Luís Nunes de Almeida
Sessão Solene comemorativa do XX Aniversário
do Tribunal Constitucional
27 de novembro de 2003
Mosteiro dos Jerónimos
No dia 6 de abril de 1983, na sequência da 1 revisão constitucional,
entrou em funções o Tribunal Constitucional.
Vinte anos volvidos, é natural que se tenha pretendido comemorar a efeméride, embora com o atraso resultante das alterações ocorridas na composição do Tribunal e, designadamente, na sua presidência e na sua vice-presidência, justamente durante o mês de abril. Mas se a devida comemoração se atrasou, não deixa, porém, de ocorrer com a maior solenidade, de que é sinal a presença de Vossas Excelências, Senhor Presidente da República, Senhor Presidente da Assembleia da República, Senhor Primeiro-Ministro e Senhores Presidentes dos Tribunais Supremos, legítimos representantes de todos os demais órgãos de soberania.
Em primeiro lugar, cumpre-me saudar respeitosamente Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, sublinhando quanto estimula o Tribunal Constitucional não só a participação de Vossa Excelência nesta sessão solene, mas também as sucessivas demonstrações de apreço que manifestou a esta instituição ao longo dos seus mandatos. O Tribunal Constitucional, órgão jurisdicional especialmente vocacionado para assegurar o respeito pelos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, não pode deixar de se sentir subidamente honrado pelo facto de o acto comemorativo do seu XX aniversário ser presidido por Vossa Excelência, Senhor Dr. Jorge Sampaio, que, desde a juventude, como cidadão, como advogado, como político e como membro da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, pautou a sua vida pelos padrões da liberdade, do pluralismo e do respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana. Compreenderá Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, como me é pessoalmente grata a circunstância de me caber hoje o dever de lhe endereçar esta saudação institucional e como não posso deixar de cumprir esse dever com uma muito particular emoção pessoal.
O Tribunal Constitucional recebe a sua legitimidade, directa ou indirectamente, de uma eleição efectuada no Parlamento, por maioria qualificada. Essa legitimidade de origem, indispensável para um exercício eficaz das funções que lhe estão cometidas, é algo de que os juízes deste Tribunal se orgulham, porquanto reconhecem que na «assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses», símbolo e expressão do pluralismo político, assentam os fundamentos da democracia representativa. Também por isso, Senhor Presidente da Assembleia da República, nos sentimos igualmente muito honrados e agradecidos pela presença de Vossa Excelência, bem como pela dos ilustres Senhores Deputados que aqui se deslocaram.
Idêntica manifestação de agradecimento é devida a Vossa Excelência, Senhor Primeiro-Ministro, e bem assim aos restantes membros do Governo que nos dão a honra de assistir a esta sessão. É que, para além do mais, é minha obrigação dar público testemunho da continuação da pronta e eficaz colaboração institucional que o Governo tem prestado a este Tribunal, designadamente dando célere resposta positiva aos problemas de índole administrativa que lhe são colocados e não hesitando em remover de imediato quaisquer obstáculos burocráticos que possam surgir. Creia, Senhor Primeiro-Ministro, que, por banda deste Tribunal, esse espírito de boa colaboração também se manterá, designadamente no que se refere ao contributo que puder continuar a dar ao esforço de contenção da despesa pública, sem prejuízo do exercício das competências que a Constituição e a lei lhe cometem.
Aos tribunais cabe, nos termos da Constituição, «administrar a justiça em nome do povo». O exercício da função jurisdicional pressupõe independência e imparcialidade, características que o Tribunal Constitucional partilha com os restantes tribunais e, por isso, também ele é um tribunal, embora disponha de competências próprias que levam a Constituição a considerá-lo como um órgão de soberania autónomo. Ora, enquanto tribunal, o Tribunal Constitucional reparte, com todos os outros tribunais, responsabilidades – que não enjeita – na administração da justiça e a preocupação essencial de que continuem a ser asseguradas as garantias de independência e imparcialidade que protegem os órgãos jurisdicionais e os seus titulares contra quaisquer formas de pressão, provenham elas de onde provierem. Por isso, existe uma particular solidariedade institucional entre o Tribunal Constitucional e os demais tribunais, aqui hoje traduzida na presença dos mais altos representantes das outras ordens de jurisdição. A Vossas Excelências, Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Militar, as nossas cordiais e amigas saudações.
Simultaneamente com estas comemorações, decorre mais um encontro anual tripartido entre os tribunais constitucionais da Itália, de Espanha e de Portugal, este ano dedicado à futura articulação dos tribunais constitucionais com o Tribunal de Justiça Europeu e com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na perspectiva da aprovação de uma Constituição Europeia que inclua a Carta dos Direitos Fundamentais. Aproveito, assim, para uma fraterna saudação aos insignes juristas que desempenham as funções de Presidente do Tribunal Constitucional de Espanha, Prof. D. Manuel Jiménez de Parga e de Vice-Presidente do Tribunal Constitucional de Itália, Prof. Gustavo Zagrebelsky, bem como aos ilustres membros das respectivas delegações.
Agradeço, também, em nome do Tribunal Constitucional, a presença de todos Vossas Excelências, Altas Autoridades e Senhoras e Senhores Convidados, permitindo-me uma referência especial aos que connosco partilham, nesta casa, um quotidiano labor em prol da Justiça Constitucional: refiro-me aos magistrados do Ministério Público e aos advogados, representados nesta tribuna, respectivamente, pelo Senhor Procurador-Geral da República e pelo Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados. A ambos manifestamos a muita honra e prazer de os termos connosco.
Seja-me permitido, finalmente, saudar com muita gratidão, os antigos presidentes e os outros antigos juizes deste Tribunal, que, pouco a pouco, o foram edificando e consolidando, com a sua vontade e a sua inteligência.
Senhor Presidente da República
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhoras e Senhores
Após vinte anos de intensa actividade, a primeira conclusão que podemos seguramente tirar é a de que, ao invés do que aconteceu no início do seu labor, o Tribunal Constitucional já não precisa de justificar a sua própria existência. Com efeito, ninguém admite hoje como possível, em Portugal, uma extinção da fiscalização concentrada da constitucionalidade.
Recorde-se que as razões da criação de uma jurisdição constitucional concentrada e separada, em Portugal, estão intimamente ligadas à ineficácia do mero controlo difuso da constitucionalidade, instituído pela Constituição de 1911 e que perdurou até 1976.
Com efeito, o modelo norte-americano de controlo difuso, apesar das vantagens que lhe são atribuídas – reforço da posição dos tribunais enquanto órgãos de soberania, despolitização da justiça constitucional e eficácia imediata das decisões nos casos concretos – não logrou impor-se na generalidade dos países do continente europeu. Desde logo, nos sistemas em que a ideia de lei enquanto expressão da vontade geral exige a incondicional subordinação dos tribunais à lei; mas também, sublinhe-se, nos sistemas em que a existência de várias ordens de jurisdição só muito dificilmente se compatibilizaria com o mero controlo difuso, porquanto este poderia pôr em causa a certeza do direito, face a uma eventual desarmonia de julgados. Por esta última razão e também porque os tribunais supremos europeus, com uma forma de designação dos respectivos juizes muito diversa da delineada para a Supreme Court, nem estavam vocacionados para revelar sensibilidade às questões políticas implicadas pelas questões de constitucionalidade, nem provavelmente se sentiam autorizados a ir tão longe como ela, mesmo aí onde a fiscalização difusa foi admitida, não passou ela geralmente de letra morta.
Por outro lado, é de assinalar que se verificou, no decorrer do século XX, fruto da mutação das relações Estado-sociedade, um muito maior intervencionismo estatal, a progressiva atribuição de poderes legislativos ao Executivo, o aumento crescente da actividade administrativa e uma consequente crise da lei, tudo tornando urgente encontrar um sistema de fiscalização da constitucionalidade que funcionasse efectivamente. Importa realçar, também, que, na Europa, a criação de tribunais constitucionais foi especialmente reivindicada nos países que, tendo conhecido experiências ditatoriais, se aperceberam, de forma dramática, que podem ser as próprias leis a violar os direitos dos cidadãos e a pôr em causa o Estado de direito.
É neste contexto que se assistiu à evolução para um modelo concentrado de fiscalização da constitucionalidade, após a segunda guerra mundial. Aliás, na Europa de hoje, a alternativa não está em haver ou não haver um tribunal especializado que reaprecie as decisões dos outros tribunais à luz dos direitos fundamentais; a verdadeira alternativa consiste em saber se, em primeira linha, essa reapreciação se faz num tribunal sediado no próprio país ou, então, se ela é logo feita em Estrasburgo – ou, talvez, dentro de pouco tempo, no Luxemburgo.
Em Portugal, a experiência de exercício autoritário do poder que ocorreu entre 1926 e 1974 veio agudizar o problema da ineficácia da fiscalização da constitucionalidade das leis pelos tribunais ordinários e realçar a importância da criação de um Tribunal Constitucional como garante dos direitos fundamentais dos cidadãos. E se o modelo de justiça constitucional introduzido, a título transitório, em 1976, provavelmente revelava menos o receio de que os tribunais continuassem a aplicar a antiga legislação que se tornara incompatível com a nova Constituição do que o temor de que eles desaplicassem as leis do novo regime, a verdade é que a experiência da actividade da Comissão Constitucional viria a tornar incontornável o estabelecimento de um verdadeiro tribunal constitucional, por ocasião da primeira revisão da Lei Fundamental.
Com efeito, a grande maioria das decisões da Comissão Constitucional proferidas nos recursos de constitucionalidade provindos dos outros tribunais respeitaram a matérias relacionadas com a reserva de juiz ou com outras questões atinentes à organização e funcionamento dos tribunais ou aos poderes processuais dos juizes ou do Ministério Público. Em contrapartida, no exercício das suas funções consultivas, no âmbito da fiscalização preventiva, abstracta sucessiva ou por omissão, a Comissão Constitucional foi chamada a pronunciar-se sobre questões de constitucionalidade de uma importância e diversidade assinaláveis.
Aliás, ainda hoje, boa parte dos recursos que chegam ao Tribunal Constitucional por via da recusa dos tribunais em aplicar normas com fundamento em inconstitucionalidade continua a incidir sobre questões processuais ou, então, sobre matérias relativas à organização judiciária ou à competência dos próprios tribunais.
Neste contexto, bem se compreende que a Constituição tenha optado por um modelo de fiscalização concreta que, sem expropriar os tribunais ordinários do poder-dever de desaplicar as normas inconstitucionais, abre as portas do Tribunal Constitucional, por via de recurso, aos cidadãos. E deve-se reconhecer que a consolidação e o enriquecimento da jurisprudência do Tribunal, no que diz respeito aos direitos fundamentais, se tem em grande parte verificado na sequência de recursos interpostos pelos particulares, mau grado a maioria de tais recursos carecer dos pressupostos processuais legalmente exigidos e de muitos deles terem intuitos meramente dilatórios.
É evidente que o modelo desenhado em 1982 não é isento de críticas. Designadamente, alguns gostariam de ver instituído um modelo em que ao recurso para o Tribunal Constitucional se substituísse a suscitação de uma questão prejudicial; e outros, porém, prefeririam acrescentar ao modelo vigente um recurso de amparo ou queixa constitucional.
Estes modelos alternativos, teoricamente antagónicos, quando devidamente explorados acabariam por conduzir, na prática, a soluções próximas ou idênticas. É que nem o modelo actual do recurso de constitucionalidade se compatibilizaria logicamente com o acrescento do amparo, nem se vislumbra que fosse politicamente aceitável, ao fim de vinte anos, vir pura e simplesmente expropriar os cidadãos do acesso directo à justiça constitucional.
Assim sendo, restaria a adopção de um modelo de fiscalização concreta assente na questão prejudicial complementada por um recurso de amparo, o que, desde logo, significaria retirar à generalidade dos tribunais a possibilidade de decidirem as questões de constitucionalidade. Para além disso, sabendo-se que, relativamente ao actual modelo, o recurso de amparo apenas viria a acrescentar protecção contra algumas situações marginais, não se deve olvidar que, em contrapartida, ele faria inevitavelmente provocar a conflitualidade do Tribunal Constitucional com os restantes tribunais, já que, à semelhança dos países em que aquele mecanismo actualmente se encontra disponível, abundariam certamente os recursos com fundamento na inconstitucionalidade das próprias decisões judiciais; e, mesmo que, como nesses países, a percentagem de êxito de tais queixas viesse a ser muito pequena, seria inevitável que, por outro lado, o número dos processos pendentes subisse exponencialmente, estrangulando o funcionamento do Tribunal Constitucional.
Dir-se-á que a alteração do sistema português de fiscalização da constitucionalidade não está na ordem do dia, até porque dependeria de uma prévia revisão constitucional. No entanto, porque, independentemente dessa circunstância, surgem frequentemente referências a essa matéria, não parece inadequado chamar a atenção para a necessidade de enfrentar todas as condicionantes e encarar todas as consequências, quando se pretenda abordar esta problemática.
Senhor Presidente da República
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhoras e Senhores
Desde o início do seu funcionamento até julho de 2003, o Tribunal proferiu cerca de 13.000 decisões, numa média que se aproxima das 700 decisões por ano. Dessas decisões, aproximadamente 100 foram tiradas no âmbito da fiscalização preventiva, 400 no domínio da fiscalização abstracta sucessiva e 850 em processos eleitorais, correspondendo mais de 11.200 a processos de fiscalização concreta.
Seria fastidioso fazer neste momento um inventário das principais decisões tiradas em cada espécie, decisões que se encontram, aliás, referenciadas no volume sobre o Tribunal Constitucional recentemente publicado. Deve, porém, sublinhar-se sobre que grandes matérias a jurisprudência deste tribunal incidiu com particular relevo.
Assim, um dos aspectos em que o trabalho do Tribunal deve ser destacado é o que se traduziu na definição de uma jurisprudência consistente e uniforme em matéria eleitoral, que se tem caracterizado, sobretudo, pela celeridade, pela consensualidade e pelo rigor quanto às exigências de seriedade, liberdade e democraticidade, tendo as suas decisões contribuído decisivamente para a segurança jurídica no domínio do processo eleitoral.
Outra das áreas nucleares da jurisprudência do Tribunal Constitucional teve por objecto a articulação entre o Estado e as Regiões Autónomas. Procurou e conseguiu o Tribunal, logo nos seus primeiros anos de actividade, na esteira da Comissão Constitucional, produzir uma jurisprudência clara no que se refere à repartição de poderes efectuada pela Constituição entre os órgãos do Estado e os órgãos regionais autonómicos, sendo certo que, nesta área, essa clareza se tornava indispensável para assegurar um funcionamento harmonioso das instituições. Contudo, tem de se reconhecer que as últimas revisões constitucionais, que neste ponto resultaram numa certa fluidez do texto constitucional, vieram suscitar novas interrogações a que, em certos casos, o Tribunal ainda não conseguiu responder com precisão.
Outro dos domínios em que foi decisiva a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nestas duas últimas décadas, é o da garantia do respeito pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Neste campo, o Tribunal, afirmando que «há matérias que, por tocarem de perto a segurança dos cidadãos, ou por revestirem maior dignidade e melindre político, a Constituição entendeu dever sujeitar inteiramente à regra da maioria e ao debate parlamentar», tem procedido, ao longo dos anos, a uma interpretação não restritiva daquela reserva de lei parlamentar, a que atribuiu não apenas uma dimensão garantística, mas sobretudo uma dimensão democrática, decorrente da aplicação dos princípios da representação política e da separação de poderes.
Aliás, também por aplicação do princípio da separação de poderes, o Tribunal delineou uma absoluta reserva de juiz no exercício da função jurisdicional, considerando que só os tribunais podiam praticar actos exclusivamente destinados a realizar e assegurar a paz jurídica. E igualmente decisiva, em termos institucionais, foi a delimitação a que procedeu quanto aos poderes dos denominados «governos de gestão».
Num outro campo, é igualmente importante recordar e salientar a flexibilidade com que o Tribunal tratou as questões relacionadas com a Constituição económica, designadamente, durante a década de oitenta, a propósito da irreversibilidade das nacionalizações, e, no início dos anos noventa, em torno das privatizações. Mesmo em matérias delicadas como estas, em que a leitura das normas e princípios constitucionais é manifestamente indissociável de pré-compreensões de natureza ideológica, a composição plural e equilibrada do Tribunal permitiu-lhe encontrar soluções dúcteis e ponderadas, acompanhando as mudanças históricas e sociais que o país sofreu nos últimos vinte anos, mas exigindo sempre o respeito pelo núcleo essencial da Constituição económica e pelos direitos fundamentais.
Por último, é de vital importância assinalar o papel que o Tribunal Constitucional tem desempenhado na defesa dos direitos, liberdades e garantias, seja no domínio da fiscalização abstracta, seja como última instância de recurso em matéria de constitucionalidade.
Uma parte significativa do trabalho do Tribunal nesta matéria respeitou à afinação de critérios atinentes à aplicação do princípio da igualdade em questões tão diversas como, por exemplo, o recrutamento e a progressão na carreira na Administração Pública, o regime de atribuição ao cônjuge sobrevivo de pensões por acidentes de trabalho ou a concessão de benefícios fiscais. E se o Tribunal se debruçou, por exemplo, sobre os direitos dos administrados, os direitos fundamentais dos trabalhadores, as garantias perante a utilização da informática, os direitos dos filhos nascidos fora do casamento, o direito a um mínimo de existência condigna e as liberdades religiosa, de imprensa ou de associação, a verdade é que foi em torno das temáticas relacionadas com o direito criminal e o processo penal que ele desenvolveu uma mais larga jurisprudência.
Desde logo, em matéria de direito criminal, afirmando, designadamente, os princípios da culpa e da necessidade da pena, neste último se ancorando os diversos acórdãos que trataram da interrupção voluntária da gravidez e alguns que analisaram normas de direito penal militar.
E, depois, abordando de forma garantística, mas ponderada, a generalidade dos problemas que hoje abundantemente se discutem em sede de processo penal e que não são, na sua grande maioria, problemas novos. Com efeito, para muitos deles já o Tribunal apontou o sentido das respostas, quando julgou recursos interpostos por cidadãos anónimos, em que fixou as traves-mestras da sua jurisprudência nesta área, sem que tais decisões tenham, então, tido relevo mediático.
Assim, o Tribunal não admitiu a possibilidade de reconhecimento do arguido sem a presença do juiz; considerou vedado, em regra, o depoimento por ouvir dizer; afirmou que as buscas domiciliárias, não havendo despacho a ordená-las, dependem do consentimento de quem é visado com tal diligência; entendeu que o acesso aos autos pelo arguido na fase de inquérito, para impugnar a medida de prisão preventiva, não podia ser impedida de forma absoluta, sempre e em quaisquer circunstâncias; pronunciou-se no sentido de que, no campo das escutas telefónicas, o critério interpretativo a seguir «não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais», sendo a intervenção do juiz vista como uma garantia de que essa compressão se situa nos apertados limites aceitáveis; julgou obrigatória uma apreciação crítica das provas; e reconheceu – ainda antes da existência de disposição constitucional expressa – a exigência de um recurso penal sobre matéria de facto.
Toda esta jurisprudência no âmbito do processo penal – que se não pretende, nem aproximadamente, ser exaustiva – foi produzida, é de voltar a sublinhar, antes de o debate sobre alguns destes problemas ter assentado arraiais na praça pública. E a este propósito, permita-se-me apenas apontar que, se a discussão aberta sobre as temáticas da Justiça pode constituir uma demonstração de participação activa na vida pública, já a exploração excessiva – e mesmo abusiva – de concretos casos submetidos à apreciação dos tribunais, não contribui minimamente para uma correcta avaliação da bondade da lei e para o indispensável escrutínio sereno e democrático dos respectivos aplicadores.
Voltando à jurisprudência do Tribunal Constitucional, poderão alguns pensar que ela peca por, fundando-se na Constituição, vir reforçar um excesso de garantismo que já resultaria da lei. Já tive ocasião de salientar, há cerca de um ano, numa outra ocasião, por que não posso subscrever o discurso do excesso de garantismo. É que uma tal expressão inculca que o mal reside nas garantias processuais conferidas por lei e não no uso distorcido que delas se possa fazer – e muitas vezes se faz. Ora, se assim é, o mal deve ser combatido através da introdução e da aplicação de sanções para os casos em que se procede a uma utilização abusiva dos meios processuais – sanções para as partes, mas também para os outros intervenientes no processo, de acordo com as respectivas responsabilidades – e não através da eliminação desses mesmos meios processuais garantísticos ou da sua mera admissão discricionária pelo juiz, o que corresponderia a fazer «pagar o justo pelo pecador». É preciso não esquecer que a luta por um processo penal justo e equitativo, que assegure todas as garantias de defesa e limite ao mínimo a compressão dos direitos fundamentais, tem acompanhado historicamente as grandes lutas pela liberdade.
Senhor Presidente da República
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhoras e Senhores
O Tribunal Constitucional, embora curta, já tem a sua história – e até, a sua pré-história.
A pré-história foi o período da Comissão Constitucional, presidida pelo falecido Tenente-Coronel Melo Antunes, por onde passaram ilustres professores de Direito e insignes magistrados e onde, pela primeira vez, uma mulher – a Professora Doutora Isabel Maria de Magalhães Collaço – exerceu, entre nós, funções jurisdicionais.
A primeira fase do Tribunal, a que presidiu o Professor Doutor Armando Marques Guedes, correspondeu à difícil implantação de uma justiça constitucional autónoma. Nessa fase, o Tribunal Constitucional – de cujos treze juizes, seis tinham passado pela Comissão Constitucional – teve de enfrentar, para além da compreensível desconfiança inicial de certos sectores dos restantes tribunais, uma incómoda hostilidade proveniente de algumas instâncias do poder político, que se alastrou a uma parte da comunicação social. A isto acresceu que uma das primeiras decisões do Tribunal, proferida em fiscalização preventiva e atinente a um imposto retroactivo, foi manifestamente impopular. Mas foi ainda nesta primeira fase que o Tribunal se viria a impor – permitam-nos a imodéstia – pela qualidade da sua jurisprudência, assente num trabalho colegial cujas virtualidades se deve sublinhar. Alguns dos obreiros dessa implantação do Tribunal já se não encontram infelizmente entre nós, pelo que nos cumpre evocar respeitosamente a memória dos Conselheiros Magalhães Godinho, Jorge Campinos, Costa Aroso e Costa Mesquita, recordando que estes dois últimos faleceram quando se encontravam em pleno exercício de funções.
Uma segunda fase do Tribunal, já presidido pelo Cons Cardoso da Costa, traduziu-se na sua consolidação, através da definição de uma linha jurisprudencial estabilizada e cada vez mais consensualizada, e, na sequência da revisão da sua lei orgânica, operada em 1998, por uma significativa diminuição dos prazos médios de duração dos recursos e pela recuperação dos atrasos na resolução dos processos de fiscalização abstracta. Esta fase caracterizou-se igualmente pelo estabelecimento de relações institucionais cada vez mais distendidas e cordiais com os restantes tribunais, tendo ficado claro que o Tribunal Constitucional não pretende imiscuir-se na forma como eles interpretam ou aplicam o direito ordinário, mas tão-só aferir se essa interpretação se compatibiliza com a Constituição.
Senhor Presidente da República
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhoras e Senhores Convidados
A Constituição é, como se sabe, um limite ao funcionamento incondicionado do princípio maioritário. E hoje, o Estado de direito democrático caracteriza-se tanto pela democracia política revelada em eleições livres como pelo respeito pelos direitos dos cidadãos e dos corpos sociais. Por isso, a Constituição representa estabilidade e uma certa rigidez. Nesta conformidade, uma aparente passividade dos tribunais em matéria de fiscalização da constitucionalidade corresponderia já, afinal, a uma particular opção ou leitura política da Constituição: a da sua reduzida relevância jurídica enquanto norma e enquanto parâmetro para avaliação da legislação ordinária.
Contudo, a jurisdição constitucional não é o local nem o meio adequado para resolver as controvérsias políticas – e se, por acaso, a pretendessem transformar em tal, mais do que uma crise da jurisdição constitucional, revelar-se-ia à luz do dia uma crise do próprio sistema. Aliás, a propalada crise da justiça também resulta, em parte substancial, da pretensão – em voga desde há anos e não apenas nas nossas paragens – de se querer remeter para os tribunais e para as instituições judiciárias o prolongamento do debate político. Importa que os responsáveis por essa estratégia meditem seriamente sobre os seus efeitos perversos, não seja o caso de, na sequência de certos apelos, algumas instituições judiciárias virem efectivamente a pretender assumir um papel que seguramente lhes não compete.
O Tribunal Constitucional, muito embora reconheça a inevitabilidade da conjugação do político e do jurídico na justiça constitucional, pretende manter-se fora do debate político e exercer as suas funções com determinação e rigor, mas também com serenidade e discrição.
Só assim, com efeito, poderá enfrentar os novos desafios que se aproximam ou já existem.
Entre esses desafios avultam, por um lado, o de uma eventual Constituição Europeia, que integre a Carta dos Direitos Fundamentais, atribua novas competências à União Europeia e preveja a adesão desta à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que implica novas formas e novos meios de garantir os direitos fundamentais, mas pode resultar numa indesejável imprecisão sobre a competência para o fazer; e, por outro lado, o de uma progressiva globalização das economias, da informação e da vida social, e também das ameaças, a que é preciso fazer corresponder uma idêntica globalização dos direitos e das liberdades.
Que o Tribunal Constitucional possa vencer esses desafios no futuro, conseguindo, em cada caso, conciliar a Justiça e a Liberdade, assim contribuindo para a consolidação do Estado de direito democrático e para o estabelecimento de uma sociedade mais tolerante e solidária, de modo a que se lhe apliquem as palavras do Poeta:
Muito desgosto te espreita
ao longo da tua vida,
mas a vara está direita:
tua missão foi cumprida.
[1] Realizada no dia 27 de novembro de 2004
no Mosteiro dos Jerónimos, sob a presidência de Sua Excelência
o Presidente da República