Artur Joaquim de Faria Maurício
Sessão de Encerramento do VII Congresso dos Juízes
Portugueses
24 a 26 de novembro de 2005
Praia do Carvoeiro (Algarve)
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Senhor Ministro da Justiça
Senhor Presidente da ASJP
Colegas
Minhas senhoras e meus senhores
Quando se vê anunciada para a sessão de encerramento do Congresso dos juízes portugueses uma intervenção do presidente do Tribunal Constitucional, dela se espera o tempo breve, o tom institucional e uma certa medida de circunstância.
Por razões que facilmente todos compreendem, deve ser assim: não foi ao juiz que vai chegando ao fim da sua carreira de magistrado e continua sócio da Associação Sindical dos Juízes Portugueses que concederam a honra deste espaço; nessa qualidade, ele estaria, não menos honrosamente, ao lado dos seus colegas, nos momentos que lhe estivessem reservados ao longo do congresso, debatendo a organização do poder judicial, o recrutamento e a formação dos juízes, o associativismo na magistratura, a independência do juiz, enfim os temas que escolheram para este congresso.
Cumprirei com rigor a exigência de brevidade, mas admito que o pouco que tenho para dizer nem sempre se contenha no espaço estreito dos deveres institucionais e transgrida, por vezes, a medida da circunstância.
Uma vida de magistrado que não ficou à margem dos caminhos
por onde o poder judicial se foi transformando e procurou ser, na medida do
possível, actuante e interventiva, pesa o suficiente para, em momentos
críticos para as magistraturas e para o poder judicial, não me
afeiçoar a voz ao sabor das conveniências, sejam elas quais forem.
Por força do meu cargo actual, situo-me hoje a uma relativa distância
do meio judiciário comum, tenso e crispado, onde a problemática
da justiça se viverá com maior calor.
De todo o modo, o Tribunal Constitucional continua a ser observatório
privilegiado de uma visão, ainda que sectorial, da justiça, nos
lugares onde ela, em primeira linha se faz, ou deve fazer; e é, conjugando
a experiência adquirida em algumas décadas de função,
o que poderá avalizar a minha breve intervenção.
“Justiça, garantia do estado de direito” foi o tema escolhido para o congresso.
Indiscutível a afirmação, a sua escolha, embora decidida em tempo mais recuado, acaba por perder hoje a sua inocência e vir carregada de sentido – algo não vai bem na justiça quando se evoca, em jeito de aviso, a sua maior qualificação num Estado Democrático.
Mas não é, de facto, qualquer justiça que garante o Estado de Direito; e o que se deve questionar – e certamente o fizeram durante o Congresso – é se esta justiça – a que temos e a que parecemos ter – assegura ao povo, em nome de quem ela deve ser administrada, o cumprimento eficaz do que a nossa Constituição faz incumbir aos tribunais: defender os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Disse: a que parecemos ter.
Refiro-me obviamente a imagens e aparências, porque hoje é,
como todos sabemos, o seu tempo privilegiado.
Nada do que essencialmente é, releva, se não passa para o imaginário
colectivo através dos meios por que ele se conforma.
E por mais falseada ou distorcida que a imagem da justiça chegue aos cidadãos, desprezá-la ou desconsiderá-la como um dos pontos de partida no debate sobre a nossa Justiça constituiria erro estratégico de monta.
Não se pode ignorar o recorte actual dessa imagem.
Ele desenha os nossos tribunais como lugares onde vingam os interesses dos mais fortes e campeia o laxismo dos seus servidores.
A Justiça faz cair a sua venda, com maior ou menor disfarce, e espreita quem está de momento sujeito ao seu poder.
A magistratura deixou de ser uma função de prestígio e é lançada para as posições mais baixas nas escalas profissionais.
O privilégio – o verdadeiro privilégio – da honra de ser magistrado transmudou-se no privilégio de supostas mordomias.
Os advogados queixam-se de "maus tratos" nos tribunais.
Nas palavras de um ilustre magistrado, mostra-se “esfarrapada” a bandeira da independência que a justiça teima em levantar, não muito alto.
Ao longo do meu tempo de magistrado nunca me importunaram os anúncios recorrentes de crise na justiça.
Mais ou menos fundados, eles podiam sinalizar a necessidade de transformações e aperfeiçoamentos.
Proporcionavam a inquietude e a reflexão.
Evitavam o marasmo e o entorpecimento a que estão sujeitos corpos de conservação como são tradicionalmente – ia dizer estruturalmente – os tribunais.
Porque nos deve, então, embaraçar esta crise?
Em primeiro lugar, porque ela é ampliada pelos que hoje modelam a imagem externa da justiça.
A mediação, nos termos em que é feita, converteu-se no próprio objecto mediado.
E é ver como os “malogros da justiça”, supostos – mas reais aos olhos dos cidadãos – frequentemente vezes resultam, tão só, do desajustamento entre as decisões judiciais e o que, como realidade, se fez passar para a opinião pública.
A justiça penal, p. ex., Já não é justiça, mas um jogo cujo resultado assinala a vitória ou a derrota (a eficiência ou a ineficiência da investigação) do órgão que leva os feitos a juízo.
Para mais, - e é a segunda razão do embaraço – alimenta-se todo este imaginário num quadro de tensões que sempre se geram em momentos de crise económica e social e se desoprimem em censuras mais ou menos indiscriminadas aos poderes do Estado.
Mas grave, verdadeiramente grave, neste processo é a emergência de um conflito entre poderes, também ele porventura potenciado por aparências que a todos envolvem e já se não dissipam com solenes desmentidos – uma vez mais, na política, o que parece, é.
Que fazer, então ? O que se exige das magistraturas e do Poder Judicial?
Desde logo, evitar, contra todos os impulsos, aliás compreensíveis, que o debate sobre a Justiça seja arrastado para o terreno de uma refrega institucional, indiscutivelmente danosa para a Democracia e para o Estado de Direito, mas para onde alguns, ou muitos, o querem, deliberada ou pouco avisadamente, deslocar.
Das mensagens que se deseja comunicar para o exterior não serão nunca as mais profundas, as mais esclarecidas e as mais necessárias sobre os temas da Justiça a merecer encaixe nas primeiras páginas ou o horário nobre das televisões – serão outras: as que oferecem a apetecida luta entre órgãos de soberania.
Note-se, de resto, como das intervenções iniciais neste Congresso
o que de imediato saltou para a comunicação social: apenas, ou
quase só, as expressões de crítica – e as mais contundentes
- ao Poder Executivo.
É por isso que das magistraturas há-de ainda exigir-se a cautelosa
ponderação dos efeitos que, na opinião comum, as suas condutas – todas
elas, mesmo as mais legitimamente fundadas – podem provocar, com particular
atenção para aquelas que objectivamente confortam ou robustecem
os juízos de censura, já socialmente pré-ordenados.
Exigência que, inevitavelmente, terá que abranger, até por maioria de razão, o que se situa no âmbito próprio do exercício das funções jurisdicionais, onde o estatuto de independência jamais poderá avalizar a intromissão de atitudes de suposto desafrontamento.
Não se entenda das minhas palavras a afirmação de que é falsa a crise da nossa justiça e desrazoável a reacção emotiva ao que são ou parecem ser agravos à magistratura
A potenciação artificial da crise da justiça não invalida o reconhecimento das autênticas maleitas que minam o aparelho judiciário.
E é aí – no diagnóstico e terapêutica dessas maleitas – que se impõe o contributo mais nobre dos magistrados e – permitam-me a ousadia – da sua associação sindical.
Recordo-me a propósito do meu longínquo passado como dirigente sindical, quando, em ambiente também politicamente tenso e em fase de transformações profundas na organização judicial e de reestruturação das carreiras judiciárias, se punha em causa a idoneidade e a qualificação dos magistrados do Ministério Público e, por tal via, o próprio estatuto autonómico dessa magistratura.
Pois apesar de serem muitas e variadas as frentes que reclamavam a intervenção sindical – e, entre elas, a do próprio estatuto socio-profissional – talvez o maior esforço se tenha dirigido à promoção daquela qualificação e à mobilização dos magistrados para critérios de rigor no exercício das funções que a Constituição cometia ao Ministério Público.
Mas a Associação Sindical dos Juízes Portugueses dispensa este meu aparente paternalismo e saberá seguramente adoptar as melhores orientações na defesa da justiça que todos, afinal, queremos.
Aliás, a selecção dos temas que se discutiram neste congresso, situa-se já, a meu ver, no caminho que aponto como o mais correcto e por onde deve passar o contributo da magistratura judicial para a solução dos problemas da justiça, em ordem a que esta se afirme como efectiva garantia do Estado de Direito, pese embora o facto de ao munus do Poder Judicial se subtrair a grande maioria - não a totalidade - das medidas que, para o efeito, de há muito se reclamam.
No âmbito desses e de outros temas, o debate não vai certamente encerrar-se. Ele deve prosseguir com o envolvimento de todos os operadores judiciários e sem excessivos compromissos.
Quero com isto dizer que as propostas de solução, sempre norteadas pela missão de serviço que compete aos tribunais, não devem ou não têm que respeitar tudo o que, vindo do passado, se julga confortadoramente adquirido.
Se convimos no imperativo de transformações graduais – a particular sensibilidade do Poder Judicial não suporta rupturas – há que fazer um balanço desapaixonado e corajoso das medidas legislativas (mesmo as que apoiámos ou propusemos em determinados momentos históricos) que ao longo dos anos modelaram o aparelho judiciário e, fundamentalmente, da prática que elas geraram.
A única fronteira da abertura ao diálogo há-de situar-se na linha de defesa, esta infranqueável, da independência dos magistrados judiciais e do núcleo essencial das medidas que conferiram ao Poder Judicial uma estruturação democrática.
Sem que haja a tentação fácil de censurar todo e qualquer projecto de reforma por afectação daqueles valores, não há aqui concessões ou compromissos possíveis.
Mas é também institucionalmente inaceitável dispor-se a esse diálogo com suspeições – que os magistrados, os seus órgãos próprios de gestão e a sua associação sindical saberão evitar – sobre os propósitos hegemónicos de outros poderes, democraticamente legitimados e constitucionalmente subordinados aos princípios fundamentais do Estado de Direito.
E isto, mesmo admitindo que, no caso, os interlocutores não terão escolhido para o concerto os prelúdios mais melodiosos e tranquilizantes.
Um Poder Judicial independente, forte e prestigiado não pode deixar de ser querido por qualquer outro poder – Legislativo ou Executivo - de um mesmo Estado Democrático.
Terá representado o Congresso que agora se encerra – assim o espero -um ponto de viragem para rotas de bonança no mar tempestuoso em que até hoje navegámos.
E é um facto que despontam já algumas vozes de apelo à serenidade e de crítica (ou auto-crítica) à secundarização da reflexão e debate das questões essenciais da justiça, como inevitável consequência da primazia dada, ao menos em termos de divulgação externa, às questões socio-profissionias (de todo o modo legítimas) dos magistrados.
E termino com palavras de esperança.
Esperança na harmonização e respeito mútuo dos poderes e órgãos do Estado.
Esperança na observância dos padrões de exemplaridade por que a conduta dos magistrados sempre se deverá orientar e que, uma vez mais, serão cumpridos.
Esperança na coragem da nossa magistratura - que não é agora a fácil coragem do afrontamento ou do desforço - mas a de se darem passos para além de um tempo crítico de mágoas e ofensas.
Esperança, enfim, no que é uma exigência premente e fundamental da nossa Democracia: a reabilitação da imagem de prestígio, isenção e rigor dos juízes portugueses.