Artur Joaquim de Faria Maurício
Tomada de Posse
28 de outubro de 2004
Tribunal Constitucional
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Ministro da Justiça
Senhor Ministro dos Assuntos Parlamentares
Senhor Procurador Geral da República
Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo e Senhor Vice-Presidente
do Tribunal de Contas em representação do Senhor Presidente do
mesmo Alto Tribunal
Senhor Provedor de Justiça
Senhor Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Advogados em representação
do Senhor Bastonário
Senhores Deputados e Senhores Secretários de Estado
Excelências
Senhores Conselheiros
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos
Senhores Professores
Senhores Magistrados
Senhores Funcionários
Minhas Senhoras e meus Senhores
O acto de posse que V. Exas acabaram de testemunhar
inscreve-se numa fase particularmente dolorosa da vida do Tribunal Constitucional,
instalada com a brutal interrupção de um mandato presidencial
que chegaria ao seu termo em março de 2007 – o mandato do nosso
presidente Consº Luís Nunes de Almeida.
O que, em outras circunstâncias, poderia constituir um momento jubiloso de renovação do Tribunal é agora um tempo triste, de pesar, de comoção, de perda irreparável; o sentimento de vazio que sempre deixam, quando partem, os que foram presença marcante na vida de uma instituição mora ainda aqui e por muito tempo não nos abandonará.
As exigências de continuidade do serviço público não se compadeceram, porém, com o nosso luto e foi com um sentimento diria de quase orfandade que os juízes desde Tribunal se viram obrigados a recompor um colectivo tragicamente desfeito, primeiro com a cooptação de um novo juiz e, depois, com a eleição de um novo presidente.
Não vos escondo que, sendo hoje o Tribunal Constitucional um órgão jurisdicional que merece da comunidade jurídica e da generalidade do povo português uma aceitação sem reticência, pela qualidade científica, pelo equilíbrio e pela isenção das suas decisões – o que se alcançou com a dedicação o esforço e o mérito de todos os seus juízes, antigos e actuais, mas, decisivamente, com a liderança dos dois últimos presidentes deste Tribunal – não escondo – repito - que por muitos terá passado o sobressalto de uma dúvida: a de saber se quem ficava e quem viesse de fora, primeiro nas escolhas a que estavam obrigados e, depois, no exercício continuado das suas funções teriam o engenho e a arte necessários para prosseguir este caminho de afirmação do Tribunal Constitucional como pilar seguro do Estado de Direito democrático.
É uma dúvida a que só o tempo dará resposta.
Mas é desde já certo que o TC agiu e vem agindo, em todo este processo, com serenidade, transparência e isenção, fiel aos compromissos que asseguram na sua composição um equilíbrio imprescindível de visões do Direito e da Justiça, e com a assunção plena das suas competências próprias, a que não deve, nem quis renunciar; e não se esperaria outra coisa de um órgão que, criado há pouco mais de 20 anos, alcançou já a sua maturidade.
Quiseram os meus colegas conferir-me o mandato de presidir ao Tribunal Constitucional no pressuposto de que, nas presentes circunstâncias – e acentuo nas presentes circunstâncias – se tratava de uma solução adequada, no respeito dos compromissos assumidos, a minorar os tremendos custos de uma sucessão não anunciada.
À beira do termo de uma carreira de magistrado que se desenvolve por quase quatro décadas não era este o percurso final que podia esperar. Mas também não seria justo que o compreensível desejo de me manter no exercício das honrosíssimas funções de juiz do TC, me indisponibilizasse para uma tal solução, onde o eleito vê para si voltadas as luzes de algum mediatismo, por vezes incómodo, e representa – para o mal e para o bem – a imagem mais visível do TC.
Sei que sucedo a grandes vultos da nossa judicatura. E tão grandes que tudo o que deles agora louvasse sempre os desmereceria.
Ninguém aliás ignora o altíssimo saber (do Direito e da Vida), a entrega total ao serviço público, a integridade, a isenção e o bom senso (virtude hoje tão injustamente menosprezada, mas cada vez mais necessária) com que os Conselheiros Cardoso da Costa e Luís Nunes de Almeida iluminaram os seus mandatos.
O orgulho e a honra de lhes suceder não me escurecem o discernimento: igualar o mérito das suas presidências é objectivo que me não exijo. Dar a possível continuidade ao trabalho que desenvolveram, não comprometer os resultados que alcançaram, não empalidecer a imagem do Tribunal que consolidaram, são estes – e não lhes quadra a modéstia – os objectivos a que me proponho.
Para o que me falta em méritos sobra-me o alento que os Colegas me quiseram dar com a sua escolha.
E aqui não devo poupar as palavras: os Colegas que, comigo, compõem este Tribunal formam um colectivo notável.
Notável, primeiro, no apurado sentido que,
vêm revelando, dos interesses e valores, dos direitos e dos deveres que
a Constituição consagra e cuja defesa constitui a razão
de ser deste Tribunal.
Notável, depois, no conhecimento profundo dos variadíssimos ramos
do Direito que aqui confluem e que o respeito das decisões judiciais,
no estrito plano do direito infraconstitucional em fiscalização
concreta de constitucionalidade, não torna menos necessário.
Notável, por fim, na capacidade de debate, de um debate vivo e livre, que o encontro de proveniências diversas e de distintas perspectivas do mundo do Direito e da Justiça nunca comprometeu e tem antes enriquecido.
E tudo vem sendo possível num ambiente ímpar de relacionamento humano, feito de lealdade e de entreajuda, de transparência e de inteireza, onde a procura de consensos não passa nunca pelo desrespeito das diferenças.
Mantêm-se, assim, todas as condições
para o Tribunal continuar a merecer a confiança e o respeito do povo
português.
Mas para que essa confiança e esse respeito se não percam há
que dar continuidade, entre muitos outros, a um esforço: o de tornar
cada vez mais claro e próximo dos cidadãos o que o Tribunal decide.
Esforço que, exige, desde logo, uma compreensão
mais profunda do lugar que o Tribunal ocupa na estrutura do Estado e particularmente
do que ele pode dar aos cidadãos – saber dele com rigor o que se
deve exigir e o que se não pode, nem deve. esperar é condição
para se prevenir os riscos de uma inconstância que nos é tão
própria e nos faz passar, em instantes, da exaltação à
descrença e à frustração.
É fácil criar-se, por razões conjunturais, no imaginário
dos cidadãos, a ilusão de uma instância – o Tribunal
Constitucional - que sempre acabará por resolver a contento as questões
que os tribunais decidiram em termos eventualmente controversos.
Não é, de todo, assim.
Antes do mais e como repetidamente o tem afirmado, o Tribunal Constitucional não representa, em fiscalização concreta, uma terceira ou quarta instância de recurso. Os seus poderes limitam-se à apreciação de questões de constitucionalidade normativa, ou seja de questões relativas à constitucionalidade das normas aplicadas pelos tribunais; e tal implica o respeito rigoroso pelo que estes tribunais decidem no que concerne quer ao apuramento dos factos quer ao direito infraconstitucional aplicado.
Mas esta realidade nunca passará para os cidadãos se, no plano mediático em que se colocam determinados processos, os títulos de caixa alta que a propósito se lançam para as primeiras páginas de diários e semanários ou as primeiras notícias dos telejornais, preferirem ao rigor a desinformação que melhor satisfaz o apetite do público.
Também aqui a comunicação social – a que, nos limites da lei, e pelas vias adequadas, o TC estará, como sempre esteve, aberto – assume uma importância decisiva. Se falar a linguagem do rigor ela contribuirá seguramente para o esclarecimento de todos, condição desde logo essencial para a compreensão do que se decide e do modo como funcionalmente o TC se articula com todos os outros tribunais.
Ainda com outra vantagem: a de fazer aceitar mais facilmente, a todos os que estão em juízo, que a justa composição dos seus litígios, quando não passe pela controvérsia sobre a constitucionalidade das normas aplicadas, há-de ser feita – e será feita - nos tribunais que integram as várias jurisdições do nosso aparelho judiciário.
E assim se reduziria o que, a despeito de uma jurisprudência
firmada sobre a generalidade dos pressupostos do recurso de constitucionalidade,
se continua a verificar no TC: por falta desses pressupostos, que não
são exigência absurda do legislador, o Tribunal não conhece
do mérito de cerca de 2/3 dos recursos entrados.
Reconheça-se que este resultado tem outras causas, bem menos aceitáveis:
o recurso de constitucionalidade é ainda muitas vezes usado, com objectivos
meramente dilatórios sem que o Tribunal disponha de meios eficazes para
o evitar ou reprimir, para além do acrescido esforço dos seus
juízes no sentido de reduzir o tempo médio de pendência
dos processos.
Aqui, como em outros domínios, há que introduzir os necessários aperfeiçoamentos para se concretizar, sem desqualificação do direito de acesso aos tribunais e, em geral, dos direitos fundamentais, o modelo de Justiça que a Constituição consagra.
Esta será, como muitas outras, mais uma das questões em que se entretece a chamada crise da Justiça.
Crise de que, ciclicamente se fala, com o espectro de rupturas, com maior ou menor ressonância, no nosso como em muitos outros países.
Crise permanente, portanto.
Mas crise desejável também, quando sintoma de inquietação na procura de soluções menos imperfeitas, de uma consciência colectiva mais atenta e crítica, da insatisfação que sempre dinamiza o progresso das sociedades.
Crise que, hoje como ontem, se resolverá, sempre transitoriamente, com a necessária participação de todos os órgãos e operadores judiciários. E como observatório de algum modo privilegiado da justiça que se administra nos nossos tribunais, também o Tribunal Constitucional se não furtará a dar a sua contribuição para as reformas que se imponham, com a convicção antecipada de que elas se não devem quedar pelo remendo, aqui e ali, consoante os impulsos do momento, e, principalmente, sem ter em conta a lógica global do ordenamento que vão supostamente consertar.
Crise que, particularmente em matéria de processo penal, gostaria de ver solucionada apenas no quadro do direito infraconstitucional. Quero com isto dizer: sem a tentação de procurar em revisões constitucionais extraordinárias o arrimo que o quadro constitucional vigente, no que em especial respeita aos direitos, liberdades e garantias, não confere, ou dificilmente confere, às medidas legislativas que, de imediato, se julgam mais eficazes.
É que a nossa Constituição, com a sua identidade própria e em que a larga maioria do povo português se revê, não pode desfigurar-se a cada obstáculo que o legislador ordinário, pretendendo dar corpo de lei às suas opções, nela entenda como inultrapassável; e se, de facto, for assim, talvez se deva verificar, com prioridade, se esse obstáculo não constitui a solução mais harmoniosa de um conflito entre os valores e direitos constitucionais em presença, ou, mais ainda, aquela que o respeito de princípios fundamentais inevitavelmente impõe.
De outro modo, os que reclamam, por vezes com certa ligeireza, modificações do ordenamento jurídico-constitucional e se satisfazem momentaneamente com a consagração dessas modificações não poderão estranhar que, mais tarde, em diverso posicionamento ou com interesses opostos, devam afinal reconhecer o bem fundado do que se alterou.
Isto aqui se diz – assinale-se bem – sem preconceitos imobilistas face a uma Lei que se não pretende intemporal e com a garantia de que o Tribunal Constitucional saberá julgar – como não poderia deixar de ser – de acordo com o texto constitucional que o órgão de soberania competente eventualmente reescrever.
Ilustres convidados
Minhas Senhoras e meus Senhores
Como é sabido, não se resume a actividade do TC ao conhecimento dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade. Progressivamente ampliada a sua competência e abrangendo hoje os mais variados domínios, continua a ser, no entanto, a fiscalização abstracta de constitucionalidade e de legalidade de normas, preventiva e sucessiva, que, em geral, mais agita a comunidade jurídica.
Foi, talvez, aqui que se sentiram maiores dificuldades na compreensão dos poderes do Tribunal Constitucional e do lugar que este órgão ocupa no seu relacionamento com outros órgãos de soberania, democraticamente legitimados pelo voto popular; mas as reticências suscitadas, até em nome da Democracia, esqueciam que o Tribunal Constitucional – um tribunal constitucional – só tem sentido na relação funcional e moral com o regime democrático – afirmou-o, há muitos anos, o Prof. Lucas Pires há muitos anos.
Terá sido esta a razão que determinou o Presidente Nunes de Almeida, nas palavras que proferiu no seu acto de posse, a dar algum relevo a este tema; e aí deixou claro o que o Tribunal Constitucional não é, não pode, nem nunca quis ser: um fiscal político das opções políticas que os órgãos constitucionalmente legitimados para o efeito entendam pôr em execução, com a emissão de normas.
Hoje, a repetição ou o reforço dessas palavras dariam o falso sinal da sua necessidade.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem persistentemente revelado, na sua jurisprudência, um respeito absoluto pela esfera dos poderes próprios dos órgãos – assembleias e governos – a quem compete traduzir em lei as suas políticas, limitando a sua intervenção ao controlo de constitucionalidade e de legalidade dos actos normativos que aqueles produzem – e tal tem sido compreendido e pacificamente aceite pela comunidade jurídica e por todos os órgãos de soberania.
Ainda há bem pouco o Prof. Gomes Canotilho, aqui presente e a quem saúdo com a maior consideração, afirmou que o Tribunal Constitucional, no tratamento de determinados temas sensíveis, nunca passou dos direitos às políticas, o que, sendo embora verdade, não oculta obviamente a possibilidade de se fazer política por linhas do direito - e neste sentido também o Tribunal a terá feito - nem significa um indesejável - ou impossível - apagamento das ideologias, em particular na interpretação e aplicação dos princípios constitucionais, sempre carecidos da mediação do julgador.
Estabilizada esta tendência jurisprudencial, com a consciência de que ela tem contribuído, também, para o acatamento dos seus julgamentos, o Tribunal Constitucional continuará a garantir o respeito da Constituição e dos direitos fundamentais dos cidadãos por parte dos órgãos do Poder.
As decisões do Tribunal não extravasam, como nunca extravasaram, a medida justa que aquele mesmo respeito impuser.
E é por isso que as notícias do bloqueio repousam hoje na História como poeiras definitivamente adormecidas...
Muito obrigado pela vossa presença.
Está encerrada a sessão.