Rui Manuel Moura Ramos
Tomada de Posse
19 de abril de 2007
Tribunal Constitucional
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas
Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, em representação do Senhor Ministro da Justiça
Senhor Presidente da Câmara de Lisboa
Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares dos Partidos representados na Assembleia da República
Senhor Procurador-Geral da República
Senhor Provedor de Justiça
Senhor Representante da República para a Região Autónoma dos Açores
Senhor Presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Senhores Secretários de Estado
Senhor Chefe da Casa Civil do Senhor Presidente da República
Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados
Excelências e Excelentíssimos Convidados
Senhores Conselheiros
Senhores Procuradores Gerais Adjuntos
Senhoras e Senhores Assessores e Funcionários
Senhoras e Senhores
Nesta sessão solene de investidura as minhas primeiras palavras dirigem-se aos Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional a quem me cabe expressar o vivo reconhecimento pela expressão de confiança que, com a nossa eleição, a mim e ao Senhor Conselheiro Vice-Presidente, quiseram manifestar.
Confiança que muito nos honra e que tudo faremos por merecer, sem que ela nos faça esquecer as dificuldades que encerra a tarefa que nos quiseram entregar. Dificuldades que tentaremos ultrapassar, procurando manter o elevado nível que, é hoje generalizadamente reconhecido, a justiça constitucional pela qual somos responsáveis alcançou entre nós. Para a realização deste objectivo contamos com o empenho e a dedicação de Vossas Excelências. Estamos na verdade seguros, o que nos permite olhar o futuro com optimismo, de que a integridade, a competência técnica, e o sentido de serviço de Vossas Excelências continuarão a estar ao serviço deste Tribunal o que lhe permitirá prosseguir o desenvolvimento de uma jurisprudência que suscite a confiança dos nossos concidadãos e o respeito da comunidade jurídica.
Compete especificamente ao Tribunal Constitucional, nos termos da nossa lei fundamental, “administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”. A Constituição Portuguesa reconheceu assim a necessidade de uma garantia jurisdicional da posição da Constituição como norma suprema (“norma normarum”) do ordenamento jurídico estadual, dela incumbindo especificamente este Tribunal. Trata-se de uma concepção que no nosso tempo se generalizou em grande número de Estados que assumiram como forma de organização o Estado de Direito e a Democracia, de tal forma que se poderá dizer que a justiça constitucional se tornou nos nossos dias uma função inerente ao moderno Estado Constitucional. O que não exclui, no entanto, que o conteúdo que lhe tem sido dado tenha sido delimitado de forma diversa na maior parte das realidades que a esta categoria se reconduzem.
Dimensão essencial desta justiça constitucional é, porém, em todos os sistemas a quem esta cultura de constitucionalidade alcançou, a que envolve o controlo da lei, da sua conformidade às normas e princípios de grau superior, consagrados na lei fundamental.
Entre nós, esta preocupação é assumida por múltiplas formas, quer num plano abstracto (e aqui tanto de forma preventiva, porque anterior à publicação da lei, como sucessiva, quando posterior a este momento) quer numa dimensão concreta, que se reporta às normas aplicadas nas decisões judiciais, e sem esquecer igualmente, ainda que em termos que compreensivelmente se revelam menos constringentes, o controlo das omissões legislativas, da inconstitucionalidade por omissão. Função esta, do controlo da lei, que este Tribunal vem assumindo há quase um quarto de século numa intensidade que, se se reveste de alguma estabilidade a propósito da chamada fiscalização preventiva, e de certo modo da fiscalização abstracta sucessiva, tem revelado uma nítida tendência para o crescimento, nos últimos anos, em sede de fiscalização concreta.
Para além do carácter multiforme de que entre nós se reveste o controlo da constitucionalidade normativa, deve salientar-se ainda que ele se exerce no quadro de um estado unitário que respeita o particularismo de um regime autonómico insular, o que, ao transformar a ordem jurídica num ordenamento complexo, investe também este Tribunal na condição de garante do modelo de repartição de competências a este propósito estabelecido.
Mas a este controlo da lei que de algum modo constitui o aspecto nuclear da justiça constitucional acrescentou o nosso legislador outras dimensões, ao desenhar em concreto o perfil e as competências deste Tribunal. Competências diversificadas, que compreendem a justiça eleitoral, certos aspectos quer da vida e da actuação dos partidos políticos quer do estatuto dos agentes políticos, assim como da manifestação de determinadas expressões da vontade popular, como a que se exerce por forma referendária.
Deste forma, o Tribunal Constitucional foi progressivamente sendo investido de uma função estadual que se traduz na protecção dos pressupostos do Estado de direito democrático que é o nosso.
Para o desempenho desta função criou-se assim um poder independente, que se distingue dos poderes clássicos, cujas funções a teoria política claramente identificou. Poder que requer uma particular legitimação dos seus titulares, que ainda recentemente foi objecto de renovação, com a eleição de seis juízes pela Assembleia da República. E que, distinguindo-se dos demais poderes que se podem identificar no amplo espaço das funções do Estado, não visa limitar ou reduzir o espaço de qualquer um dos poderes clássicos, antes se limitando a exercer uma nova função que essencialmente se traduz na garantia da Constituição, e no assegurar da protecção dos direitos fundamentais, em suma uma protecção da ordem constitucional nos seus elementos constitutivos.
O Tribunal Constitucional está naturalmente consciente da delicadeza e da dificuldade da espinhosa missão que lhe foi confiada. Missão que, não obstante, ao longo da sua existência tem vindo a cumprir em termos que cremos têm sido reconhecidos pelos nossos concidadãos e pela comunidade jurídica. Tal ficou a dever-se às diversas formações que nos precederam e que nos deixaram um património que pretendemos continuar a honrar. A todos os juízes que as integraram e desde logo aos Conselheiros Marques Guedes, Cardoso da Costa, Nunes de Almeida e Artur Maurício, que sucessivamente presidiram a esta instituição, queremos manifestar o reconhecimento pelo Tribunal que nos legaram e dar testemunho da vontade de manter os princípios orientadores que nortearam a sua acção e que lhe granjearam o lugar que lhe é hoje reconhecido na arquitectura do Estado Português.
Mas também não esquecemos a importância que para esse resultado teve o relacionamento estabelecido com os demais poderes do Estado para que o Tribunal Constitucional, nova instância de poder surgida, na sequência da experiência da Comissão Constitucional, na organização estadual que a nossa Constituição assumiu após a revisão de 1982, tenha logrado impor-se. Com os tribunais, desde logo, cujas decisões o Tribunal Constitucional é chamado a apreciar na estrita medida em que apliquem regras cuja conformidade com a Constituição é questionada, sem contender quanto ao mais com a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional. Mas também com os outros poderes do Estado, em particular os que exercem funções normativas, uma vez que é por referência aos resultados da sua actividade nesta sede que o Tribunal é chamado a julgar da respectiva conformidade com a Constituição.
O tipo de relações que a este propósito se puderam estabelecer foi assim essencial para a afirmação do Tribunal Constitucional no quadro dos poderes do Estado, sem de algum modo contender, no entanto, com a autonomia e independência exigidas pelo estatuto deste Tribunal, que, no seguimento da sua tradição e história, nos cabe agora continuar a defender.
É esse relacionamento, assente no respeito mútuo e no reconhecimento das respectivas esferas de competência, que procuraremos manter, na senda delineada pelas formações que nos precederam. Senda esta cuja boa inspiração se nos afigura ser reconhecida pela significativa presença de altas individualidades que nos quiseram honrar com a presença neste acto. Presença que não podemos deixar de sinceramente agradecer e em que vemos o reconhecimento de uma comunhão de vistas quanto ao lugar que ao Tribunal Constitucional cabe no sistema de poderes do Estado e à forma como nesse sistema tem exercido a função que lhe está adstrita.
É assim que saúdo o Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que nesta sala representa toda a magistratura judicial portuguesa, envolvendo nesta saudação também os demais Presidentes dos Tribunais superiores das diferentes ordens de jurisdição a quem, como ao Tribunal Constitucional, cabe igualmente a difícil tarefa de administrar a justiça. Na sua presença, Senhor Conselheiro, vemos pois o reconhecimento da solidariedade que entre nós intercede no cumprimento desta tarefa.
Saúdo igualmente os Senhores Membros do Governo - o Senhor Ministro da Justiça, aqui representado pelo Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, o Senhor Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, e o Senhor Secretário de Estado da Justiça – que nos honram com a sua presença e a quem queremos testemunhar o nosso reconhecimento pelo sentido institucional que nela reconhecemos, sentimento a que acrescento o meu apreço pessoal.
Saúdo também os Senhores Deputados Presidentes ou representantes dos Grupos Parlamentares e da Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. A presença de V. Exas. permite-me sublinhar o respeito que nos merece a instituição que integram, de quem decorre, directa ou indirectamente, a fonte da nossa legitimidade enquanto titulares deste órgão de justiça constitucional. Não temos dúvidas em reconhecer a importância do modo de designação que é o nosso, e que singulariza, sem o menorizar, antes o qualificando, o nosso estatuto em relação ao de todos os outros que connosco compartilham a missão de administrar a justiça.
Saúdo também o Senhor Procurador Geral da República assim como os demais magistrados que neste Tribunal o representam e cuja colaboração tem sido preciosa no exercício das nossas funções. Da mesma forma que o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados e o Senhor Presidente da Câmara dos Solicitadores, em quem vemos todos aqueles por cujo intermédio os nossos concidadãos têm acesso a este tribunal.
Saúdo enfim todas as demais personalidades que se quiseram associar a este acto: o Senhor Presidente da Câmara de Lisboa que nesta casa de algum modo simboliza o poder local, o Senhor Provedor de Justiça, o Senhor Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, o Senhor Chefe da Casa Civil de Sua Excelência o Presidente da República, o Senhor Presidente da Comissão Nacional de Eleições, as Senhoras e os Senhores Conselheiros, e os Senhores Professores de Direito que neste momento igualmente nos acompanham, e com quem partilhamos, ainda que em planos e responsabilidades diferentes, uma idêntica reflexão.
Seja-nos consentido um cumprimento afectuoso aos antigos membros deste Tribunal e da sua antecessora, a Comissão Constitucional, a quem devemos o perfil concreto da instituição que ora corporizamos, em particular àqueles com quem partilhámos a mesma responsabilidade e de quem recentemente nos separámos. E enfim, às Senhoras e Senhores assessores e a todos os demais funcionários deste Tribunal que de uma forma mais ou menos visível prestam um serviço inestimável à realização da missão que sobre nós primacialmente recai.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Este acto conclui a recomposição do Tribunal Constitucional que o termo do mandato de seis dos seus juízes, entre os quais se contava o seu Presidente, impôs. Tratou-se de um processo que se desenvolveu com assinalável celeridade e que se pode dizer não ter afectado a normal actuação do Tribunal, entretanto já chamado, na sua actual composição, a exercer as suas competências em sede de fiscalização preventiva.
A naturalidade com que tudo se processou parece assim confirmar a ideia de que o modelo de justiça constitucional vigente se acha devidamente implantado entre nós, encontrando-se a posição do Tribunal Constitucional consolidada no interior dos poderes do Estado e no seio da comunidade jurídica.
É desse estádio que partimos e com ele iniciamos (ou retomamos) a caminhada em que, como até aqui, poremos o melhor de nós próprios, procurando não desmerecer a confiança que em nós foi depositada. Caminhada que temos consciência será prosseguida num contexto que pode ser marcado por novas circunstâncias que poderão alterar de alguma forma os termos em que se realiza parte das tarefas que constituem a nossa responsabilidade essencial. Na verdade, e como há cerca de quatro anos advertia o Presidente Luís Nunes de Almeida em cerimónia paralela a esta, a tutela dos direitos fundamentais não é hoje, sobretudo no nosso continente, uma missão exclusiva de instâncias estatais, incumbindo igualmente a jurisdições internacionais, quer às que a ela se dedicam em exclusivo, como o Tribunal de Estrasburgo, quer a outras que, como o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a assumiram como dimensão inescapável do controlo jurisdicional de que foram investidas. Qualquer que seja o destino do texto actual do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, o que parece certo, como decorre da proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da sua possível inserção no estatuto fundamental da entidade supranacional em que nos integramos, é que o movimento de constitucionalização alcança hoje também realidades e estruturas políticas que ultrapassam a entidade estadual que conhecemos e no contexto da qual se desenvolve a nossa acção.
Não cabendo manifestamente na presente circunstância qualquer apreciação desta tendência, um ponto porém cremos dever salientar. O de que, num contexto de mudança como o que antevemos, importa sobretudo que o aprofundamento do modelo de integração em que temos vivido não conduza, sequer reflexamente, a um qualquer decréscimo do grau de protecção efectiva de que entre nós têm gozado os direitos fundamentais, o que em abstracto poderia decorrer da maior complexidade do sistema que vier (e quando vier) a ser instituído. A instituição de um tal sistema, que procurará decerto submeter a União Europeia, através da adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao mesmo standard mínimo e a um sistema de garantia idêntico ao que hoje vincula os seus Estados-Membros nesta matéria, poderá exigir ajustamentos na adequação dos mecanismos de protecção instituídos no plano nacional, mas seria paradoxal que conduzisse em concreto a uma tutela menos efectiva dos direitos fundamentais. Hoje como na referida cerimónia o Tribunal Constitucional reafirma a sua disponibilidade para participar na reflexão que a esse respeito não poderá deixar de ser aberta entre nós, ciente de que se podem eventualmente vir a ser algo diversos os termos e modos em que a sua acção houver de ser prosseguida, ela deverá continuar a ser conduzida pela mesma preocupação de garantir a tutela dos direitos fundamentais que tem guiado até ao presente momento esta instituição.
É pois este espírito que até hoje presidiu a este Tribunal que nos anima, e que procuraremos preservar nas circunstâncias porventura diversas em que a nossa acção venha a ser desenvolvida. Para tanto contamos com todos aqueles que hoje integram este Tribunal e com o exemplo dos que nos precederam. O futuro dirá se soubemos estar à altura do desafio e da responsabilidade que nesta altura assumimos.
Muito obrigado.