Rui Manuel Moura Ramos
Colóquio Comemorativo do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional
"A Jurisprudência Constitucional Portuguesa"
23 e 24 de outubro de 2008
Salão Nobre da Associação Comercial de Lisboa
1. Ao intervir na sessão solene comemorativa do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional referimos que uma das perspectivas que se poderia ter adoptado nessa circunstância era a da avaliação do impacto, sobre os vários sectores do ordenamento jurídico português, da leitura da Constituição a que o Tribunal Constitucional tem vindo a proceder.
Na verdade, o sistema de fiscalização da constitucionalidade das leis instituído entre nós, e o papel que nele é reconhecido ao Tribunal Constitucional, levou a que esta instituição se tenha ocupado da conformidade constitucional de regras pertencentes a praticamente todos os domínios do universo jurídico. A isso não é decerto estranha a configuração do recurso de constitucionalidade adoptada entre nós, que possibilita aos cidadãos trazer a este Tribunal a alegação da inconstitucionalidade das normas (de quaisquer normas) em que se fundam as decisões proferidas nos pleitos em que litigam nos demais tribunais. Por esta via, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre regras dos mais diversos sectores do jurídico nos perto de doze mil acórdãos de que ao longo deste quarto de século foi autor.
Esta intervenção, quando se sabe quais são os efeitos reconhecidos a estas decisões em fiscalização concreta, coloca naturalmente o problema da unidade do sistema jurídico e do sentido da leitura que o Tribunal Constitucional tem feito, do nosso ordenamento à luz dos princípios constitucionais. E é essa uma reflexão que cremos que importa fazer, ou antes aprofundar, uma vez que ela não pode desde logo deixar de ter estado subjacente à diuturna actividade deste Tribunal.
2. A análise das linhas de força da jurisprudência constitucional portuguesa não constitui no entanto novidade. Com efeito, coincidindo com os dez anos de actividade da nossa instituição, uma publicação (Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional) reunia catorze estudos sobre a actividade jurisprudencial do Tribunal, da autoria de juristas que de uma forma ou de outra se encontravam ou tinham encontrado ligados a esta casa, alguns dos quais, aliás, temos o gosto de ter entre nós. Por outro lado, a mesma jurisprudência é objecto, no mundo académico, de crónicas regulares, em prestigiadas revistas científicas nacionais e estrangeiras, ou de análises mais pontuais em publicações especializadas, ou noutras, de âmbito mais geral, que à reflexão realizada por este Tribunal têm dedicado a sua atenção. Recordemos, a este propósito, entre outros, os comentários anuais do Prof. Jorge Miranda na revista O Direito e no Anuário Português de Direito Constitucional, as crónicas do Professor Romano Orrù na Giurisprudenza Constituzionale e as anotações críticas inseridas em jovens revistas como Jurisprudência Constitucional, que a ela se dedicam principalmente, ou em publicações centenárias como a Revista de Legislação e de Jurisprudência, que, mau grado uma conhecida vocação generalista, lhe tem dedicado particular atenção.
Se a presente iniciativa não é assim inédita ela tem no entanto um traço particular. Que reside na circunstância de, por um lado, ser promovida ou desencadeada pelo próprio Tribunal Constitucional, que no entanto se reservou apenas este papel promotor, deixando a reputados especialistas dos vários sectores do direito o balanço da sua jurisprudência. O Tribunal Constitucional não ignorou com isto as particulares responsabilidades, que plenamente assume, na leitura da Constituição, incumbência em que foi investido pela própria lei fundamental, e no efeito de irradiação das suas decisões sobre o ordenamento jurídico. Mas não esqueceu igualmente que, com o desenvolvimento de uma cultura constitucional, a interpretação da Constituição não é exclusivo seu, mas função e direito que partilha com uma “sociedade aberta de interpretes da Constituição” que se estende a toda a comunidade jurídica. Ou, de forma mais ampla, a todos os cidadãos, assim se fazendo eco de um sentimento que levou os constituintes franceses de 1791 a entregarem a defesa da Constituição “à la fidélité du Corps législatif, du roi et des juges, à la vigilance des pères de famille, aux épouses et aux mères, à l’affection des jeunes citoyens, au courage de tous les français”. Daí que os membros da jurisdição constitucional portuguesa se tenham reservado pois, para este encontro, e ao invés do seu papel normal, essencialmente, uma função de escuta.
3. Como deixámos sugerido, o leque de matérias que poderia ser considerado é particularmente vasto, não resultando as omissões que se poderão detectar de qualquer outra razão que não a decorrente da impossibilidade de tratar todos os temas ou subtemas onde a jurisprudência constitucional veio a impregnar significativamente o direito infraconstitucional. É sobretudo deste último, de facto, que se curará, e aos sectores mais extensamente atingidos pela intervenção do juiz constitucional português será dedicada cada uma das intervenções que iremos ouvir. De direito constitucional ou político, no sentido de ordenação jurídica do Estado, e da sua problemática específica, falar-se-á menos. Até porque esse tem sido o objecto essencial de anteriores iniciativas do mesmo tipo que, a outros propósitos, o Tribunal Constitucional tem promovido. Abriu-se porém uma excepção para a temática constitucional das Regiões Autónomas, que talvez tenha merecido entre nós menos atenção que a que tem sido votada a outros aspectos de organização política do Estado e a que os desenvolvimentos que lhe foram consagrados em duas das últimas revisões constitucionais vieram dar especial relevo. E, reconhecendo que a jurisdição constitucional portuguesa partilha com outras instâncias homólogas um espaço de intervenção em que existem profundas analogias, procurou-se surpreender, em relação a estas outras instâncias, as especificidades estatutárias e sobretudo comportamentais do caso português, para o que contamos com uma perspectiva de índole comparativa que procurará situar a nossa experiência no contexto mais vasto da das instituições congéneres. Enfim, tarefa talvez mais difícil, intentou-se delinear se e em que medida a multiplicidade de pronúncias permite prefigurar linhas directrizes que possam ser elevadas ao estatuto de conclusões.
Se este é o temário que delineámos resta dizer que ficou ao inteiro critério de cada um dos nossos conferencistas a escolha do modelo de intervenção que iremos escutar, mais centrada na análise do texto constitucional, nuns casos, sobretudo discorrendo noutras situações em torno das concretizações jurisprudenciais que dele se foram fazendo.
4. Importa referir que ficaram propositadamente fora do âmbito deste colóquio diversas áreas competenciais por que se reparte a actividade do Tribunal Constitucional Português. Na verdade, do contencioso eleitoral à sindicância de certas decisões dos partidos políticos, como à fiscalização das suas contas bem como das das campanhas eleitorais, e a aspectos relevantes do estatuto dos titulares de cargos políticos, que vão do controlo das declarações de incompatibilidades e impedimentos à recepção e arquivo das suas declarações de património e rendimentos, todo um universo de outras funções foi igualmente atribuído pela Constituição ou pela Lei ao Tribunal Constitucional. A não consideração dessa problemática não implica qualquer juízo sobre a maior ou menor densidade constitucional dessas funções, mas apenas o reconhecimento de que, distintamente do que ocorre com o controlo de constitucionalidade das leis, elas não integram, por assim dizer, a jurisdição nuclear do Tribunal Constitucional Português. Com efeito, cremos poder dizer que é em função da competência que é chamado a exercer no domínio central do controlo da constitucionalidade normativa que se delineou o perfil também ele algo único e específico da jurisdição constitucional portuguesa, constituindo as demais áreas competenciais que lhe foram atribuídas opções legislativas ou constitucionais explicáveis pelas circunstâncias que as rodearam, mas cuja reversibilidade se não pode pretender puzesse em questão o essencial do nosso Estado de Direito. Diferentemente, a modelação do controlo jurídico da constitucionalidade das leis parece integrar, no fundamental, um adquirido civilizacional que distingue o constitucionalismo dos nossos dias. O que justifica assim o papel central que ocupa na actividade da nossa jurisdição constitucional e a que por isso se entendeu dedicar a reflexão que constitui objecto do presente colóquio.
5. Cabe-nos finalmente, ao dar por abertos os trabalhos destes dois dias, agradecer o contributo de todos aqueles que iremos ouvir e que aceitaram enriquecer a análise do labor desenvolvido pela jurisdição constitucional portuguesa. Desta forma possibilitando também um maior escrutínio público sobre a actividade de um poder do Estado que, ao assumir a condição de legislador negativo, vê ser-lhe confiada uma especial responsabilidade na interpretação da Constituição. Tarefa que pretende desenvolver, hoje como ontem e amanhã, afirmando uma jurisprudência que possa merecer a confiança dos nossos concidadãos e o respeito da comunidade jurídica.
Muito obrigado pela vossa atenção.