Rui Manuel Moura Ramos
Sessão Solene comemorativa do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional
9 de abril de 2008
Centro Cultural de Belém
Senhor Presidente da República
Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República, em representação do Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Senhores Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas
Senhora e Senhor Presidentes dos Tribunais Constitucionais de Espanha e Itália, Senhor Vice-Presidente eleito do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Senhoras e Senhores Presidentes dos Supremos Tribunais de Justiça de Angola, de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, e de S. Tomé e Príncipe, Senhor Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique
Senhor Primeiro Advogado-Geral, em representação do Senhor Presidente do Tribunal de Justiça da União Europeia
Senhor Ministro da Justiça e Senhores Secretários de Estado
Senhores Vice-Presidentes da Assembleia da República e Senhores Deputados
Senhor Secretário da Comissão de Veneza
Senhor Procurador-Geral da República e Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados
Senhor Representante da República na Região Autónoma dos Açores, e Senhor Representante do Senhor Presidente do Governo Regional dos Açores
Senhora e Senhores Conselheiros de Estado
Excelências
Senhoras e Senhores Conselheiros
Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos
Senhoras e Senhores Assessores e Funcionários do Tribunal Constitucional
1. Completaram-se há bem poucos dias – mais precisamente no último domingo – vinte e cinco anos precisos desde o momento em que, a 6 de abril de 1983, com a tomada de posse dos juízes que constituíram a primeira composição do Tribunal Constitucional, se pôde dar por concretamente instituído este órgão de soberania, peça fundamental do processo de plena normalização democrática levado a cabo pela 1ª Revisão da Constituição da República que nos rege desde 1976.
Um quarto de século constitui já um período temporal suficientemente dilatado para que se tenha entendido justificado assinalar aquele momento e recordar o sentido da decisão que presidiu à instauração do Tribunal Constitucional, assim como a forma como a então novel instituição se inseriu no ordenamento jurídico português e no complexo das funções estaduais e, ainda que de forma mais sumária, os desafios que presentemente defronta. É o que, em termos que terão que ser necessariamente breves porque limitados ao essencial, procuraremos fazer em lugar de balanço da actividade do órgão de soberania a que a confiança dos seus actuais membros nos deu a honra de presidir.
Limitaremos a estes aspectos a nossa intervenção, deixando pois de lado outras e distintas perspectivas que igualmente poderíamos adoptar. Em particular, desse balanço poderia naturalmente constar um esboço de avaliação do impacto sobre o ordenamento jurídico português, nos seus vários domínios, da leitura da Constituição a que, ao longo da sua existência, este Tribunal tem vindo a proceder. Trata-se porém de algo que estará fora das nossas preocupações neste momento, até porque sobre o tema tenciona esta instituição promover ainda este ano uma reflexão específica, no seio da comunidade jurídica.
2. Antes porém gostaria de apresentar a Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, com as nossas respeitosas saudações, os sentidos agradecimentos do Tribunal Constitucional por se ter designado presidir a esta sessão solene. Vemos nesse gesto, que a um tempo nos honra e desvanece, o reconhecimento do relevo da função que a esta instituição é cometida pelo nosso sistema político-institucional, e não podemos deixar de sublinhar a dimensão que a sua presença acrescenta ao simbolismo desta comemoração.
Queria igualmente endereçar a V. Exa., Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República, os nossos respeitosos cumprimentos e o agradecimento pela sua presença neste acto, onde representa o Senhor Presidente da Assembleia da República. Presença que é tanto mais significativa quanto ela corporiza a instituição parlamentar, donde, de forma directa ou indirecta, provém a legitimação dos juízes deste Tribunal para o exercício da honrosa função em que foram investidos.
E saúdo também V. Exa., Senhor Primeiro-Ministro, por igualmente ter querido associar-se a esta sessão, assim manifestando por este Tribunal uma atenção que nos cumpre sublinhar.
Idêntica saudação queria dirigir aos representantes do poder judicial aqui reunidos, em especial aos Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas, significando-lhes o respeito que nos merecem as ordens de jurisdição a que presidem.
Para além dos titulares dos órgãos de soberania portugueses, esta cerimónia conta ainda com a presença de representantes de instâncias de justiça constitucional de países com os quais temos ou desenvolvemos laços particularmente estreitos e a quem quero agradecer terem querido distinguir, com a sua presença amiga e solidária, o Tribunal Constitucional Português. Cumprimento assim a Senhora Presidente do Tribunal Constitucional de Espanha, o Senhor Presidente do Tribunal Constitucional de Itália, o Senhor Vice-Presidente eleito do Supremo Tribunal Federal do Brasil, o Senhor Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique, e as Senhoras e os Senhores Presidentes dos Supremos Tribunais de Justiça de Angola,Cabo-Verde, Guiné Bissau e S. Tomé e Príncipe. E também me cumpre saudar, porque representam jurisdições e instâncias internacionais que com o Tribunal Constitucional Português partilham idênticas preocupações quanto à garantia dos direitos fundamentais e à afirmação do sistema democrático, o Senhor Primeiro Advogado-Geral do Tribunal de Justiça da União Europeia, que representa o Presidente desta jurisdição, o Representante português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o Secretário da Comissão de Veneza.
Regressando ao espaço nacional, não queria deixar de ter uma palavra para com todas as individualidades que, com maior ou menor ligação à administração da Justiça, e em particular da justiça constitucional, se quiseram associar a este acto comemorativo: o Senhor Ministro da Justiça, o Senhor Procurador Geral da República e o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, os Senhores Deputados, o Senhor Representante da República junto da Região Autónoma dos Açores e o Senhor Representante do Presidente do Governo Regional dos Açores, os Senhores Conselheiros de Estado e os Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Público. E permita-se-me uma palavra especial para as Senhoras e Senhores Conselheiros que nos precederam no Tribunal Constitucional, bem como para os Membros da Comissão Constitucional, de quem nos sentimos devedores pelo perfil da instituição que hoje integramos; a todos saudamos e com eles evocamos a memória e o exemplo dos que já não puderam viver connosco este momento.
Queremos também tornar extensiva esta palavra, com o nosso agradecimento, aos universitários que sob uma distinta perspectiva reflectem sobre a justiça constitucional e com cujas obras o diálogo é frequentemente necessário e enriquecedor e que também se associam a este acto.
E finalmente não podemos esquecer os Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos, os Senhores Assessores e os Senhores Funcionários do Tribunal Constitucional que, em diferentes posições e graus de responsabilidade, connosco partilham a responsabilidade pela administração da justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional que a Constituição atribuiu especificamente a este Tribunal.
Senhor Presidente da República
Excelências
3. Ao instituir em 1982 um sistema de fiscalização concentrada da constitucionalidade das leis, confiado a uma jurisdição separada e própria, a Constituição de 1976 não realizava um corte sistémico radical com a realidade precedente nem dava qualquer salto no escuro que a distanciasse das opções comuns das leis fundamentais que de nós se encontram mais próximas. Antes pelo contrário, poderá sustentar-se que o essencial do sistema português de controlo da constitucionalidade então instituído se inscrevia a um tempo na evolução da tradição portuguesa, do mesmo passo que mergulhava no que se estava a tornar (e viria sobretudo a tornar-se depois) um dado adquirido no iuscomparatismo europeu da ciência do direito constitucional. E não se estranhará que se conclua que as particularidades do modelo português de controlo da constitucionalidade então instalado se tenham ficado a dever à mútua influência das duas determinantes referidas.
Quanto à primeira, a que reflecte a evolução da tradição portuguesa na matéria, recordar-se-á tão somente que, na sequência de uma prévia discussão da temática nos últimos anos do regime monárquico, a Constituição Republicana de 1911 viria a consagrar, e por influência da judicial review norteamericana mediada pela Constituição brasileira de 1891, no que constituiria à época uma singularidade no contexto europeu, um sistema de controlo difuso da constitucionalidade das leis em que aos tribunais ordinários era confiado o poder de julgar da conformidade com a norma normarum das leis e dos diplomas do poder executivo quando a respectiva validade houvesse sido perante eles impugnada. E que um tal poder seria estendido, em pleno regime autoritário, a todos os órgãos judiciais, pela Constituição de 1933, admitindo-se ademais que estes pudessem conhecer ex officio destas questões, ainda que a sua actuação se encontrasse paralisada quando estivesse em questão a inconstitucionalidade formal ou orgânica dos diplomas legais. E a limitada casuística que este sistema originaria não deixaria de conviver, nos últimos anos do regime que a Revolução de 1974 viria a depor, com a defesa de um modelo de controlo concentrado da constitucionalidade das leis. Modelo que, relembre-se , chegara a ser brevemente ensaiado nos finais do regime monárquico, encontrara eco nalguns projectos apresentados durante a discussão constituinte nos alvores da Iª República e seria parcialmente adoptado, no regime autoritário posterior a 1926, com vértice no Conselho Ultramarino, para as leis do ultramar.
A segunda das linhas de força referidas traduz a influência que o modelo Kelseniano de uma jurisdição constitucional autónoma enquanto instrumento de defesa da Constituição viria a ter na doutrina europeia e na prática institucional. Tal influência levaria à progressiva criação de órgãos próprios de justiça constitucional quer logo no período entre guerras (na Áustria), quer sobretudo após 1945, com o surgimento de entidades desta natureza em Itália, na Alemanha, em França, em Espanha e, quanto à Europa, na quase totalidade dos países que após a queda do muro de Berlim tiveram ocasião de redefinir as suas instituições políticas. E este surto ganharia rapidamente outros continentes, sendo hoje fácil encontrar exemplos da opção por uma jurisdição constitucional assim concebida na América Central e do Sul, em África e na Ásia. Assim se procura, nestes diferentes espaços, garantir o primado da Constituição enquanto lei no interior da ordem jurídica e a coerência desta última. Esta exigência torna necessária a centralização da competência num único órgão, uma vez que, não conhecendo os sistemas da família continental europeia e os que na sua tradição se filiam a regra do precedente, o simples controlo difuso não evitaria contradições jurisprudenciais. E pode dizer-se que a opção tem vindo decisivamente a fazer-se em torno da criação de uma instituição a quem tal missão é especificamente atribuída, sendo hoje de algum modo residual o número de Estados que, optando por um sistema concentrado no que ao controlo da constitucionalidade respeita, o confiaram simplesmente à jurisdição comum, no caso ao seu mais alto Tribunal ou a uma sua secção especializada, desta forma se reconhecendo as particulares exigências da legitimação deste específico aspecto da actividade judicativa.
4. Se o sistema de controlo concentrado da constitucionalidade que se afirmou entre nós é igualmente objecto de generalizado reconhecimento além fronteiras, não é menos verdade que o seu desenho concreto viria a variar de país para país. E, em Portugal, depois da experiência promissora protagonizada entre 1976 e 1982 pela actuação conjugada do Conselho da Revolução e da Comissão Constitucional, ele cristalizou nos amplos termos em que hoje o conhecemos, que, além da fiscalização concreta realizada pelo Tribunal Constitucional através dos recursos de constitucionalidade, conhece a fiscalização abstracta, tanto a nível preventivo como sucessivo, e a fiscalização da própria inconstitucionalidade por omissão.
Só este último instituto, aliás controverso no seu desenho e admissibilidade, não lograria impor-se na prática judicial, de modo aliás próximo do que sucede na maioria dos sistemas em que se encontra consagrado. Na verdade, permanece diminuto o número de espécies (tão só 8) em que, até ao presente, o Tribunal Constitucional foi chamado, no quadro deste específico processo, a censurar o silêncio legislativo.
Diversamente, ultrapassou já as quatro centenas e meia o número de casos em que, através de um processo de fiscalização abstracta sucessiva, o Tribunal viria a apreciar a constitucionalidade das regras em vigor no ordenamento jurídico, tanto através de pedidos formulados pelas entidades (aliás objecto de uma enumeração ampla) para tal constitucionalmente habilitadas como na sequência da generalização, solicitada pelo Ministério Público, de julgamentos de inconstitucionalidade proferidos por este Tribunal em três casos concretos. E, ainda no domínio da fiscalização abstracta, não se esqueça que cabe ao Tribunal pronunciar-se, a título preventivo, e sempre em prazos contínuos particularmente apertados, quer sobre diplomas normativos propostos à promulgação do Senhor Presidente da República ou à assinatura dos Senhores Representantes do Governo junto das Regiões Autónomas, quer sobre a formulação de perguntas apresentadas no contexto de iniciativas referendárias, de âmbito nacional ou local. E se o número de tais pronúncias (que atingiu até ao presente cento e vinte e oito casos) tem permanecido relativamente constante, não se esqueça que elas têm não raro incidido sobre opções legislativas particularmente sensíveis em que a regulação do processo político assim cometida ao Tribunal se reveste de aspectos de especial melindre.
Mas se as atenções do público sobre a actividade jurisprudencial do Tribunal têm sido sobretudo concentradas nas intervenções verificadas nas espécies que acabo de mencionar, urge porém reconhecer que é através da fiscalização concreta que a sua actuação se aproxima mais do cidadão e dos seus problemas e interesses, através do julgamento dos recursos de inconstitucionalidade por ele interpostos de decisões judiciais. É aqui que o sistema português cristalizou um modelo particular que, em lugar de deixar a iniciativa da formulação das questões de constitucionalidade ao juiz das demais ordens de jurisdição, consagra um verdadeiro recurso das decisões judiciais onde tais questões hajam sido decididas, limitando-o porém à inconstitucionalidade da norma aplicada por aquelas instâncias e sujeitando-o ademais a um particular regime processual de admissibilidade. Não se ignoram nem as reservas que o sistema assim delineado tem merecido, nem a defesa da consagração entre nós de um recurso de amparo que protegesse os indivíduos em todos os casos de violação dos seus direitos fundamentais. Mas o certo é que tem pesado o argumento que vê no passo que dessa forma seria franqueado o risco de provocar o estrangulamento da jurisdição constitucional, sendo verdade que, mau grado os condicionalismos referidos, não deixa de ser significativo o número de julgamentos de fundo efectuados segundo o sistema vigente e a percentagem que representam nos recursos admitidos. O Tribunal proferiu desde a sua fundação, e até à actualidade, mais de onze mil e quinhentos acórdãos neste tipo de processos, além de perto de 4.500 decisões sumárias, tendo, quanto aos primeiros, conhecido da questão de mérito em cerca de 60%, dos casos. Um número que tem de considerar-se significativo sobretudo quando se tem presente a tendência, que as regras processuais vigentes não têm logrado contrariar, para, por vezes, transformar o recurso a esta casa num ulterior grau de jurisdição, assim se procurando, não raro com meros propósitos dilatórios, a revisão das decisões tempestivamente obtidas nas instâncias competentes.
Como quer que seja, o número e o relevo das situações em que este Tribunal tem sido chamado a julgar da constitucionalidade de leis e outros actos normativos, revelando aliás nos últimos anos uma significativa tendência para o crescimento, parece indiciar de forma clara a plena radicação do modelo de controlo da constitucionalidade entre nós adoptado.
5. Importa porém realçar que, se o julgamento das questões de constitucionalidade (e de ilegalidade qualificada) constitui a tarefa que essencialmente ocupa este Tribunal e que justificou a sua criação, outras competências lhe têm vindo a ser atribuídas pelo legislador, gerando uma actividade que, embora menor, não tem deixado de ser significativa e crescente. Assim, no domínio eleitoral, para além de receber e admitir as candidaturas à eleição do Presidente da República e dos deputados ao Parlamento Europeu, de proceder ao apuramento geral dos respectivos resultados e, quanto à primeira, de verificar a morte ou declarar a incapacidade física permanente de qualquer candidato, passou a competir ao Tribunal Constitucional não só reapreciar em vias de recurso as decisões judiciais proferidas nos processos políticos eleitorais onde se encontra consagrado o sufrágio directo (em sede de admissão de candidaturas como de reclamações e protestos apresentados durante a votação ou o apuramento) mas também controlar contenciosamente os actos dos órgãos de administração eleitoral (atribuições que se estendem aos processos referendários). Competência que, devendo exercer-se em prazos também significativamente apertados, tem igualmente, mau grado o carácter periódico do seu exercício, atingido um volume relevante.
Por outro lado, a Constituição concentrou também neste Tribunal a competência relativa aos partidos políticos e a outras organizações políticas. Não só quanto ao respectivo registo e à anotação de coligações ou frentes como às comunicações a que estes estão obrigados, e à sua extinção. E ainda (e desde a Revisão Constitucional de 1997) a competência respeitante à sindicância, em determinados casos, das decisões e de certas deliberações de órgãos partidários. E, finalmente, a que se traduz no julgamento anual das respectivas contas, como, mais recentemente, no das contas das campanhas eleitorais, domínios em que a actividade do Tribunal se tem alargado de forma significativa nos últimos anos, atingindo mais de sete dezenas de decisões.
Outro tanto não tem acontecido com a competência atribuída ao Tribunal para conhecer dos recursos dos deputados (à Assembleia da República ou às Assembleias Legislativas Regionais) relativos aos actos parlamentares que envolvam perda do respectivo mandato ou que se reportem às eleições verificadas no seio daqueles órgãos. Trata-se aqui, e singularmente, de uma competência que este Tribunal não foi ainda chamado a exercer.
Finalmente, ao Tribunal Constitucional cabem ainda diversas competências que se reportam quer às declarações de património e rendimentos de titulares de cargos políticos quer também às suas declarações de incompatibilidades e impedimentos. Quanto às primeiras, incumbe ao Tribunal recebê-las, e decidir quer sobre as objecções eventualmente postas à sua divulgação quer, em caso de dúvida, sobre a existência ou não do dever de declaração. E quanto às segundas, além de por igual as receber, cumpre ao Tribunal apreciar a existência de incompatibilidades e impedimentos, sob promoção do Ministério Público, e, sendo caso disso, efectivar o respectivo sancionamento. Um domínio este, o do asseguramento da transparência da actividade política, que por igual tem ocupado, de forma progressivamente crescente, a actividade do Tribunal.
6. Mau grado a heterogeneidade das competências que acabámos de constatar terem sido concentradas pela Constituição e pelo legislador ordinário neste Tribunal, deve reconhecer-se que todas elas são habitualmente cometidas aos órgãos de justiça constitucional. Simplesmente, a consagração de outras áreas competências além do controlo da constitucionalidade encontra-se, não raro, em sistemas em que o controlo da constitucionalidade das leis é concebido de forma menos ampla. E, paralelamente, nos casos em que este último controlo é desenhado com particular latitude, é frequente as outras funções também reconhecidas aos órgãos de justiça constitucional serem por vezes autonomizadas ou cometidas a outras instâncias.
O que parece assim caracterizar a actual situação da jurisdição constitucional em Portugal é a circunstância de, tendo sido o âmbito da função essencial que lhe é atribuída – o controlo da conformidade das leis com a Constituição - desenhado em termos significativamente vastos, o número e a importância das outras funções que a esta tem sido acrescentadas ser particularmente relevante e crescente. Sobretudo quando, especialmente através do recurso cada vez mais frequente à fiscalização concreta, o contencioso relativo ao controlo da constitucionalidade não tem deixado de aumentar.
É este um problema bem conhecido de outras jurisdições constitucionais, assim como das instâncias que a nível internacional se ocupam igualmente da tutela dos direitos fundamentais. Dir-se-á assim que, como de algum modo sucede com a nossa, tais jurisdições são afinal vítimas do seu sucesso, resultante da adequação às hodiernas realidades sociais do modelo cuja concretização corporizam. É hoje indiscutido, na verdade, que assegurar o controlo da constitucionalidade das leis corresponde a uma exigência do moderno Estado de Direito e que a fiscalização concreta nos sistemas que, como o nosso, a admitem, dificilmente deixará de se alargar, também como consequência da maior “substantivização” das Constituições nacionais, onde é crescente a tendência para a actividade do Estado ser condicionada por uma ordenação de fins e objectivos. A complexidade da tarefa interpretativa que assim é devolvida ao juiz constitucional não pode pois ser menosprezada, e, correspondendo aquela função de legislador negativo em que ele se acha investido a uma exigência da própria cidadania, pode dizer-se que o sistema edificado constitui um adquirido civilizacional cuja operatividade deverá ser preservada. Tal poderá exigir reformas de índole procedimental como as que este Tribunal já introduziu, com sucesso, ao instituir a figura das “decisões sumárias”. Mas os passos até hoje dados neste domínio poderão não se revelar suficientes para permitir, a este como a outros Tribunais Constitucionais, realizar adequadamente a sua missão precípua, pelo que haverá que atentar, como em distintas instâncias se perspectiva, na possível consideração de mecanismos de filtragem que constituem um dado central do funcionamento de outras instituições similares.
Se assim é, como a situação vivida em jurisdições congéneres e a reflexão aí levada a cabo o revela, caberá porventura interrogarmo-nos sobre a amplitude das outras competências que têm sido devolvidas à jurisdição constitucional e sobretudo sobre a tendência recente para o seu desenvolvimento. Cremos que importará ter presente que o exercício dessas outras competências, cuja dignidade se não discute mas cuja pertinência ao núcleo central da jurisdição constitucional se afigura decerto menos necessária do que a da competência relativa ao controlo da constitucionalidade, não pode afectar a capacidade de o Tribunal Constitucional exercer de forma plena esta última. E é esta uma consideração que entendemos que não deverá deixar de estar presente no debate sobre o aprofundamento das nossas instituições políticas.
Por outro lado, tal debate, em que o Tribunal Constitucional se não escusará a participar, haverá de ter em conta outros elementos a que a actualidade veio dar uma importância mais premente. Esta cerimónia ocorre, na verdade, a escassas duas semanas do debate parlamentar sobre a ratificação por Portugal do Tratado de Lisboa, cuja entrada em vigor se perspectiva para o início do próximo ano. Se tal acontecer, isso significará a ultrapassagem das incertezas sobre o quadro institucional da União Europeia que se tinham adensado de há três anos a esta parte e a que a conclusão nos termos previstos dos processos de ratificação em curso porá termo. Assim sendo, há que não esquecer que a União Europeia em que Portugal se integra se caracterizará por uma maior exigência dos parâmetros que presidem à sua legislação, por uma mais ampla actividade de controlo das respectivas instituições jurisdicionais, e, porventura, por um distinto equilíbrio na partilha de competências entre as instâncias de controlo jurisdicional nacionais e da União. Cremos que o Tratado de Lisboa não configura um modelo unidimensional na definição de um tal equilíbrio, abrindo antes um espaço à definição pelos Estados-Membros de um sistema onde haverá lugar ao estabelecimento das vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efectiva nos crescentes domínios abrangidos pelo direito da União. E pensamos que o estabelecimento de um tal sistema deverá tender ao aumento das garantias dos cidadãos e não à sua redução, pelo que se nos afigura essencial a preservação dos patamares de tutela a nível nacional já logrados no que respeita à garantia dos direitos fundamentais do cidadão. Em face do que entendemos também dever constituir preocupação essencial preservar os termos em que a competência relativa ao controlo da constitucionalidade das leis tem vindo a ser exercida por este Tribunal.
Senhor Presidente da República, Excelências, Senhores Convidados
Apercebo-me agora de que talvez tenha levado longe demais o excurso que pretendi sumário sobre a sediação do Tribunal Constitucional no nosso sistema político, as funções que hodiernamente lhe são cometidas e as perspectivas em que se inscreve o seu desenvolvimento. Pretendi desta forma sublinhar que esta instituição, apesar de jovem, tem consciência do seu passado e do percurso já feito, e está atenta aos desafios que se lhe colocam e aberta à reconsideração do seu perfil nas novas circunstâncias em que pode vir a ser chamada a desenvolver a sua acção.
Com esta postura, o Tribunal Constitucional prossegue assim a atitude que assumiu desde a sua criação, e em que o desempenho daqueles que nos antecederam lhe permitiu afirmar-se no exercício da delicada função que lhe foi cometida. É este um legado cuja importância a presente formação não desconhece, e que pretende defender e valorizar. Para tanto, conta o Tribunal, no respeito pela independência que deve rodear o exercício das suas atribuições, com as outras instituições que dão corpo ao edifício do nosso Estado de Direito, e cujo âmbito próprio de actuação não pretende invadir ou beliscar. E é nesse espírito, de rigoroso respeito pelas competências dos demais órgãos de soberania, mas de pleno exercício das particulares responsabilidades que nos foram cometidas, que os juízes que me quiseram dar a honra de falar em seu nome reafirmam a plena disponibilidade para continuar a honrar o mandato em que fomos investidos, em ordem a perseverar no desenvolvimento de uma jurisprudência que, hoje como ontem, na adaptação do projecto constitucional às novas exigências de uma sociedade plural, logre concitar a confiança dos nossos concidadãos e o respeito da comunidade jurídica.
Muito obrigado