Artur Joaquim de Faria Maurício
Conferência Comemorativa do XXX Aniversário da Constituição
20 de novembro de 2006
Pequeno Auditório do Edifício da Caixa Geral de Depósitos – Culturgest - Lisboa
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Presidente do STJ
Senhor Presidente do STA
Senhores Ministros da Justiça e dos Assuntos Parlamentares
Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares
Senhor Procurador-Geral da República
Senhor Provedor de Justiça
Senhores Conselheiros.
Ilustres Convidados
Minhas Senhoras e meus Senhores
No momento em que se abre a sessão comemorativa do XXX aniversário da Constituição organizada pelo Tribunal Constitucional, as minhas primeiras palavras não poderiam deixar de se dirigir a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República, para lhe agradecer a honra que nos concedeu de presidir a esta sessão.
Honra que se não deve apenas ao alto cargo que V. Exª exerce, como presidente de um órgão de soberania representativo de todos os cidadãos portugueses, mas também ao facto de V. Exª ter sido um membro activo e influente da Assembleia Constituinte que de 1975 a 1976 elaborou e aprovou a Constituição cujo aniversário hoje celebramos.
Prazer também por o sabermos com um particular interesse pelo mundo do direito – e desde logo do direito constitucional – muito para além do que lhe é exigido pelas funções que desempenha, leitor atento da jurisprudência do Tribunal Constitucional e conhecedor privilegiado e profundo dos meandros históricos em que se gerou a nossa Constituição, como já tive a oportunidade de testemunhar em diversas intervenções públicas de V. Exª.
Em segundo lugar, quero agradecer aos ilustres juristas, que convidámos para esta sessão, a sua incondicional disponibilidade, bem sabendo o esforço a que se obrigaram, tanto maior quanto absorventes são as actividades profissionais que exercem.
Ao convidarmos alguns dos nomes mais representativos da doutrina constitucionalista portuguesa damos um sinal claro da atenção e apreço que o Tribunal Constitucional tem votado à nossa doutrina. Se a jurisprudência do Tribunal Constitucional é – e continuará a ser – uma referência imprescindível para a doutrina portuguesa, sem esta quedaria seguramente empobrecido o quadro de reflexões possíveis, explícitas ou implícitas, em qualquer decisão judicial que se pronuncie sobre a conformidade ou desconformidade das normas à Constituição.
Por último, não podia deixar de agradecer à CGD e à Culturgest a disponibilização deste espaço, que tornou possível a realização da sessão, inviável nas instalações do Tribunal Constitucional que, por ora e devido a alegadas razões de contenção orçamental, não dispõe de um auditório condigno para o efeito.
À beira do final de 2006 – ano em que se perfazem trinta anos de vigência da Constituição da República Portuguesa - seria legítima alguma perplexidade sobre o silêncio do Tribunal Constitucional relativamente a tão relevante efeméride, quando na primeira metade deste ano se multiplicaram sessões promovidas pelas mais variadas instituições, públicas e privadas, com a mesma finalidade comemorativa.
Não escolhemos este momento para sermos diferentes. Se o congestionamento das iniciativas em datas muito próximas não aconselhavam a realização do que sempre poderia ser considerada mais uma comemoração, a verdade é que o exercício das suas extensas e absorventes competências não permitiram ao Tribunal a escolha de outra data – e nem mesmo esta, como compreenderão, será a mais adequada.
De qualquer modo, não reivindicando, obviamente, uma legitimidade exclusiva para comemorar os 30 anos da Constituição, o Tribunal Constitucional, intérprete e aplicador supremo da nossa Lei Fundamental, estaria sempre na primeira linha das instituições de que se exigiria a evocação do texto normativo que modela o nosso Estado de Direito Democrático.
E aqui está a fazê-lo não sem que se tenha interrogado sobre o sentido do que verdadeiramente se comemora nesta sessão e se, descoberto esse sentido, todos os presentes dele comungam.
Sobram razões para a dúvida.
Se comemoração é evocação - trazer à lembrança um qualquer facto ou acontecimento, ou uma qualquer pessoa - a ela, sempre ou quase sempre, se associa o significado de homenagem. E perguntar-se-á então a que facto, a que acontecimento, trazidos à memória, também prestamos a nossa homenagem.
Conhecemos todos as circunstâncias históricas políticas e sociais em que a Constituição da República Portuguesa foi discutida e aprovada, em termos que necessariamente a conformaram.
Assente em compromissos e numa plataforma possível de convergência das principais forças políticas e militares, ela não deixou de consagrar valores próprios de um Estado de Direito democrático, em particular os da Liberdade e da democracia representativa e participativa.
Estará aqui a primeira razão da evocação e da homenagem: à Constituição como símbolo de Liberdade e matriz de um Estado de Direito democrático.
A verdade, porém, é que ao comemorar o XXX aniversário da Constituição se apela também para uma vida, uma vida de trinta anos, em que o texto inicial se foi adaptando a novos imperativos resultantes (simplificando muito), primeiro, de uma progressiva e anunciada retirada de cena do poder militar e de uma diferente correlação de forças políticas, depois, de uma organização económica e política, reclamada pela integração de Portugal num espaço europeu de livre mercado. De igual modo o sistema de governo, ao longo desses trinta anos, veio sofrendo mutações mais ou menos substanciais a que, num sentido profundo, não terão sido alheias preocupações de garantir às instituições uma estabilidade que a Constituição, na sua versão originária e até então, não assegurara eficazmente.
Tudo isto, validado por sete revisões constitucionais – três das quais, as de 82, 89 e 97, com as alterações mais significativas – tem o seu fim, porventura provisório (mesmo que se tenha exaurido o que já foi chamado o “frenesim da revisão constitucional”), no texto vigente sobre o qual presumo virem a incidir as intervenções dos nossos conferencistas de hoje.
Nestas breves palavras que não pretendem ser mais do que uma nota de abertura desta Conferência, seria descabido valorar todas as alterações constitucionais e emitir um juízo sobre o que elas significam de continuidade ou descontinuidade, permanência ou ruptura, do texto de 1976 – outros o fizeram já, com diferentes conclusões.
Mas não recuso a pertinência de um tal juízo, no mesmo plano de determinação do sentido da comemoração que, para além dos 30 anos da Constituição de 76, estaria, ou poderia estar, a incidir também sobre os 24 anos da Constituição de 82, os 17 da Constituição de 89, ou os 9 da Constituição de 97…, caracterizando-se afinal como “ficções” o que formalmente chamamos “revisões”.
Critérios assentes no “conteúdo essencial” ou “princípios cardeais identificadores de uma Constituição” fazem apontar numa outra direcção – o da continuidade de um texto que legitima os discursos de hoje sobre o que nele se transformou numa iniciativa que é ainda de comemoração das suas origens distantes.
Saído, com a revolução de abril, de um longo ciclo de autoritarismo, de arbítrio e de forçado afastamento da vida política activa, o Povo português reivindicou os seus direitos individuais, sociais e culturais, reclamou a sua participação na gestão política do seu futuro, exigiu um tratamento igualitário perante a Lei e pugnou por um regime de democracia avançada e pluralista.
Souberam os nossos constituintes de 76, para além dos compromissos que os condicionaram, dar corpo a estes anseios com a consagração de princípios e normas que são ainda estruturantes da Constituição da República Portuguesa. O que veio depois poderá, assim, significar, nas palavras do Prof. Jorge Miranda, não mais do que um “fenómeno de desenvolvimento constitucional”.
Temos, afinal, razões para evocar a Constituição de 76 e comemorar o seu aniversário.
A terminar, ainda que correndo o risco da inoportunidade, uma última nota:
A solenidade e o júbilo com que, pelas razões que apontei, se celebra a Constituição – esta, como qualquer outra – não podem fazer-nos esquecer uma advertência feita precisamente neste mesmo local, há três anos, por ocasião das comemorações do XX aniversário do Tribunal Constitucional, pelo Prof. Zagrebelsky e que me permito aqui evocar:
“As leis e entre elas a Constituição, podem muito, mas não podem tudo. Elas formam uma espécie de enorme construção, mas não é mais sólida do que um castelo de cartas, na medida em que o seu fundamento se situa nelas próprias: isto é, em última análise, no poder (…)
A aposta no constitucionalismo reside inteiramente nisto: na capacidade da Constituição, estabelecida como lex, de se tornar jus: fora das fórmulas na capacidade de sair da esfera do poder e das palavras frias de um texto escrito para atrair para a esfera vital das convicções e das ideias dilectas, sem as quais não se pode viver e às quais se adere calorosamente.”
Em Portugal vêm de todos os quadrantes e com uma frequência diária, as invocações da Constituição, a propósito de tudo e de nada…
Dir-se-ia, então, que para a nossa comunidade, a Constituição não se limita a um conjunto de “palavras frias de um texto escrito”, e se inscreve já na esfera vital das suas convicções e das ideias dilectas – o “recado” de Zagrebelsky não teria, afinal, para nós, sentido.
A conclusão seria, no mínimo, precipitada.
Admitimos, com efeito, que esse quase frenético apelo à Constituição – que está longe de a enobrecer e antes a banaliza – não seja mais do que a manifestação de uma tendência ou de uma tentação aparentes para transferir artificialmente o confronto estritamente político para o campo do debate jurídico-constitucional onde se procura legitimar as posições assumidas naquele confronto, não já pela força e consistência das razões políticas mas pela suposta incontestabilidade de juízos de conformidade ou desconformidade constitucional formulados por órgãos judiciais com o seu estatuto de independência.
A Constituição seria, assim, chamada – e tenderia a sê-lo cada vez mais – para o centro da controvérsia política, perdendo-se como factor primeiro da estabilidade do funcionamento das instituições democráticas para se configurar como polo de discórdia político-partidária, disfarçada de controvérsia puramente jurídica. E será então legítimo questionarmo-nos sobre se não se debilita assim a capacidade da Constituição se tornar jus.
Acreditemos que, se correcto for este entendimento, tal se deva a tempos de profundo reformismo legislativo e a circunstâncias derivadas da actual conformação do espectro político-partidário e da relação de forças que dele decorre, muito embora já em 2003 o anterior Presidente do Tribunal – o saudoso Consº Luís Nunes de Almeida – alertasse para a “pretensão (…) de se querer remeter para os tribunais e para as instituições judiciárias o prolongamento do debate político”, apontando-a até como uma das causas da “propalada crise da justiça”; e, em tempos mais recuados, também Garcia Pelayo afirmasse que “o intuito de resolver por via jurisdicional contendas que só por via política podem encontrar soluções satisfatórias é o meio mais seguro para destruir uma instituição cuja autoridade é a autoridade do Direito”.
Mas acreditemos também que, mesmo em tais momentos circunstanciais, celebrações como esta, ameaçadas pelo “ruído constitucional” que nos envolve, têm ainda o seu lugar. Porque elas são um espaço de reflexão serena e desapaixonada e de legítima manifestação de um sentir colectivo que interiorizará cada vez mais os princípios e valores fundamentais da Constituição da República Portuguesa, sem os converter em arma de arremesso no campo da refrega política.