Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização concreta. Parafraseando algo que disse há uns tempos e de que quase todos gostaram muito, diria, agora, que há direitos fundamentais para lá dos recursos dos advogados de defesa.
Perante as deficiências assinaladas, resta muitas vezes às jurisidições comuns, para contrariar aquelas tendências objectivas, o impulso positivo que recebem do Tribunal Constitucional. E este impulso, diga-se, tem sido e será cada vez mais decisivo para uma mudança nas práticas e na cultura jurídicas.
O Tribunal Constitucional produz centenas de decisões no domínio da fiscalização concreta. E mesmo quando só as mais mediáticas chegam ao conhecimento da opinião pública, o serviço que aí presta à consolidação do Estado de Direito é inestimável. Mas, pese embora o contributo extraordinariamente positivo da jurisprudência constitucional no domínio da fiscalização concreta, permanecem, ainda, porventura não satisfatoriamente resolvidas, entre nós, algumas questões capitais neste domínio.
Refiro-me, concretamente, à cada vez maior necessidade em distinguir e tratar diferenciadamente o que são recursos legítimos à intervenção do Tribunal Constitucional para assegurar uma tutela plena das liberdades fundamentais contra quaisquer actos que as afectem decisivamente e recursos ao Tribunal Constitucional como mero intuito dilatório sem qualquer ganho para a defesa dos direitos fundamentais ou de uma boa administração da justiça. É que hoje, no nosso sistema de fiscalização, os primeiros nem sempre estão plenamente assegurados e os segundos só muito limitadamente podem ser impedidos.
Como não está garantida, entre nós, a queixa directa dos cidadãos ao Tribunal Constitucional, só uma interpretação generosa do Tribunal Constitucional tem permitido que o cidadão a ele possa aceder para defesa dos seus direitos fundamentais e o possa fazer mesmo quando não está verdadeiramente em causa a inconstitucionalidade de uma norma, mas tão só a eventual inconstitucionalidade de uma intervenção restritiva da administração ou dos tribunais. Porém, quando a essa generosidade do Tribunal Constitucional acresce a possibilidade de recorrer invocando qualquer tipo de inconstitucionalidade, a consequência inevitável é a da utilização abusiva do recurso ao Tribunal Constitucional com intuitos meramente dilatórios.
Bom seria que aqueles que mobilizam parte exagerada das suas energias para o tema das revisões constitucionais, dedicassem alguns esforços a reflectir sobre este problema.
E com esta referência a uma mobilização de esforços eventualmente dirigidos na direcção errada, entro no outro tema que pretendo tratar, isto é, o da estabilidade constitucional.
Está hoje cada vez mais adquirido que ninguém ganha com o chamado frenesim da revisão constitucional, ou seja, com a obstinação em rever a Constituição de tantos em tantos anos, como se isso fosse uma imposição inescapável, mesmo quando não há qualquer necessidade objectiva que a isso obrigue. Ora a permanente instabilidade e mutação constitucional degrada inevitavelmente a Constituição e mina a sua força normativa.
Ao longo do exercício das minhas funções presidenciais já promulguei duas leis de revisão e interrogo-me, seriamente, mesmo conhecendo os limites temporais do meu mandato, quantas mais serei obrigado a promulgar.
Nos últimos vinte anos tivemos, entre nós, cinco revisões e mais uma que está em curso. Revisões que alteraram a forma ou o conteúdo da maioria dos artigos, alteraram princípios fundamentais, direitos fundamentais, a parte económica, a organização do poder político, a garantia da Constituição; alteraram a numeração da maior parte dos artigos; suprimiram e acrescentaram disposições. Só o Preâmbulo, por enquanto, resistiu.
Aqui ao lado, em Espanha, comemoram-se agora os 25 anos da Constituição de 1978. Perguntaremos então, se quisermos estabelecer uma comparação, quantas revisões também terá havido em Espanha neste período, atendendo sobretudo aos problemas político-constitucionais do Estado espanhol que não são, seguramente, menores e menos complexos que os nossos: os problemas da transição democrática, das autonomias, do terrorismo, da integração europeia. Pois em Espanha, neste mesmo período, houve quanto a revisões constitucionais uma revisão. Repito, uma revisão constitucional em 25 anos e, mesmo essa, foi feita por força do Tratado de Maastricht e limitou-se a acrescentar duas palavras no art. 13, n2: onde estava "direito de sufrágio activo" está agora "activo e passivo". Foi tudo, em 25 anos!
É uma comparação notável.
Dir-se-á que essa diferença abissal se fica a dever à natureza da Constituição de 1976, ao seu conteúdo ideológico originário, à sua estrutura rígida. Duvido que essa seja a boa explicação ou, pelo menos, que seja, hoje, uma boa explicação. Pois se esses factores podem ter condicionado a necessidade das duas primeiras revisões, qual é, hoje, a política que está a ser bloqueada por força da Constituição? Qual o programa de governo que não pode ser realizado porque a Constituição o impede? Quais as soluções para os graves problemas que nos afectam que não podem ser aplicadas porque a Constituição não o permite?
É verdade que a Constituição condiciona e limita a actuação dos titulares do poder político. Mas não é esse o papel de uma Constituição em Estado de Direito?
Percorra-se o notável acervo de jurisprudência do tribunal cujos 20 anos aqui celebramos. É verdade que aí encontramos inumeras decisões de inconstitucionalidade, o que, de facto, prova que temos uma Constituição normativa, uma Constituição que foi feita com a intenção de limitar as maiorias no poder e que cumpre esse objectivo. Mas quando verificamos os fundamentos dessas decisões de inconstitucionalidade, concluímos que elas não se devem a quaisquer bizarrias ou particuralismos da nossa Constituição, mas são, na sua esmagadora maioria, mera aplicação de princípios vigentes em qualquer ordem jurídica de Estado de Direito.
Permitam-me que cite, a título de exemplo, dois dos Acórdãos mais controversos tirados a propósito de dois recentes pedidos de fiscalização preventiva que dirigi ao Tribunal Constitucional, incidindo sobre o Código Laboral e sobre o Rendimento Social de Inserção. Nos dois casos o Tribunal Constitucional viu razões constitucionais para decidir pela inconstitucionalidade de algumas normas e, nos dois casos, multiplicaram-se os habituais comentários sobre a "Constituição como obstáculo ao desenvolvimento" e, logo, concluía-se, evidente necessidade de mais revisão constitucional.
Mas quais foram as razões que fundamentaram essas decisões de inconstitucionalidade? Entendeu o Tribunal Constitucional que as normas em causa violavam os seguintes princípios constantes da nossa Constituição: princípio da dignidade da pessoa humana; direito à reserva da intimidade da vida privada; princípio da legalidade; direito à greve; direito à contratação colectiva.
Mas então que melhorias pode uma revisão constitucional introduzir na nossa Constituição? Suprimir estes princípios que, explícita ou implicitamente, constam de qualquer Constituição de Estado de Direito como património mínimo adquirido em duzentos anos de constitucionalismo?
Se o Tribunal Constitucional diz que uma norma é inconstitucional por violar o princípio da dignidade da pessoa humana ou o direito à reserva da intimidade da vida privada, a forma de resolver o problema é responsabilizar a Constituição e suprimir estes princípios da nossa ordem constitucional? Obviamente, a única resposta admissível em qualquer Estado de Direito é, antes, a da adequação da legislação em causa a esses princípios inderrogáveis à luz da consciência jurídica do nosso tempo.
Não se infira daqui que sou contra toda e qualquer revisão constitucional. Se ela for a forma mais adequada de resolver um problema verdadeiro não vejo que deva haver qualquer reserva de princípio à adaptação da Constituição. E, com isso, quero apenas deixar uma última nota sobre a questão do Tratado que institui uma Constituição para a Europa.
Sendo esse tratado da maior importância para o futuro comum dos povos da Europa, é normal e positivo que seja debatido com o maior interesse por parte de todos. O empenhamento e, até, a paixão que ele tem despertado nos mais diversos quadrantes são de enaltecer.
Nota-se, porém, que, entre nós, a tónica deste debate, diferentemente do que acontece na generalidade dos restantes países, tem estado concentrada quase exclusivamente numa única questão, a do primado do direito emanado da União Europeia sobre as Constituições nacionais, o que, de alguma forma, pode obscurecer a importância dos restantes temas em discussão.
Em todo o caso, e qualquer que seja a posição que cada um de nós tenha sobre o problema, há, a este propósito, um dado de facto que parece irrecusável e que é o seguinte: a consagração do referido primado do direito europeu nos termos em que é estabelecido coloca-nos um problema jurídico-constitucional que não podemos ignorar e independentemente de qual seja a posição que os restantes Estados-membros entendam tomar ou não sobre ele.
Face às dúvidas de constitucionalidade tão persistentemente suscitadas entre nós, o Presidente da República só quer e pode, de momento, assegurar aos portugueses e às diferentes forças políticas o seguinte: a persistirem, até ao momento da eventual ratificação do tratado, as razões que dão corpo àquelas dúvidas, o Presidente da República não deixará de chamar o Tribunal Constitucional a pronunciar-se.
Atendendo à importância crucial que para nós representa a integração europeia, importará que, nessa altura, o Tribunal Constitucional e as autoridades portuguesas não se vejam colocados numa situação que objectivamente nos enfraqueça perante os nosso parceiros.
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhores Conselheiros,
Congratulo Vossas Excelências pela comemoração destes vinte anos de Tribunal Constitucional, mas, sobretudo, estamos todos de parabéns pelo sucesso da instituição de uma verdadeira justiça constitucional no Portugal democrático e pelos resultados notáveis da actividade desenvolvida pelo Tribunal Constitucional.
Continuem Vossas Excelências o vosso labor na forma como o têm feito até aqui que o serviço que assim prestam à Justiça e à República Portuguesa é inestimável.