Discurso de Sua Excelência o Presidente da República por ocasião da Sessão Solene comemorativa do X Aniversário do Tribunal Constitucional
Mário Soares
Sessão Solene comemorativa do X Aniversário
do Tribunal Constitucional
31 de maio de 1993
Tribunal Constitucional - Palácio Ratton
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Senhor Vice-Presidente do Tribunal de Contas
Senhor Presidente do Supremo Tribunal Militar
Senhor Núncio Apostólico, Excelência Reverendíssima
Excelências
Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional
Senhoras e Senhores
Desejo agradecer, em primeiro lugar, o convite que o Tribunal Constitucional me formulou para presidir a esta sessão solene comemorativa do seu 10º Aniversário. Assim, representa para mim um grato prazer — e uma honra — saudar, nesta oportunidade, todos os Senhores Juízes Conselheiros — e em particular o ilustre Presidente do Tribunal Constitucional — por este tão significativo aniversário e ainda de o poder fazer na presença dos mais altos titulares dos órgãos de soberania, de eminentes representantes dos diferentes poderes do Estado e da comunidade jurídica portuguesa bem como de insignes magistrados estrangeiros, como os Presidentes do Supremo Tribunal Federal do Brasil, dos Tribunais dos Países Africanos Lusófonos e ainda do Tribunal de Primeira Instância da Comunidade Europeia.
Como ensina na 5ª edição do seu monumental tratado de Direito Constitucional o Prof. José Gomes Canotilho, o movimento consitucionalista mais recente defende uma conexão necessária entre Constituição e jurisdição constitucional, uma vez que, segundo o autor referido, não há justiça constitucional sem a existência de um Tribunal Constitucional. Citando o jurisconsulto alemão Kagi, escreve: “diz-me a tua posição quanto à jurisdição constitucional e eu digo-te que conceito de Constituição tens”.
Esta sentença mostra a importância que hoje se atribui, em todas as democracias modernas, à jurisdição constitucional. No longo percurso que Portugal fez, desde o 25 de abril, para a criação e consolidação de um Estado de direito democrático — percurso exaltante decerto, e de que muito nos orgulhamos, mas não isento de tentativas de desvio e de interpretações menos ortodoxas — a criação do Tribunal Constitucional, que surgiu em consequência da Primeira Revisão Constitucional, de 1982, sem esquecer o meritório trabalho da Comissão Constitucional, que o precedeu, e depois a actividade regular e fortemente empenhada do mesmo Tribunal Constitucional, ao longo destes últimos dez anos, representam uma contribuição de valor inestimável para a afirmação e definição do nosso Estado de Direito. Daí a importância que atribuo a esta comemoração, que aliás foi precedida — e bem — pela realização de um oportuníssimo colóquio subordinado ao tema genérico “legitimidade e legitimação da justiça constitucional”, de que espero tenham resultado interessantes conclusões.
Como Presidente da República –“garante
da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento
das instituições democráticas” — jurei “defender,
cumprir e fazer cumprir a Constituição” (art. 130º).
E se, como diz o art. 3º, “a soberania, una e indivisível,
reside no POVO”, este exerce-a “segundo as formas previstas na constituição”.
E mais: “ O Estado subordina-se à Constituição e
funda-se na legalidade democrática”. “A validade das leis
e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas e do poder
local depende da sua conformidade com a Constituição” (art.
3º, nºs 1, 2 e 3). Daí a importância da “justiça
constitucional”, ou seja — cito ainda o Prof. Gomes Canotilho —
“daquele complexo de actividades jurídicas (...) destinadas à
fiscalização da observância e cumprimento dos valores e
princípios constitucionais vigentes”. Daí também
a importância, no nosso sistema jurídico-constitucional, do Tribunal
Constitucional como instância fundamental para o bom funcionamento do
Estado de Direito, pela aplicação da justiça jurídico-constitucional.
O constitucionalismo português, cujas origens são anteriores à
própria revolução liberal e teve o contributo de várias
Constituições e de uma Carta Constitucional, enriquecida por dois
Actos Adicionais, veio a reconhecer a importância do controle da constitucionalidade
das leis na Constituição Republicana de 1911, por forma pioneira
e que teve como fonte a Constituição Brasileira de 1891.
A Ditadura, com o arremedo de Constituição que introduziu em 1933, representa também nesse aspecto um passo atrás, visto que, como se sabe, neutralizou o princípio da fiscalização judicial da constitucionalidade. As ditaduras não gostam que as suas próprias leis sejam fiscalizadas e muito menos por órgãos independentes. Foi a Constituição de 1976 — honra lhe seja — que, entroncando na tradição de 1911, estabeleceu um sistema misto de fiscalização da constitucionalidade com a criação da Comissão Constitucional, como órgão de controlo concentrado, o qual com a revisão de 1982 desembocou logicamente no actual Tribunal Constitucional.
O órgão cujo aniversário hoje celebramos, pelas suas competências, pelo indispensável pluralismo da sua composição e até pelo respeito às regras não escritas que presidiram a essa composição — e sempre asseguraram o referido pluralismo — tem dado ao longo dos anos provas de suficiente solidez, para que hoje possamos olhá-lo com respeito e confiança. Tem sido, aliás, esta a opinião geral dos juristas estrangeiros que estudam o nosso Tribunal Constitucional.
Nunca fui daqueles que divinizam a Constituição, considerando-a um dogma sacrossanto e, portanto, intocável. Representando sempre um compromisso democrático, fruto dos equilíbrios e balanços normais entre as forças políticas em presença — e das realidades económicas, sociais e culturais que elas representam ou deviam representar — é óbvio que a transformação da realidade e das próprias concepções jurídico-políticas terão de se reflectir nas adaptações a introduzir na Constituição — desde que feitas no lugar e no tempo designados e de acordo com a metodologia definida no próprio texto constitucional.
Em democracia, o poder nunca é absoluto — é sempre limitado e partilhado por outros poderes com idêntica legitimidade democrática e transitório, no plano temporal. A separação e interdependência dos poderes, o respeito pelas minorias e pelos direitos fundamentais dos Cidadãos, são regra. As eleições fonte de legitimidade, conferem eventualmente maiorias, mas não são tudo, em democracia, visto que, dado o princípio da alternância democrática, conferem poderes que estão limitados pela Constituição e pela legalidade democrática que, essencialmente, dela decorre.
Sendo o nosso semi-presidencialismo um sistema misto e complexo, baseado na interdependência e solidariedade dos diferentes poderes do Estado, com duas legitimidades directas, diferenciadas e próprias, o Presidente da República e a Assembleia da República, e uma derivada, de dupla dependência, o Governo — é muito importante para o perfeito equilíbrio e bom funcionamento do sistema, que o controlo jurisdicional da constitucionalidade funcione com isenção e atempadamente. O exercício independente e obviamente livre das competências de cada órgão do Estado — sem pressões de qualquer ordem — constitui, assim, um imperativo fundamental para o regular funcionamento do Estado de direito democrático.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional, na sua função interpretativa e concretizadora do direito, tem vindo a impor-se por si própria, não obstante algumas inevitáveis e mais ou menos fundamentadas críticas pontuais a que terá dado lugar. Bom é que assim continue, para que não sejam só os poderes políticos a acatar e respeitar as suas decisões — como lhes cumpre — mas também os cidadãos em geral e os meios jurídicos em particular. É sinal que a jurisprudência do Tribunal Constitucional se vai tornando cada vez mais convincente e tendencialmente previsível, reduzindo os factores de incerteza e conferindo segurança, respeito e confiança às suas decisões. O que representará um contributo de primacial importância para a estabilidade das instituições na medida em que fornece quadros de referência ao Parlamento e ao Governo, de forma a preverem eventuais inconstitucionalidades, no momento da elaboração legislativa, e também à Administração e aos Cidadãos, relativamente aos modos de actuação e no âmbito da protecção dos direitos e liberdades.
Inseridos como estamos na Comunidade Europeia, vitalmente empenhados na construção da futura União Europeia, importa que avancemos não só na coordenação das diferentes legislações — no respeito do acquis comunitário, que hoje tem já um imenso peso em todo o ordenamento jurídico nacional — como também na articulação das diferentes ordens jurídico-constitucionais com o esboço do que seguramente virá a ser uma ordem constitucional supranacional comunitária.
Nesse sentido, os contactos que o Tribunal Constitucional tem vindo a estabelecer regularmente com os seus homólogos europeus revestem um interesse enorme. São questões de grande actualidade e premência que importa estudar e debater, sem perda de tempo, salvaguardando as especificidades nacionais que são, como sempre tenho afirmando, um grande factor de enriquecimento colectivo.
Neste nosso mundo hoje tão desordenado — mas, igualmente, marcado por tantos e tão exaltantes desafios — as democracias modernas têm de assentar, cada vez mais, na participação cívica dos cidadãos, no pluralismo, no controlo democrático das instituições, na justiça social atempada, no império da lei e na solidariedade.
O Tribunal Constitucional tem importantes competências
extra-jurisdicionais definidas na Constituição, nos termos do
art. 225º, incumbindo-lhe além disso, especificamente, “administrar
a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional”.
Como nos foi dito, não tem mãos a medir: o seu trabalho é
imenso. Que possa continuar a exercer o seu altíssimo múnus, como
até aqui, por forma douta, isenta, atempada e eficaz — e com o
respeito dos cidadãos — são os votos que formulo neste 10º
Aniversário.
Lisboa, 31 de maio de 1993