José Manuel Moreira Cardoso da Costa
Sessão Solene comemorativa do X Aniversário
do Tribunal Constitucional
31 de maio de 1993
Tribunal Constitucional - Palácio Ratton
Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro e Senhores Ministros
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Senhores Presidentes
do Supremo Tribunal Administrativo e do Supremo Tribunal Militar e Vice-Presidente
do Tribunal de Contas
Senhor Núncio Apostólico
Senhores Presidentes ou seus representantes do Supremo Tribunal
Federal do Brasil, do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné - Bissau,
do Tribunal Supremo de Moçambique, do Supremo Tribunal de Justiça
de Cabo Verde, do Supremo Tribunal de Justiça de S. Tomé e Príncipe
e do Supremo Tribunal de Angola
Senhor Provedor de Justiça
Senhor Vice-Procurador-Geral da República e Senhor Bastonário
da
Ordem dos Advogados
Senhor Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos
Senhoras e Senhores
1. Cumprem-se exactamente hoje dez anos sobre a data em que o Tribunal Constitucional
português — concluídos que foram os trâmites da designação
dos seus primeiros juízes e iniciadas as funções destes
com a respectiva posse, em 6 de abril de 1983 — emitiu a sua primeira
decisão.
Foi uma decisão discreta e sem história — já que não teve por objecto mais do que a resolução de um incidente menor de ordenação processual; e tão sem história que, tal como acontece com a larguíssima maioria das decisões judiciais, outra publicidade não recebeu senão a que unicamente importava ao conhecimento dos seus interessados directos e outro rasto não deixou senão o de um registo a duas linhas na colectânea oficial dos acórdãos desta casa.
Um tão singelo acontecimento — notoriamente tão pouco à medida da função constitucionalmente cometida ao Tribunal, do protagonismo institucional que, por via dela, este era chamado necessariamente a assumir, como assumiu, e ainda da vasta e importante jurisprudência desde então aqui produzida — não mereceria em si mesmo, decerto, uma qualquer comemoração. De todo modo, não só foi ele que ficou a marcar o começo efectivo da actividade decisória deste órgão de soberania, como creio mesmo que, sem forçar demasiado as coisas, poderá atribuir-se-lhe um não despiciendo valor simbólico. É que tal evento, no aparente contraste que encerra, como que augura ou espelha já, afinal, a natureza da missão fundamental confiada ao Tribunal Constitucional e a dupla face de que a mesma haveria e haverá sempre de revestir-se: uma missão, na verdade — a de garantir a conformidade do ordenamento jurídico com a Constituição —, cuja incidência, por um lado, se projecta imediatamente, por sua mesma natureza, sobre a tomada das decisões políticas subjacentes às escolhas legislativas (é dizer, sobre o próprio processo político), por aí assumindo um relevo institucional e público que transcende o das comuns decisões dos tribunais; mas que, por outro lado, há-de confinar-se ainda nos limites da jurisdictio, obedecer aos cânones funcionais e deontológicos que caracterizam e identificam esta última e exprimir-se na rigorosa sobriedade de uma qualquer — da mais complexa ou mais singela — decisão judicial.
Eis aí, se bem vejo, uma razão acrescida para não tomar como inadequada e arbitrária a escolha desta oportunidade para assinalar o primeiro decénio da actividade do Tribunal e a escolha do dia de hoje, em particular, para o solene acto comemorativo que estamos a celebrar.
Dez anos são um período curto e frequentemente insignificativo na vida de uma instituição. Mas quando esta representa algo de novo no quadro dos poderes do Estado, recebendo como tarefa uma função tão relevante quanto melindrosa como a cometida ao Tribunal Constitucional, não se questionará que os primeiros dez anos do seu funcionamento sejam um período de tempo decisivo e crucial — porque é esse o tempo de a instituição em causa criar raízes, de afirmar-se e consolidar-se perante a comunidade dos cidadãos, ou de mostrar-se, ao invés, coisa inútil, supérflua ou mesmo perversa, e um tempo já suficientemente longo, por isso mesmo, para se avaliar, à luz da experiência decorrida, da pertinência da sua criação.
Justificava-se, pois, que o Tribunal Constitucional não deixasse passar em branco a ocorrência do 10º aniversário da sua fundação e antes — já que estes dez anos o foram de uma intensa e operosa actividade, a confirmar a importância da missão que ao Tribunal estava reservada na vida institucional do Estado — haja entendido e querido assinalar o evento por forma pública e expressiva, que culmina na realização desta sessão solene.
2. Dignou-se Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, aceitar o convite que o Tribunal Constitucional lhe endereçou para presidir a este acto, reconhecendo a sua importância e simbolismo e assim o revestindo da suprema elevação que só a presença do Chefe de Estado lhe podia conferir. É a presença de Vossa Excelência uma distinção e uma honra que muito particularmente nos desvanece e que, em nome do Tribunal, me cumpre, antes de mais, sublinhar e reconhecidamente —juntando a estes sentimentos o testemunho da nossa respeitosa homenagem e das nossas respeitosas saudações.
Saúdo igualmente Vossas Excelências, Senhor Presidente da Assembleia da República e Senhor Primeiro-Ministro, e agradeço-lhes a disponibilidade com que tão prontamente anuíram ao convite para assistir a esta sessão — numa manifestação de significativas deferência e consideração pelo Tribunal Constitucional que do mesmo modo nos honra e nos cabe penhoradamente registar.
Saúdo ainda Vossas Excelências, Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Senhor Conselheiro Vice-Presidente do Tribunal de Contas e Senhor Almirante Presidente do Supremo Tribunal Militar, envolvendo nesta saudação toda a justiça portuguesa — que nos seus diferentes ramos Vossas Excelências representam —e aproveitando este privilegiado ensejo para, dessa forma, lhe prestar, e a todos os magistrados que tão dignamente a servem, a homenagem do Tribunal Constitucional. Agradeço a Vossas Excelências o terem vindo também associar-se a este acto, nele completando, com a vossa presença, a representação dos poderes do Estado. Poderes do Estado que, todos, dão assim a este outro órgão de soberania uma prova inequívoca de solidariedade institucional, que não devo deixar de salientar.
Ao Senhor Vice-Procurador-Geral da República, em representação do Senhor Conselheiro Procurador-Geral, e aos Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos, bem como ao Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados — que tomam lugar nesta sessão por direito próprio — quero do mesmo modo endereçar os cordiais cumprimentos do Tribunal e agradecer a presença com que o distinguem — igualmente saudando nas pessoas de Vossas Excelências as prestigiosas instituições e classe profissional que representam, e que são co-participantes imprescindíveis e essenciais, cada uma a seu modo, da administração da justiça.
Uma palavra de especiais cumprimentos dirijo também a Vossas Excelências, Senhores Ministros, Senhor Núncio Apostólico, Senhor Provedor de Justiça — que, no exercício de uma das suas principais competências, tão frequente e próximo relacionamento tem com esta casa —, Senhor Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira Senhor Presidente do Tribunal de 1ª Instância das Comunidades Europeias e Senhor Conselheiro representante de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Senhor Presidente da Comissão Nacional de Eleições e Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa — nessa palavra lhes significando o quanto o Tribunal se sente agradecido e honrado por poder contar com a assistência de Vossas Excelências a este acto.
Cumprimento e saúdo ainda todos os restantes convidados, a um ou outro título, para esta sessão — Senhores Deputados e representantes dos partidos políticos com assento parlamentar, Senhores Professores, Senhores Magistrados, Advogados e profissionais do foro e do direito, demais Autoridades e Senhores representantes de associações de cidadãos — a todos agradecendo a gentileza da vossa presença.
Não quereria fazer acepção de ninguém. Consintam-me Vossas Excelências, todavia, que entre a de todos eu destaque a presença neste acto dos Senhores Presidentes dos Conselhos Directivos das Faculdades de Direito de Coimbra e de Lisboa, para nesta oportunidade prestar às duas escolas que representam a homenagem deste Tribunal. Homenagem devida, não apenas porque numa ou noutra todos recebemos a nossa formação de juristas; nem tanto porque alguns de nós com uma ou outra delas entreteceram e entretecem especiais e muito caros vínculos de natureza académica e profissional; mas homenagem devida, sobretudo, à exemplar Scholarship das duas Faculdades, e em particular, neste caso, das suas secções de direito público. Dessa Scholarship tem a jurisprudência deste Tribunal (como, de resto, dos tribunais portugueses em geral) significativamente beneficiado, a vários títulos ou por vários modos — a ela se devendo um contributo relevante para que o Tribunal tenha podido corresponder cabalmente, como se pensa, às acrescidas exigências da específica competência jurisdicional que é a sua, exercendo-a sem desdouro e ao nível de qualquer instituição europeia congénere.
E, se é assim, é ainda verdade que, por outro lado, não têm as duas escolas, no seu ensino e actividade doutrinal — como, de resto, a doutrina consitucionalista portuguesa em geral — deixado de prestar a essa jurisprudência uma continuada atenção, desse modo tendo vindo a estabelecer-se na nossa comunidade jurídica um permanente diálogo entre a teoria e a praxis constitucional, de que ambas têm mutuamente aproveitado.
Foi, de resto, no quadro desse diálogo — e alargando-o a reputados e ilustres constitucionalistas europeus que nos deram a honra de se deslocar expressamente a Portugal para o efeito — que este Tribunal entendeu promover, no âmbito da comemoração aniversária que está a celebrar, um colóquio científico sobre o tema central da «legitimidade e legitimação da justiça constitucional», que decorreu no passado fim de semana, e que, pelo elevado nível das intervenções ouvidas, bem como pela interessada e intensa participação de que foi objecto, se saldou por uma manifestação do maior relevo e significado.
3. Tomam naturalmente parte inteira neste acto comemorativo os Conselheiros jubilados e restantes antigos membros deste Tribunal, que voltam hoje a juntar-se a nós; e a mesma participação desejamos que ao lado deles tivessem os antigos membros da Comissão Constitucional, predecessora que foi deste Tribunal. A uns e outros, cuja presença para os actuais membros desta casa é especialmente reconfortante, dirijo as saudações e a homenagem do Tribunal — homenagem que ao mesmo título é devida, e não podia aqui omitir-se, à memória dos que tanto ilustraram e tão devotada, nobre e dignamente serviram as duas instituições, mas que já só podemos ter connosco em espírito e saudade: os Conselheiros Joaquim da Costa Aroso e António da Costa Mesquita, que foram juízes deste Tribunal e malogradamente o deixaram no pleno exercício de funções, os Professores Carlos da Mota Pinto e Eduardo Correia e o Conselheiro Hernâni de Lencastre, membros que foram da Comissão Constitucional. Recordo as suas figuras de insignes professores e homens públicos e de distintíssimos magistrados, com comovida emoção.
Quereria, por último, dirigir nesta oportunidade a todos os funcionários e colaboradores desta casa a palavra que merecem, de saudação e de louvor, pela competência e empenho com que têm desempenhado ao longo dos anos as suas tarefas, num exemplo de dedicação ao serviço público que muito me apraz enaltecer e sublinhar aqui.
4. Tendo vindo o Tribunal Constitucional a ser instituído apenas aquando da 1ª revisão da Constituição, em 1982, não pode dizer-se, contudo, que a sua competência nuclear — a do controlo da constitucionalidade das leis — represente uma verdadeira novidade no direito público português e que a sua criação haja traduzido, consequentemente, uma ruptura radical com a tradição desse direito. As coisas são —como se sabe — bem ao contrário.
Desde logo — e como acabei de recordar — teve o Tribunal Constitucional um antecedente próximo e imediato, logo na versão originária da Constituição de 1976, na Comissão Constitucional. Concebida, de acordo com a lógica que era a dessa primitiva versão de lei fundamental, e para além da circunscrita competência jurisdicional que lhe foi deferida, como um mero órgão de consulta, ainda que obrigatória, do Conselho da Revolução (no exercício da função, a este reservada em último termo, de guarda da Constituição), há-de todavia reconhecer-se que a Comissão — descontado um número restrito de situações, de desigual importância e repercussão — veio a revelar-se como o verdadeiro eixo do sistema de controlo da constitucionalidade que vigorou durante esse período transitório, como que desempenhando, na prática, um papel similar e equiparável ao de um tribunal constitucional. Manda um elementar imperativo de Justiça e de verdade histórica que isso se lembre aqui, e se recorde, do mesmo passo, a importante, valiosa e pioneira jurisprudência da Comissão — jurisprudência que abriu caminho e na linha de cuja continuidade afinal se insere a deste Tribunal.
5. A consagração expressa, no direito português, do princípio do controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis remonta, porém, mais longe, e vem — como é de todos conhecido — do primeiro diploma constitucional republicano, a Constituição de 1911.
Já escrevi noutra oportunidade que o facto não deixa de ser surpreendente —num tempo em que o paradigma jurídico-constitucional generalizadamente em vigor na Europa incluía, como um dos seus elementos estruturantes essenciais, o princípio da primazia e supremacia indiscutidas da lei; e no concreto contexto, por outro lado, em que os constituintes portugueses optavam pela instauração de um regime radicalmente parlamentar. E se, em todo o caso, pode encontrar-se uma explicação para esse aparente paradoxo, seja no pensamento e doutrina constitucional portuguesa anteriores, seja nas circunstanciais vicissitudes histórico-políticas do último constitucionalismo monárquico, a verdade é que ele só logrará inteiramente compreender-se à luz da influência reconhecidamente exercida pela Constituição republicana brasileira de 1891 sobre os constituintes de 1911 e da inspiração que, no ponto em causa, os mesmos constituintes dela puderam directamente receber.
Quer isto dizer que, se a Constituição portuguesa de 1911 foi indiscutivelmente precursora no espaço europeu, ao reconhecer aos tribunais a possibilidade e a legitimidade de acesso directo à Constituição, e se foi uma das primeiras pontes através das quais o princípio da revisibilidade judicial das leis transitou do constitucionalismo norte-americano para o do velho continente, isso se ficou a dever, em decisiva medida, à referida influência do constitucionalismo do país irmão.
Eis — se outras e fundas razões não houvesse — um motivo de per si suficiente para que o Tribunal Constitucional português tivesse querido associar a si, neste primeiro acto comemorativo que celebra, o Supremo Tribunal Federal do Brasil —expoente máximo de uma já centenária tradição de justiça constitucional que se exprime na nossa língua comum. E tivesse desejado, bem assim, num alargamento e numa decorrência natural desse gesto de fraternidade, que se lhe impunha como algo de evidente, juntar também a ele, nesta ocasião, os tribunais supremos de Angola, de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, de Moçambique e de São Tomé e Príncipe — países a que Portugal se encontra ligado por laços que estarão sempre para além das dificuldades e dos sobressaltos da história e que encetaram em África processos de mutação ou evolução política tendo por limiar a instauração de sistemas políticos pluralistas, subordinados à ideia fundamental do Estado de direito e assentes no respeito pelos direitos fundamentais das pessoas — desiderato nalguns deles já felizmente atingido e que noutros se espera seja levado a bom termo. Processos esses — é bem certo também — que nalguns casos vêm sendo extremamente dolorosos e profundamente dramáticos, mas cuja dor e dramatismo, que tão intensamente nos tocam, não hão-de nunca, por maiores que sejam, fazer-nos perder a esperança do bem supremo da paz!
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau, do Tribunal Supremo de Moçambique, do Supremo Tribunal de Justiça de São Tomé e Príncipe, Senhor Ministro e Presidente cessante do Supremo Tribunal Federal do Brasil e Senhor Conselheiro representante do Presidente do Supremo Tribunal de Angola: é neste espírito que em nome do Tribunal Constitucional português saúdo calorosamente Vossas Excelências, e as instituições judiciárias que representam, e lhes agradeço reconhecidamente o terem correspondido ao convite que o Tribunal lhes dirigiu para estarem hoje aqui. A presença de Vossas Excelências nos actos comemorativos do 10º aniversário do Tribunal Constitucional e nesta sessão é para nós motivo de particular júbilo e satisfação. E esperamos que igualmente seja ocasião propiciadora do incremento e consolação do nosso relacionamento institucional, já que, se estamos longe pela distância, estamos perto pelo afecto e pela cultura — e a cultura, incluindo também aí, decerto, a cultura jurídica, é seguramente um dos domínios que privilegiadamente se abrem ao intercâmbio, à cooperação e ao enriquecimento mútuo dos países do mundo lusófono, dos seus povos e das suas instituições. Disso — dessa enriquecedora experiência — podemos, de resto, muitos de nós, dar vivido e gratificante testemunho.
Senhor Presidente da República e ilustres convidados:
6. Ao dar balanço ao primeiro decénio de actividade deste Tribunal, não quereria enveredar por uma alongada citação de cifras e de números, certamente despropositada e fastidiosa. Mas como os números têm a inegável vantagem de muitas vezes falarem por si, não me poderei furtar a referir alguns.
Direi, pois, que, desde a sua entrada em funcionamento até ao final de 1992, o Tribunal Constitucional proferiu 3666 acórdãos, o que representa uma média anual de mais de 380 decisões. Desse número global, 3251 acórdãos (ou seja, cerca de 89%) correspondem a processos de controlo normativo, 290 a processos eleitorais (respeitando, na sua máxima parte, ao contencioso eleitoral autárquico), 66 ao registo e inscrição de partidos políticos e suas coligações, 4 à admissibilidade de consultas directas aos cidadãos a nível local e ainda 53 a pedidos de acesso às declarações de património e rendimentos dos titulares de cargos políticos e equiparados (pedidos, pois — seja dito de passagem —, que foram em muito menor número do que por vezes parece supor-se e, de resto, saldando-se, quase sempre, pelo respectivo deferimento).
Os números confirmam, assim, que a vocação jurisdicional nuclear do Tribunal — talqualmente a Constituição da República o configura — é a do controlo normativo e, em particular, do controlo de constitucionalidade das leis e demais normas jurídicas. A este aspecto central da sua actividade me circunscreverei de seguida.
7. Limitando-me, pois, a esse ponto, devo antes de mais recordar e realçar que o Tribunal Constitucional português detém, na matéria, uma competência complexiva e muito vasta — a qual vai claramente para além da atribuída, em geral, a outros tribunais constitucionais europeus ou instituições afins: desde logo, a par das modalidades mais clássicas da fiscalização concreta (no caso português, em via de recurso de decisões judiciais) e da fiscalização abstracta sucessiva de normas jurídicas, consagra o nosso direito a possibilidade, mais rara noutros ordenamentos constitucionais, da fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis e diplomas com valor semelhante e ainda a possibilidade de controlo da chamada inconstitucionalidade por omissão; depois, a competência do Tribunal Constitucional, naquelas duas primeiras modalidades processuais, abrange a fiscalização da constitucionalidade, não apenas das leis, mas de qualquer norma que integre a ordem jurídica nacional, e estende-se, quanto às normas legislativas propriamente ditas, ao controlo de certas espécies de «legalidade qualificada» ou equiparável; e, por último, no que concerne ao controlo abstracto sucessivo, alarga-se a legitimidade para requerê-lo a um vasto leque de entidades públicas, que não encontra paralelo — tanto quanto sei — em direito comparado.
Refiro o facto sem qualquer entono crítico — que, de resto, nem seria curial nesta sede e oportunidade; mas tão-só para sublinhar como o conjunto de factores mencionados não podia deixar de conduzir à extensa produção jurisprudencial que assinalei. Produção, no entanto, que se reparte desigualmente pelas diferentes modalidades de controlo indicadas e se distribui entre elas — sem surpresa — em termos que podem dizer-se inversamente proporcionais ao impacto que cada uma tem tido na opinião pública e, naturalmente, nas instâncias políticas.
Com efeito, das 3251 decisões proferidas em processos de controlo normativo, apenas 244 o foram em processos de fiscalização abstracta — das quais 188 respeitam a processos de fiscalização sucessiva, 51 a processos de fiscalização preventiva (o que significa, em média, algo mais de 5 processos por ano) e 5 outras, apenas, ao controlo da inconstitucionalidade por omissão. Os restantes 3007 acórdãos (representando 92,5% do total) correspondem a processos de fiscalização concreta da constitucionalidade — ou seja, à fiscalização que, tendo lugar no contexto da aplicação das normas aos «feitos submetidos a julgamento», como se diz na nossa velha fórmula constitucional, começa por competir à generalidade dos tribunais, de cuja decisão, porém, cabe recurso, depois, para o Tribunal Constitucional.
Aqui, porém, já os números podem ser enganadores, quanto a importância qualitativa das diversas espécies processuais de controlo normativo. E tanto mais quanto, a essa expressão quantitativa global das decisões relativas à fiscalização concreta, importa descontar: o número daquelas ( 188) que dizem respeito a simples reclamações da não admissão, pelo tribunal a quo, do recurso de constitucionalidade; o das que, proferidas em recursos subidos ao Tribunal, se revestem, todavia, de mera natureza adjectiva (nada menos do que 913); o daquelas outras, (657) em que o Tribunal se limitou a aplicar declarações de inconstitucionalidade entretanto emitidas com força obrigatória geral e ainda o dos casos (em número indeterminado, mas seguramente de algumas centenas) em que a questão a apreciar se repetia e o Tribunal mais não fez do que seguir a sua anterior jurisprudência.
Eles — os números apontados — mostram, decerto, que o maior volume da actividade jurisprudencial do Tribunal é, de longe, desencadeado a propósito da aplicação das normas aos casos concretos, ao correr, portanto, do quotidiano da vida jurídica dos cidadãos, e tendo por objectivo, assim, impedir ou elidir o efeito ou incidência imediata, sobre a respectiva esfera de direitos ou interesses, de eventuais violações da Constituição: era previsível, e direi mesmo que era desejável, que assim fosse. Mas esses números não devem esconder o peso significativo que a fiscalização abstracta da constitucionalidade igualmente assume no caso do Tribunal Constitucional português: um peso resultante do próprio número dos correspondentes processos e decisões, que só na aparência é escasso, quer se confrontado com o de decisões do mesmo tipo de tribunais congéneres, quer tida em conta a frequente complexidade e relevância das questões naqueles postas (envolvendo, não raro, todo um diploma legal ou a traça de todo um instituto jurídico); resultante, em seguida, dos próprios efeitos dessas decisões, projectando-se directamente sobre a própria vigência das normas questionadas ou a viabilidade delas; resultante, por fim, e no concernente ao controlo preventivo, do facto de o Tribunal ser chamado a pronunciar-se no decurso do próprio processo legislativo. Bem se compreende, pois, que sejam essas decisões as que mais merecem o favor (ou desfavor) da atenção da opinião pública.
8. Aos números que acabo de referir e às observações que a respeito delas acabo de fazer, seja-me consentido que acrescente duas notas mais.
A primeira delas para salientar que, face ao considerável volume processual com que o Tribunal Constitucional se tem vindo a confrontar, num crescendo praticamente contínuo ao longo dos anos, não lhe tem sido fácil, e nem mesmo lhe tem sido fácil, e nem mesmo lhe tem sido sempre possível, proferir as suas decisões com a brevidade mais desejável. O problema não se põe quanto à fiscalização preventiva — pois que aí, não obstante a dificuldade e melindre de muitas das questões que dela foram objecto, nunca o Tribunal deixou de cumprir os rigorosos prazos constitucionais a que se acha adstrito; e, se já pode levantar-se quanto aos recursos de constitucionalidade, ainda nesse caso as estatísticas oficiais disponíveis (desde 1987) revelam uma situação, em termos médios, que pode ter-se por aceitável: de facto, apenas no ano de 1990 (que se seguiu ao da recomposição do Tribunal) a duração média dos recursos decididos ao longo do ano atingiu os 13 meses, oscilando, nos mais anos, entre 8 e 10 meses.
As maiores dificuldades residem, sim, no domínio da fiscalização abstracta sucessiva. São, porém, dificuldades em boa parte estruturais, já que têm a ver, por um lado, com a maior morosidade de um processo decisório que reclama a intervenção do plenário do Tribunal e, por outro, com a aludida complexidade de que frequentemente se revestem as questões aí em apreço. Por isso, pese o permanente esforço do Tribunal, alguns atrasos acumulados vêm persistindo. E, se podem compreender-se as preocupações que a esse respeito por vezes se manifestam na opinião pública, ou em círculos interessados dela relativamente a processos determinados, tem o Tribunal entendido dever abster-se de estabelecer quaisquer outros critérios de prioridade — que acabariam por ser, no fundo, critérios «políticos» —, na ordenação do julgamento dos pedidos pendentes, para além dos que são iniludivelmente impostos por exigências do seu próprio funcionamento ou pela natureza transitória da lei em causa. Admite-se que possa discutir-se uma tal orientação, mas há-de reconhecer-se-lhe ao menos o mérito —que é a sua justificação — de pôr o Tribunal ao abrigo de toda a suspeita de eventual privilegiamento dos interesses de quaisquer grupos ou pessoas ou de «manipulação» indevida do timing da sua decisão.
A segunda breve nota que desejaria aditar reporta-se ao considerável número de decisões meramente processuais proferidas em recursos de constitucionalidade — número esse que corresponde, em percentagem, a 32,4% do respectivo total e se reconduz, na sua máxima parte, a decisões de não conhecimento do recurso interposto. Se tal número não pode ainda dizer-se propriamente preocupante, já merecerá, no entanto, ser objecto de reflexão, pois que porventura denuncia alguma tendência para a utilização do recurso de constitucionalidade como mero expediente processual dilatório do trânsito em julgado de decisões judiciais.
Trata-se de um risco inerente ao sistema de fiscalização da constitucionalidade vigente entre nós; mas seria certamente uma perversão deste que semelhante risco viesse a assumir proporções intoleráveis, pois que, então, o próprio direito fundamental dos cidadãos de acesso à justiça que estaria, afinal, a ser posto em causa. Contempla a lei, já hoje, mecanismos processuais destinados a contrabater esse uso abusivo do recurso de constitucionalidade; restará saber, porém, se eles vão mostrar-se suficientes, ou não haverá necessidade de adoptar ainda outros, que a um tempo contribuam para uma maior genuinidade e celeridade do processo constitucional.
9. Uma tão vasta actividade jurisprudencial, como a que se espelha nos números apontados, haveria certamente de conduzir o Tribunal a percorrer e ter de decidir uma larga gama de questões de constitucionalidade, a cujo inventário não é evidentemente possível, nem seria evidentemente cabido, proceder neste momento e nesta circunstância.
Sem embargo, e porque, mais do que a expressão quantitativa, importará a expressão qualitativa da jurisprudência do Tribunal nestes primeiros dez anos do seu funcionamento, caberá dizer aqui que tal jurisprudência se distribuiu praticamente por quatro áreas temáticas, que no seu conjunto cobrem, pode dizer-se, todos os grandes capítulos da ordem constitucional.
A primeira dessas áreas respeita à definição e delimitação da competência dos órgãos de soberania, área em que avultam um largo conjunto de acórdãos tendo por objecto a determinação do âmbito da reserva de lei parlamentar e, correlativamente, da competência legislativa concorrencial do Governo, o importante acervo jurisprudencial versando sobre matéria orçamental e ainda — num plano que já se relaciona também com a matéria dos direitos individuais — as decisões em que o Tribunal foi chamado a abordar e clarificar o problema da denominada «reserva do juiz», ou seja, dos domínios em que o decisor público há-de ser prioritariamente um tribunal e onde há-de excluir-se, portanto, a intervenção prévia de órgãos ou entidades administrativas.
Particularmente importantes e significativas são, depois, as também numerosas decisões sobre o âmbito da autonomia legislativa regional, área em que o Tribunal tem sido solicitado a esclarecer, sobretudo, seja o alcance do requisito do «interesse específico» regional (de cuja verificação positiva desde logo depende a competência para legislar das assembleias regionais), seja a natureza e a extensão das matérias reservadas ao poder legislativo central.
Cabe referir, em terceiro lugar, a jurisprudência relativa aos princípios fundamentais da ordem económico-social — jurisprudência em que se tratou, em especial, de precisar as directrizes da chamada constituição económica, o que vale por dizer, a estrutura e os contornos do modelo económico delineado pela Constituição, e em que se inscrevem decisões de tanto relevo e repercussão como as respeitantes à delimitação dos sectores de produção, à extinção de empresas públicas, à possibilidade (antes da revisão constitucional de 1989) de reprivatização parcial das empresas nacionalizadas, à lei de reprivatização, à lei da reforma agrária ou ainda à extinção da colonia, na Região Autónoma da Madeira.
Finalmente — mas, por uma vez ainda, sem que com isso se queira dar-lhe menos destaque, e antes ao contrário — cumpre mencionar a extensa e alargada jurisprudência do Tribunal sobre o princípio do Estado de direito democrático, e suas implicações, bem como sobre os direitos fundamentais das pessoas. Este é, de resto, um domínio de privilegiada vocação dos tribunais constitucionais e, se já hoje também assume um especial relevo na jurisprudência do Tribunal português, tenderá provavelmente cada vez mais a ocupar aí um lugar predominante — no seguimento de uma evolução, no tocante às áreas de maior incidência da intervenção do Tribunal e, antes dele, da Comissão Constitucional, que pode visivelmente discernir-se à medida que a própria Constituição portuguesa se foi gradual e progressivamente consensualizando e identificando com o padrão clássico da democracia ocidental.
No capítulo que refiro, tem tido o Tribunal, por um lado, oportunidade de precisar, clarificar e desenvolver o alcance de princípios jurídicos fundamentais, sempre de difícil e delicado manejo, como, nomeadamente, o princípio da igualdade, o princípio da protecção da confiança (na manutenção de situações legitimamente constituídas) ou o princípio da proporcionalidade das soluções legislativas — que se perfilam como decorrência directa da ideia de Estado de direito.
Por outro lado, tem a jurisprudência do Tribunal Constitucional contribuído decisivamente para tornar efectivo o reconhecimento dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição, trate-se de direitos, liberdades e garantias pessoais (lembre-se, em particular, a vasta jurisprudência relativa às garantias do arguido em processo penal e, bem assim, aos direitos dos cidadãos face à Administração pública), trate-se de direitos de participação política (com destaque para as decisões sobre inelegibilidades para cargos políticos), trate-se ainda dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (recorde-se a jurisprudência sobre a participação das suas organizações representativas na elaboração da legislação de trabalho, o regime do contrato individual de trabalho e o princípio da segurança do emprego).
10. Incidindo sobre os vários domínios que acabei de mencionar, tem a jurisprudência do Tribunal desempenhado um relevante papel — permito-me pensar que a conclusão será incontroversa — na efectivação, consolidação e desenvolvimento da ordem jurídico-constitucional. Numa formulação reassuntiva, mas que exprimirá bem o fundamental desígnio deste órgão de soberania, pode dizer-se, em suma, que tem o Tribunal contribuído decisivamente para assegurar o respeito pela regra de divisão de poderes e correlativo equilíbrio político-institucional, nas suas diferenciadas vertentes, postulados pela Constituição e para garantir, por outra parte, que o ordenamento jurídico nacional, no contínuo do seu dinamismo e evolução, com ela se mantenha em permanente e substantiva consonância.
Em muitos casos, e no exercício dessa sua função de garante da fidelidade essencial à Constituição do «processo político» (uso a expressão, evidentemente, no seu sentido mais restrito), tem o Tribunal sido conduzido a julgar ou declarar inconstitucionais as normas jurídicas submetidas à sua apreciação — agindo assim como instância «correctora» do procedimento legislativo ou das opções feitas e das soluções adoptadas pelos órgãos detentores da correspondente competência.
Não são menos importantes, porém, os casos ou situações inversas, em que o Tribunal concluíu pela não desconformidade com a lei fundamental das normas sujeitas ao seu veredicto, conferindo-lhes assim, e às escolhas políticas que lhes estão subjacentes, um complemento ou suplemento de legitimidade. É este — o da dimensão «legitimante» da justiça constitucional — um aspecto frequentemente esquecido ou deixado na sombra, mas não menor, da actuação dos tribunais constitucionais — e até, porventura, o que, numa perspectiva sistémica do princípio da divisão de poderes, melhor exprime o seu posicionamento no quadro institucional do Estado democrático e o sentido último da sua função: proferir a palavra final que, inspirada tão-só more juridico e «concertando-se» com a que exprime a vontade política dos órgãos legislativos, é necessária para que as normas por estes editadas recebam plena e indiscutida força obrigatória. Eis aí, pois, um outro e mais alargado e profundo significado que há-de também reconhecer-se à jurisprudência deste Tribunal, e que não podia deixar de ser aqui particularmente sublinhado.
11. Entretanto, não ignora o Tribunal que várias das suas decisões, e seguramente das não menos importantes, foram e têm sido objecto de crítica e controvérsia e deram mesmo azo, nalguns casos, a acesa polémica. Como não ignora que, com frequência, é essa controvérsia ou polémica alimentada pela imagem, que porventura prevalece na opinião pública, de um tribunal sistemática e habitualmente dividido na formação e tomada das suas decisões, e dividido necessariamente — assim se pensa — em função da diversidade de referências culturais, sociais e até ideológicas dos seus membros.
Importa dizer, pois, antes de mais, que tal imagem não corresponde, de todo, à realidade que a análise de conjunto da jurisprudência do Tribunal evidencia. Com efeito — e mesmo prescindindo do controlo concreto, em que a regra é, de longe, a decisão por unanimidade ou, quando menos, por uma maioria alargada, mas em que um numeroso grupo de decisões se reveste de mero cariz processual ou corresponde à repetição de julgados — verifica-se que ainda no controlo abstracto, incluindo o preventivo, mais de 50% (precisamente, 51 ,6% ) dos acórdãos foram tirados por unanimidade, que apenas 11,2% das decisões foram sufragadas por uma maioria inferior a dois terços dos juízes e que unicamente em 7 do total de 244 acórdãos teve de prevalecer o voto de qualidade do presidente. Os números, portanto, voltam aqui a ser indiscutíveis.
Sem embargo, reconhece-se que justamente em alguns arestos com particular relevância, e que suscitaram maior controvérsia, não se verificou essa regra de um alargado consenso decisório entre os membros do Tribunal. Só que, há-de assumir-se, sem farisaísmo, que uma tal situação, se é sempre igualmente possível e verificável em qualquer jurisdição, representa uma contingência inevitável na justiça constitucional.
Com efeito, nesta se trata, em larga medida — e não só mais, como, de certo modo, em medida qualitativamente diversa da de outros domínios jurisdicionais —, de decidir em função de «princípios», e não de «regras» jurídicas tecnicamente acabadas, com frequente recurso a conceitos de valor, ou a conceitos indeterminados, cláusulas gerais e mesmo simples directrizes — como são os que efectivamente preenchem boa parte do quadro normativo constitucional. Princípios, conceitos, cláusulas e directrizes essas cuja «determinação» só logra obter-se, assim, através de uma «mediação» concretizadora dos operadores jurídicos, na qual a «precompreensão» destes (numa palavra, o mundo das suas referências culturais) não pode deixar de necessariamente interferir.
Eis por que, quando estejam em causa questões de fronteira, e que nomeadamente toquem a diversidade de mundividências das pessoas, não é de estranhar o dissenso nas decisões, nem a controvérsia que em torno delas se instale. O facto ocorre — é sabido e notório — em todas as jurisdições constitucionais.
Mas então, se é assim, o que realmente importa é assegurar uma composição plural dos correspondentes tribunais, sob o ponto de vista das «referências culturais» dos seus membros, que seja o reflexo das diferentes «sensibilidades constitucionais» —direi assim — imperantes na comunidade política e jurídica, e que permita através do debate ou mesmo da dialéctica interna do tribunal ultrapassar quanto possível o condicionamento emergente da precompreensão de cada juiz para se alcançar por aí a objectividade viável, e muitas vezes tão só precária ou provisória, na esfera do direito.
Não se negará que o regime instituído entre nós para a designação dos juízes do Tribunal Constitucional tem conduzido a que esta exigência fundamental da composição dos órgãos que têm por tarefa a justiça constitucional e que é indispensável a um correcto e imparcial exercício da sua missão venha sendo, quanto a ele respeitada.
Senhor Presidente da República,
Excelências,
Senhoras e Senhores:
12. É tempo — é mais que tempo! — de terminar. Diz uma velha regra de sabedoria que ninguém é bom juiz em causa própria. Acrescentarei que dessa tentação devem em especial cuidar-se aqueles que têm precisamente como sua a missão de julgar. Por isso — num gesto que pelo menos não é comum — tomou o Tribunal Constitucional português, na passagem do seu 10º aniversário, a iniciativa de convocar a comunidade jurídica para com ele reflectir sobre a sua própria legitimidade e legitimação.
Ouso no entanto pensar depois desse importante e vivo debate — ao qual já tive oportunidade de referir-me — e face ao balanço, que acabei de fazer, do que foi a actividade do Tribunal ao longo destes dez decisivos anos decorridos desde a sua criação, ouso pensar — dizia — que não se negará a pertinência e a necessidade de um órgão de justiça como este no quadro constitucional, nem se porá fundadamente em causa o papel positivo que ele aí vem desempenhando. Ao fim e ao cabo, para além de todas as situações mais polémicas ou críticas, e serenada a controvérsia, é a sua virtualidade pacificadora de tensões e estabilizadora da ordem jurídica vigente que fica e prevalece.
De resto, se não é ainda universal, é cada vez mais difundido o entendimento — e a evolução do constitucionalismo europeu do último meio século aí está a mostrá-lo — de que no Estado democrático contemporâneo já não é mais suficiente a garantia «política» da Constituição, típica da concepção liberal desta e centrada, em último termo, no voto parlamentar da lei. Na verdade, num tal modelo de Estado (como é também o nosso), em que o público político, com a generalização do sufrágio, não apenas se universalizou, como se tornou social e ideologicamente hererogéneo e plural, e em que a lei, deixando de ter apenas a função de regulador inter-subjectivo de comportamentos, passou também a ser um necessário e necessariamente «politizado» instrumento de governo, num modelo de Estado assim, não podia deixar de vir a postular-se um revigoramento da dimensão e da força jurídico-normativa da Constituição — enquanto imprescindível quadro consensual de referência e legitimação do também plural processo político exigido por esse condicionalismo — e a consequente instituição (ou intensificação e alargamento) de uma sua tutela ou garantia jurisdicional.
Bem se sabe que aí radica, em definitivo, a razão de ser político-institucional da justiça constitucional, no seu momento mais relevante que é o de controlo judicial da actividade legislativa; e, do mesmo modo, a decisão de confiá-la a tribunais específicos, reflectindo na sua composição uma particular sensibilidade às «questões constitucionais» (aos «assuntos do Estado» ), dotados de uma especial legitimação e caracterizados por um especial estatuto.
E se, apesar de tudo, a questão da legitimidade dessa justiça e desses tribunais não deixa de ser um tema recorrente da doutrina jusconstitucionalista — em reeditada versão de um debate que remonta aos alvores do constitucionalismo americano, pátria primeira do judicial review das leis — já não é tanto para questioná-la radicalmente, como uma judicial usurpation, quanto para clarificar o seu fundamento, os seus métodos e os seus limites, e prevenir que se transforme numa forma pervertida e perversa de governo, como sempre seria e será a de um «governo de juízes».
Sem dúvida é esse um risco de toda a justiça constitucional — chamada como é a cumprir-se num domínio de permanente e inevitável tensão entre o direito e a política; e dele hão-de estar conscientes todos aqueles a quem a comunidade confira em algum momento a delicada tarefa de exercê-lo.
Creio profundamente que não poderá afirmar-se com verdade que o Tribunal Constitucional português incorra em tal pecado. Mais do que isso, porém, o que posso e devo afiançar nesta oportunidade é a escrupulosa vigilância continuadamente mantida pelos seus membros perante esse risco — ainda aqui, afinal, em obediência ao juramento que prestaram Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, de cumprir a Constituição da República Portuguesa e de desempenhar fielmente as funções em que foram investidos.