Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
VIª Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus
As relações entre o poder central e os
poderes territoriais na jurisprudência constitucional
Armando de Almeida Marques Guedes, Presidente
do Tribunal Constitucional e Messias José Caldeiras Bento, Juiz do Tribunal
Constitucional
[Madrid, Espanha, outubro de 1984]
I – Introdução
1 . Definição da forma do Estado do ponto
de vista da distribuição territorial do poder político.
O seu desenvolvimento histórico.
Nos termos do artigo 6º da actual Constituição portuguesa, adoptada em 1976 e revista em 1982, Portugal pode ser definido, do ponto de vista da distribuição territorial do poder político, como um Estado unitário, descentralizado e regional. Com efeito, a epígrafe do preceito é, precisamente, “Estado unitário”. Dispõe:
“ 1. O Estado é unitário e respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública.
2. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos políticos-administrativos e de órgãos de governo próprio.”
O carácter unitário do actual Estado português, segundo expressão já anteriormente utilizada nas Constituições de 1911 e 1933 (arts. 1º e 5º, respectivamente), prolonga uma arreigada tradição nacional; com efeito, e porventura com excepção da Constituição de 1822 que buscou institucionalizar a “união real” que, em 1815, sob a designação do Reino Unido o Rei D. João VI havia proclamado entre o Brasil e Portugal, Portugal foi sempre um Estado unitário.
Pelo contrário, o carácter descentralizado referido pela actual Constituição marca uma profunda ruptura com a tradição nacional prevalecente, logo consagrada em todas as Constituições monárquicas (1822, 1826 e 1838). A primeira Constituição republicana (1911) procurou romper com a tradição centralista, proclamando no seu artigo 66º, nomeadamente, a não ingerência do Poder Executivo na vida dos “corpos administrativos”, a autonomia financeira destes e o recurso ao “referendum” municipal.Este sistema não logrou afirmar-se, tendo sido revogado em consequência do golpe de Estado de 28 de maio de 1926. Assim, com a Constituição de 1933 o centralismo atingiu, em Portugal, o seu nível mais elevado; servirá de exemplo paradigmático o facto de os presidentes das Câmaras Municipais serem então nomeados e demitidos livremente pelo Governo Central.
Este Centralismo vigoraria até ao 25 de abril de 1974. No seguimento deste, a Constituição de 1976 retomou o espírito descentralizador de 1911, alargando-o, consolidando-o e apostando no prestígio das instituições locais. Com efeito, na sua Parte III, relativa à “Organização do poder político”, o Título VII é dedicado ao “Poder local”, distribuindo-se por 28 artigos integrados em 5 capítulos, assim denominados: princípios gerais, freguesia, município, região administrativa e organizações populares de base territorial. O estatuto jurídico das “autarquias locais” (expressão introduzida pela Constituição de 1933 e retomada pelo artº. 238º da de 1976) pode ser resumido assim: trata-se de pessoas colectivas territoriais”, dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das suas populações (art. 237º, nº 2) e dispõem de património e finanças próprios (art. 240º); a respectiva organização, bem como as suas atribuições e competências, deverão ser reguladas por lei “de harmonia com o princípio da descentralização administrativa” (art. 239º).
Contudo, verdadeiramente inovador parece ser o carácter regional do actual Estado português. Claro está que não se ignora que a última revisão da Constituição de 1933, adoptada em 1971, qualificou expressamente como “regiões autónomas” as então denominadas “províncias ultramarinas” (cf. art. 133º; v. ainda artº 5º), quer as de “Governo geral” (Angola, Moçambique e Estado da Índia ), quer as de “Governo simples” (Cabo Verde, Guiné, Macau, São Tomé e Príncipe e Timor). Mas tal denominação é controvertida, havendo quem pretenda que as antigas colónias nunca constituíram verdadeiras “regiões autónomas”, não só em virtude dos amplos e variados poderes reservados ao Governo central, mas também do modo de “eleição” do único órgão de governo próprio de origem local existente nesses territórios (Assembleia Legislativa).
De qualquer forma, concretizada a descolonização da maior parte das “províncias ultramarinas”, com excepção de Timor Leste (cf. art. 297º da Constituição de 1976) e salvaguardado o particularismo do estatuto do território de Macau, sob administração portuguesa (cf. art. 5º, nº4 e 296º) o debate apresenta um mero interesse histórico. E, aliás, é indiscutível que a actual Lei Fundamental, quando comparada, no que concerne o estatuto das ilhas adjacentes dos Açores e da Madeira, com as Constituições anteriores, é indiscutivelmente inovadora: pela primeira vez é outorgado aos dois arquipélagos, até então constituindo simples “distritos insulares autónomos” (beneficiando desde 1895, em relação aos distritos continentais e em determinadas matérias, de alguma descentralização de feição política apenas esboçada), o estatuto de “Regiões autónomas”.
Com efeito, ainda na sua Parte III, como se sabe dedicada à Organização do poder político”, o Título VI, cuja epígrafe é “Regiões autónomas”, consagra ao longo dos dez artigos que o compõem, em benefício dos referidos arquipélagos dos Açores e da Madeira, uma ampla autonomia político-administrativa de carácter regional (arts. 227 a 236):
Tal autonomia, que busca o seu fundamento nas “características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares” (art. 227º, nº 1), tem como objectivos “a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses” (art. 227º, nº 2).
Para a prossecução destes objectivos a Constituição especificou, no seu artigo 229º, em benefício destas “pessoas colectivas de direito público”, uma série de importantes poderes, a definir nos respectivos estatutos. Além das atribuições relativas à competência legislativa regional [alíneas a), b) e c)], que atempadamente se especificarão, e ao exercício de poder executivo próprio [alínea d)], cabe nomeadamente às Regiões Autónomas, no âmbito das suas competências administrativas e económico-financeiras:
-“Exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, e dispôr das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhe sejam atribuídas, e afectá-las às suas despesas” [alínea f)];
- “Superintender nos serviços, institutos públicos e empresas públicas e nacionalizadas que exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na região, e noutros casos em que o interesse regional o justifique” [alínea j;
- “Aprovar o plano económico regional, o orçamento regional e as contas da região e participar na elaboração do Plano nacional” [alínea l)];
- “Participar na definição e execução das políticas fiscal, monetária, financeira e cambial, de modo a assegurar o controlo regional dos meios de pagamento em circulação e o financiamento dos investimentos necessários ao seu desenvolvimento económico-social” [alínea n)];
Acresce que tais poderes são exercidos pelos “órgãos de governo próprio das regiões “ (art. 233º), isto é, a assembleia e o governo regional. Aquele órgão, cuja competência exclusiva está constitucionalmente fixada (art. 234º), é eleito por sufrágio universal, directo e secreto, segundo o sistema proporcional (art. 233º, nº 2). O governo regional, politicamente responsável perante a assembleia regional, é dirigido por um presidente nomeado pelo Ministro da República, o qual deve ter em conta os resultados eleitorais (art.. 233º, nº 3); o Ministro da República, sob proposta do presidente, nomeia e exonera os restantes membros do governo regional (art. 233º, nº 4).
Em cada uma das regiões autónomas, o Ministro da República é o representante especial da soberania da República; é nomeado e exonerado pelo presidente da República, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado (art. 232º, nº 1). Compete-lhe, além do exercício de atribuições em matéria de publicação e veto de diplomas regionais, e da iniciativa na fiscalização da sua constitucionalidade [arts. 235º, 278º - nº 2, e 281º - nº 1, al. b)], que oportunamente se descreverão, assegurar a “coordenação da actividade dos serviços centrais do Estado no tocante aos interesses da região...” (art. 232º, nº 2) e superintender “nas funções administrativas exercidas pelo Estado na região” e coordená-las “com as exercidas pela própria região” (art. 232º, nº3). Cumpre porém assinalar que a evolução, de 1976 até à data, não correu no sentido do reforço destas atribuições do Ministro da República.
Foi, pois, a justo título, que acima se disse ser o Estado português unitário, descentralizado e regional. Contudo, os arquipélagos dos Açores e da Madeira – que, por isso, continuarão a ser, a par do continente, objecto essencial do presente relatório – são as duas únicas regiões autónomas constitucionalmente previstas. A actual Lei Fundamental, no título reservado ao “Poder local”, prevê a criação de “regiões administrativas” (arts. 256º a 262º); porém, até à data, não houve qualquer criação de regiões deste tipo. Assim, e enquanto não estiverem instituídas, subsistirá, nos termos do artigo 295º da Constituição, a antiga divisão distrital (o distrito aparece, quanto ao território continental e insular, como a circunscrição supramunicipal tradicional, tendo vigorado nas Constituições de 1822, 1838, 1911 e 1933 até 1959; sob as Constituições de 1826 e de 1933, até 1959, existiram “províncias”).
Em suma, o actual território do Estado português, quer continental quer insular, além das duas regiões autónomas, compreende 4085 freguesias, agrupadas, em número variável, em 305 municípios, os quais, por seu turno, se agrupam, também em número variável, em 18 distritos (4 dos quais nas regiões autónomas: 3 nos Açores e 1 na Madeira).
2 . Incidência da estrutura territorial do Estado sobre a ordem jurídica: o sistema das fontes
A estrutura territorial acabada de descrever teve necessariamente influência sobre o actual sistema das fontes da ordem jurídica portuguesa; existe, obviamente, uma maior dispersão da função legislativa, e, consequentemente, uma maior complexidade.
Durante o século XIX e até à Constituição de 1933 o sistema das fontes era extremamente simples: o topo da hierarquia era ocupado pela Constituição (o controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis foi introduzido, em Portugal, em 1911), seguindo-se imediatamente a lei, acto normativo geral aprovado pelo Congresso; subordinados a estes, seguiam-se os decretos-leis e outros diplomas governamentais.
A Constituição de 1933, e sobretudo a sua prática institucional, transformou o sistema normativo tradicional. Lei e decreto-lei passaram a ter o mesmo valor hierárquico e a intervir nas mesmas matérias (doravante, no léxico jurídico português, o termo “lei” refere-se não só às leis propriamente ditas mas também aos decretos-leis). A revisão constitucional de 1951 (Lei nº 2048), para reservar à Assembleia Nacional um mínimo de actividade legislativa, outorgou-lhe a aprovação das bases gerais de algumas matérias (art. 93º da Constituição de 1933). Contudo, antes e depois desta revisão, os actos normativos de origem governamental sempre constituíram a fonte jurídica essencial. O controlo jurisdicional da constitucionalidade das lei foi mantido, mas, entre outros aspectos, a sua dispersão retirou-lhe eficácia.
A Constituição de 1976 representa, desde logo, uma ampla reacção contra tal estado de coisas, reacção essa que foi consolidada pela revisão de 1982 (Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de setembro).
O topo da hierarquia continua ocupado pela Constituição e tal supremacia é agora garantida por um órgão centralizador da fiscalização da constitucionalidade: o tribunal Constitucional (arts. 277º a 285º). Acresce que, além de determinados limites circunstanciais (art. 291º), as leis de revisão constitucional devem respeitar determinadas matérias (art. 290º), entre as quais se sublinhará a “autonomia das autarquias locais” e a “autonomia político-administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” [cf. alíneas o) e p)].
Por outro lado, o poder constituinte de 1976 reforçou e represtigiou o poder legislativo do Parlamento (constituído por uma única Câmara, denominada Assembleia da República).
Com efeito, e em primeiro lugar, foi instituído um domínio de “reserva absoluta” em benefício da Assembleia da República, insusceptível de ser delegado ao Governo (e, por maioria de razão, aos órgãos das regiões autónomas). Esse domínio é detalhadamente enumerado nas 13 alíneas do artigo 167º da Constituição. Dentre as matérias aí referidas, destacaremos: as eleições dos titulares dos órgãos das regiões autónomas e do poder local [alínea f)]; o estatuto dos titulares dos órgãos do poder local, incluindo o regime das respectivas remunerações [alínea g)]; o regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais [alínea j)]; e, enfim, as consultas directas aos eleitores a nível local [alínea l)].
Em segundo lugar, a Constituição de 1976 estabeleceu ainda um domínio de “reserva relativa” da Assembleia da República. Contrariamente ao precedente, este domínio é susceptível de autorização legislativa ao Governo (mas não aos órgãos da regiões autónomas); dentre as matérias descritas no artigo 168º da Constituição, figuram o regime geral de elaboração e organização dos orçamentos das regiões autónomas e das autarquias locais [alínea p)], o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais [alínea r)], e a participação das organizações populares de base no exercício do poder local [alínea s)].
Não se julgue, porém, que as matérias que não cabem nos domínios de competência exclusiva ou relativa da Assembleia da República caem, como monopólio, no âmbito da competência do Governo. Não é assim: só é da exclusiva competência deste órgão de soberania a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento (art. 201º, nº 2); nas restantes matérias, que não estejam reservadas à Assembleia da República, cabe-lhe legislar [art. 201º, nº1, al. a)], mas em concorrência com a Assembleia da República. Esta pode, aliás, submeter a ratificação qualquer decreto-lei do Governo, (incluindo, pois, os aprovados ao abrigo de autorização legislativa), salvo, evidentemente, os que são aprovados no exercício da sua competência legislativa exclusiva (art. 172º, nº 1).
É, precisamente, no domínio normativo concorrencial da Assembleia da República e do Governo que entronca uma nova fonte jurídica: a constituída pelos “decretos legislativos regionais”. Com efeito, segundo o artigo 115º, nº 1, da actual Constituição, “são actos legislativos ou leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais”; estes versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões autónomas e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo (art. 115º, nº 3). Os decretos legislativos regionais só podem tratar de matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania; e, em qualquer caso, devem respeitar a Constituição e as leis gerais da República [art. 229º, alínea a)].
Além dos decretos legislativos regionais há que citar, como novas fontes de direito, os decretos dos Ministros da República para as regiões autónomas e os decretos regulamentares regionais [art. 122º, nº 1, al. h)]. Estes últimos visam regulamentar quer a legislação regional, quer as “leis gerais” emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar [art. 229º, al. b)].
II - Distribuição
de Competências entre o Estado e os Poderes Territoriais
1. Princípios de articulação
constitucionalmente reconhecidos entre o poder central e os poderes territoriais
A actual Lei Fundamental portuguesa não estabelece uma listagem de matérias, quer políticas quer legislativas, que pertençam à competência exclusiva do Estado ou à competência exclusiva das regiões autónomas.
No entanto, tendo em conta as variadas disposições constitucionais que fixam as atribuições dos órgãos de soberania e a própria natureza unitária do Estado português, fácil se torna determinar o âmbito das matérias políticas de âmbito nacional. Pode-se dizer que, grosso modo, pertencem ao Estado todas as matérias relativas à defesa nacional, à política externa e à moeda. Pelo contrário, particularmente difícil se torna estabelecer as fronteiras entre as competências legislativas dos órgãos de soberania e dos órgãos de governo regional.
A este respeito, o preceito essencial é o já citado artigo 229º, alínea a), da Constituição que afirma o poder das regiões autónomas de “legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania”.
Em alguns aspectos este preceito não oferece dificuldades de interpretação. Assim, os “órgãos de soberania” referidos são, obviamente, a Assembleia da República e o Governo; aliás, o artigo 115º, nº 3, da Lei Fundamental confirma-o ao postular que “os decretos legislativos regionais versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo...”.
Por outro lado, também não parece difícil determinar quais as matérias reservadas à competência própria de tais órgãos; são todas aquelas enumeradas pela própria Constituição e que acima foram indicadas, isto é quanto à Assembleia da República, os seus artigos 167º e 168º e, quanto ao Governo, o seu artigo 201º, nº 2.
Pelo contrário, a dificuldade está em determinar, de entre as restantes, quais as “matérias de interesse específico para as regiões”. Isto porque a actual Lei Fundamental não define, directa ou indirectamente, o que seja “interesse específico regional”. Aliás, trata-se de matérias concorrenciais entre os órgãos de soberania e as regiões autónomas, uma vez que a Constituição não impede que a Assembleia da República ou o Governo legislem sobre matérias de interesse específico regional [Cf. artº 164º, al. d) e artº 201º, nº 1, al. a)].
Deve-se, pois, concluir que o poder constituinte quis que fossem os próprios estatutos das regiões autónomas a precisar o conteúdo das matérias de “interesse específico” regional. Simplesmente, os actuais estatutos, tanto o dos Açores como o da Madeira, limitam-se a repetir, ipsis verbis, o artigo 229º da Constituição que especifica, quanto às regiões autónomas, os poderes que, precisamente, deveriam ser definidos nos respectivos estatutos....
A este respeito é oportuno assinalar que a Região Autónoma dos Açores já possui estatuto definitivo o qual, nos termos do artigo 228º da Constituição, foi aprovado pela Assembleia da República, sob proposta da respectiva Assembleia Regional (cf. Lei nº 39/80, de 5 de agosto).
Pelo contrário, no seguimento da declaração de inconstitucionalidade, pelo Conselho da Revolução (cf. Resolução nº 293/80, de 6 de agosto), do projecto de estatuto definitivo da Região Autónoma da Madeira, mantém-se em vigor (cf. primitivo artº 302º da Constituição e actual artº 294º) o seu estatuto provisório que, em aplicação daquele primitivo preceito constitucional, foi em devido tempo aprovado pelo Governo e sancionado pelo Conselho da Revolução (cf. Decreto-Lei nº 318-D/76, de 30 de abril, alterado pelo Decreto-lei nº 427-F/76, de 1 de junho.
Cabe às regiões autónomas a elaboração dos projectos dos seus próprios estatutos, que revestem a forma de Lei aprovada pela Assembleia da República (art. 228º, nº 1).
2. Sistemas de delimitação das competências
e natureza das normas que a determinam.
Importância relativa e condicionamento recíproco das decisões
dos Tribunais Constitucionais e da legislação.
Conjugando o preceituado em várias disposições constitucionais, e muito em particular o disposto na alínea a) do artigo 229º da Lei Fundamental, dir-se-á que a competência legislativa regional se acha delimitada pela Constituição, os estatutos regionais e as leis gerais da República.
A primeira das limitações resulta, pois, da subordinação dos diplomas regionais à Constituição. Dispõe, com efeito, o seu artigo 3º, nº 3, que a validade dos actos das regiões autónomas depende da sua conformidade com a Constituição – exercendo-se a autonomia político-administrativa que lhes cabe “no quadro da Constituição”, como se exprime no art. 227º, nº 3. Os actos em que se traduz devem, em consequência, respeitar, em geral, as normas e princípios constitucionais e, mais em particular, aqueles que determinam as competências reservadas aos órgãos de soberania.
A segunda das limitações resulta da subordinação dos diplomas regionais aos próprios estatutos político-administrativos das regiões autónomas; tais diplomas não podem derrogar ou contradizer o que nestes se acha estabelecido. Assim, em princípio, haverá ilegalidade se a legislação regional não se conformar ao estabelecido nos estatutos; mas se a desconformidade afecta norma estatutária, que se limite a transcrever norma constitucional, haverá inconstitucionalidade.
A terceira das limitações resulta da subordinação dos diplomas regionais às “leis gerais da República”. Desde logo, tudo está em saber o que cobre esta expressão. Segundo o actual artigo 115º, nº 4, da Constituição, introduzido pela revisão constitucional de 1982, “são leis gerais da República as leis e os decreto-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional”. Parece, pois, que o poder constituinte derivado não quis acolher a definição que vinha sendo defendida pelos órgãos de governo regional da Madeira, segundo a qual apenas seriam “leis gerais da República” os actos legislativos emanados dos órgãos de soberania no âmbito da sua competência reservada.
Enfim, nos termos da própria Constituição, a legislação regional deve respeitar determinados limites materiais, especificados no artigo 230º. Com efeito, ao abrigo desta disposição é vedado às regiões autónomas: restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores; estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional, salvo, quanto aos bens, as ditadas por exigências sanitária; e reservar o exercício de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na região.
O sistema de delimitação das competência acabado de descrever, a natureza das normas que determinam essa delimitação e a ausência de definição, acima assinalada, do termo “interesse específico” regional, reforça a importância, nesta matéria, dos órgãos encarregados do controlo da constitucionalidade e da legalidade.
Quanto ao contencioso da constitucionalidade, com justiça se dirá que a Comissão Constitucional (cf. primitivos artºs 283º a 285º da Constituição, segundo a redacção de 1976) desempenhou, entre 1976 e 1982, actividade de grande relevo; numerosas foram as normas declaradas inconstitucionais, quer materialmente, quer orgânicamente, por legislarem sobre matéria reservada a um órgão de soberania, quer formalmente, nomeadamente por não audição prévia dos órgãos de governo próprio regional; assim, caso a caso, a Comissão Constitucional foi o instrumento essencial da distribuição de competência entre o estado e as regiões autónomas e, em consequência, o principal responsável pelo equilíbrio do sistema autonômico regional.
Em virtude da sua recente entrada em funcionamento ainda não existe, neste domínio, jurisprudência suficiente no Tribunal Constitucional mas tudo leva a crer que o seu papel não poderá deixar de ser essencial; não só porque herdou o conjunto das competências que, em matéria de fiscalização de constitucionalidade, cabiam à Comissão Constitucional; mas também porque o poder constituinte derivado de 1982 lhe outorgou, em sede de fiscalização concreta, o contencioso da ilegalidade regional. Com efeito, nos termos do actual artigo 280º, nº 3, da Lei Fundamental, cabe também recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais:
“a) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República”;
“b) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma emanado de um órgão de soberania com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma”;
“c) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo, com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas a) e b).
3 . Sistema de ordenamento
das normas (ordem de preferência, coordenação, etc)
Já oportunamente se disse que a Constituição ocupa o topo
da hierarquia das normas jurídicas e que os decretos legislativos regionais
a devem respeitar, bem como os próprios estatutos político-administrativos
e as leis gerais da República. Por outro lado, os regulamentos regionais
devem respeitar a legislação nacional ou regional que visam regulamentar
[cf. artº. 229º, al. b) e 115º, nº 7].
Mas fora estas linhas mestras, urge reconhecer que o actual ordenamento das normas do sistema jurídico português apresenta algumas obscuridades, que vêm alimentando interessante controvérsia doutrinal e que a jurisprudência do Tribunal Constitucional ainda não ajudou a dissipar.
É verdade, no entanto, que a revisão constitucional de 1982 clarificou determinadas questões. Assim, por exemplo, antes da Lei Constitucional nº 1/82 era particularmente controvertida a qualificação do vício resultante da contradição entre decreto regional e lei geral da República. Para uns, tratando-se de violação da lei, seria ilegalidade; para outros, tratando-se de violação de um limite constitucionalmente imposto, seria inconstitucionalidade, embora indirecta. Ora, a actual redacção do já citado artigo 280º, nº 3, alínea a), expressamente qualifica de ilegalidade o caso de violação de lei geral da República por norma constante de diploma regional. Infelizmente, a revisão de 1982 deixou subsistir algumas outras dúvidas.
E logo se começará pela questão relativa ao posicionamento hierárquico das normas internacionais, quer não escritas quer convencionais. O artigo 8º da Constituição, cuja epígrafe é “direito internacional”, parece não ser suficientemente claro, pois que a sua interpretação tem suscitado, por parte da doutrina, posições desencontradas. Em todo o caso, no que concerne as normas convencionais, o Tribunal Constitucional, em acórdãos recentes, já se pronunciou pelo seu valor infraconstitucional mas supralegislativo. Continua no entanto por decidir se a violação de uma norma internacional por uma norma inferior consubstancia, ou não uma inconstitucionalidade e, em consequência se cabe ou não na competência do Tribunal Constitucional. Ainda a propósito desta mesma matéria se recordará que constitui poder das regiões autónomas “participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que directamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes” [cf. artº. 299º, alínea p)].
Também está por clarificar, sempre a propósito do ordenamento das normas, qual é o verdadeiro alcance do artº. 115º, nº 2, da Lei Fundamental, que proclama que “as leis e os decretos-leis têm igual valor...”. Sem dúvida que este preceito também dispõe que os decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e os que desenvolvam as bases gerais dos regime jurídicos devem subordinar-se às correspondentes leis; mas já não especifica quer o posicionamento hierárquico de decretos-leis que hajam sido submetidos a ratificação parlamentar (em relação a ulteriores decretos-lei), quer o relacionamento respectivo entre decreto-lei e lei que intervenham, sucessivamente, sobre idêntica matéria legislativa concorrencial, isto é: não reservada à Assembleia da República ou ao Governo.
Enfim, também está por clarificar o verdadeiro posicionamento hierárquico dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas que, como foi referido, são elaborados pelas assembleias regionais e discutidos e aprovados pela Assembleia da República [artºs. 228º nº1, 164º-b) e 169º nº2]. Sem dúvida que são, material e formalmente, lei da Assembleia da República; mas a institucionalização de uma tramitação legislativa especial, e, em particular, a consagração de uma verdadeira reserva de iniciativa legislativa das assembleias regionais suscita a questão de se saber se os referidos estatutos têm valor meramente legal ou supralegal. Em assuntos respeitantes às regiões autónomas, as assembleias regionais podem apresentar à Assembleia da República propostas de lei e respectivas propostas de alteração [cf. artº 229º, al. f)], simplesmente, tal poder de iniciativa legislativa é partilhado com os deputados, os grupos parlamentares e o governo (cf. artº. 170º, nº 1). Pelo contrário, em matéria de estatutos, as mesmas assembleias regionais detêm o monopólio da iniciativa (cit. artº. 228- nº1). Daí que determinados autores sustentem que os estatutos beneficiam, no ordenamento das normas, de uma posição sui generis, em virtude do seu valor supralegislativo; e , para esses autores, tal tese acharia até reconforto na redacção do actual e já citado artigo 280º, nº 3, alínea b), da Lei Fundamental.
III – Situações de conflito entre o Estado Central e os Poderes Territoriais
1. Instrumentação jurídica geral e vias de solução ...
1.1. As regiões autónomas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira são pessoas colectiva de direito público, cuja autonomia representa uma forma de descentralização política e visa, a partir do reconhecimento das características geográficas, económicas, sociais e culturais das populações, o reforço da unidade nacional e da solidariedade entre todos os portugueses, sem afectar a unidade do Estado e a integridade da sua soberania (Const. arts. 6º e 227º. As regiões autónomas subdividem-se, como o continente, em autarquias, que resultam da descentralização administrativa territorial (arts. 237º e 238º).
Cada região possui órgão de governo próprio: uma assembleia regional e um governo regional (artº. 233º, nº 1).
Estes dois órgãos articulam-se num sistema parlamentar. Em verdade, o governo regional é politicamente responsável perante a assembleia regional (artº. 233º, nº 3, primeira parte), sendo o seu presidente nomeado, tendo em conta os resultados das eleições para a assembleia regional, pelo Ministro da República (id. nº3, segunda parte). A este pertence nomear e exonerar os demais membros do governo regional, sob proposta do presidente (id. nº4). O Ministro da República não dispõe de poder homólogo do previsto para o Presidente da República relativamente ao Primeiro-Ministro (artº. 198º, nº 2), não podendo por isso exonerar o presidente do governo regional senão a pedido dele ou na sequência de perda de confiança política perante a assembleia regional, de acordo com o previsto nos estatutos das duas regiões [ Estatuto da Madeira, artº 40º, al. e); Estatuto dos Açores, artº. 51º, al. e)]. Os presidentes dos governos regionais são membros, por inerência, do Conselho de Estado [ Const., artº. 145º, al. e)], Têm, além disso, poder de iniciativa na fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade e legalidade de quaisquer normas jurídicas (artº. 281º, nº 1).
A assembleia regional tem poderes, designadamente, para legislar sobre matérias de interesse específico para as regiões [artº. 229º, a)], Estes poderes deverão ser exercidos com respeito pela Constituição e pelas leis gerais da República, não podendo as regiões autónomas emitir normação em áreas reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, nem restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores, nem estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional – salvo, quanto aos bens, quando ditadas por exigências sanitárias -, nem ainda reservar o exercício de qualquer profissão ou o acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na região [v. artº. 23º, a), b) e c)].
Ao governo regional cabe o poder executivo, no exercício do qual lhe compete criar e extinguir autarquias locais, modificar a respectiva área, e exercer sobre elas poder de tutela [artº. 229º, d), g) e h)] – o que tudo há-de ser feito com respeito pela lei-quadro das autarquias locais (v. artº. 238º), e bem assim pela lei sobre tutela administrativa (v. art. 234º).
As regiões autónomas dispõem de poder regulamentar, não apenas em relação à legislação regional, como também quanto às leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para este a faculdade de as regulamentar [ v. artº 229º, b)].
Cabe-lhes também poder tributário próprio, a exercer nos termos da lei: e podem dispor das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhes sejam atribuídas, e afectá-las às suas despesas [v. artº.229º, f)].
Para além disso, têm direito de participar na definição das políticas fiscal, monetária e cambial, na referente às águas territoriais, à zona contígua, à zona económica exclusiva e às plataformas continentais; e , em geral, na negociação de tratados, convenções e acordos internacionais, que directamente lhes digam respeito [artº. 229º, n), o) e p)].
Pronunciam-se, por iniciativa própria ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre questões da competência destes últimos que a elas digam respeito [id., q)].
1.2. As regiões exercem os seu poderes de autonomia no respeito pela soberania e unidade do Estado e pelo princípio da descentralização político-administrativa, (v. arts. 6º, 227º, 237º, 238º e 241º).
Naturalmente é, no entanto, que, no exercício destes poderes de autonomia político-administrativa as regiões se choquem, num ou noutro ponto, com as exigências da unidade política do Estado ou com as aspirações legítimas dos entes autárquicos.
Um primeiro expediente, destinado a reduzir ao mínimo esses conflitos, pode ver-se na exigência de aprovação dos estatutos das regiões, e das suas subsequentes alterações, pela Assembleia da República (artº. 228º). Os estatutos devem definir os poderes das regiões (artº 229º); e, além disso, o estatuto dos seus órgãos de governo próprio (artº. 233º, nº 5). Estes últimos são, como foi referido, a assembleia regional e o governo regional (artº 233º, nº 1). Aquela é eleita por sufrágio universal, directo e secreto (artº. 233º, nº 2); este, como também já foi mencionado (artº. 233º, nº 2); este, como também já foi mencionado, tem um presidente nomeado pelo Ministro da República, atentos os resultados eleitorais, sendo os restantes membros nomeados e exonerados também pelo Ministro da República, sob proposta do presidente do governo regional (id., nºs 3 e 4). A soberania da República é, em cada região, representada por um Ministro da República nomeado e exonerado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado (artº. 232º, nº 1). Ao Ministro da República cabe coordenar a actividade dos serviços centrais do Estado no tocante aos interesses da respectiva região; superintender nas funções administrativas nela exercidas pelo Estado, coordenando-as com as da própria região (v. artº. 232º, nºs 2 e 3; como já foi dito, nomear o presidente do governo regional e, sob proposta deste, nomear e exonerar os restantes membros do mesmo governo (v. artº. 233º, nºs 3 e 4); assinar e mandar publicar os decretos legislativos regionais e os decretos regulamentares regionais (artº. 235º, nº 1); requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de decreto legislativo regional, ou de decreto regulamentar de lei geral da República, que lhe tenham sido enviados para assinatura (artº. 278º, nº 2); requerer (também ao Tribunal Constitucional) a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma regional, com fundamento em violação do estatuto da região ou de lei geral da República [artº 281º, nº 1, b)]; exercer o direito de veto relativamente aos decretos da assembleia regional ou do governo regional – o que fará, obrigatoriamente, na sequência de uma pronuncia de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, emitida sobre um pedido seu de apreciação preventiva (art. 235º, nºs. 2, 4 e 5 e 279º, nº 1 e 3); e finalmente, assegurar o governo da região, em caso de dissolução dos respectivos órgãos regionais (artº. 236º, nº 2).
O Presidente da República, ouvidos a Assembleia da República e o Conselho de Estado, pode decretar a dissolução dos órgãos de governo das regiões autónomas por prática de actos contrários à Constituição (artº. 236º, nº1), por iniciativa própria ou sob proposta do Governo [artº. 136º, j)]. Em caso de dissolução, o governo da região é assegurado pelo Ministro da República (artº. 236º, nº 2).
O Tribunal Constitucional – a requerimento do Presidente da República , do Presidente da Assembleia da República , do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça, do Procurador-Geral da República, de um décimo dos Deputados à Assembleia da República, ou, com fundamento na violação dos direitos das regiões autónomas, das respectivas assembleias regionais ou dos presidentes dos governos regionais – pode declarar, com força obrigatória geral: (i) a inconstitucionalidade de quaisquer normas [artº. 281º, nº1, a)]; (ii) a ilegalidade de norma constante de diploma emanado dos órgãos de soberania, que viole direitos de uma região consagrados no seu estatuto [neste caso, também a requerimento de um décimo dos deputados à respectiva assembleia regional, e bem assim do seu presidente: art. 281º, nº 1, c)], ou de normas constantes de diploma regional, com fundamento na violação do estatuto da região ou de lei geral da República [neste outro caso, também a requerimento do Ministro da República: artº 281º, nº1, b)].
A Assembleia da República e o Governo ouvirão sempre os órgãos de governo regional quanto às questões da sua competência que respeitem às regiões autónomas (artº. 231º, nº2). Às regiões assiste a faculdade de, por iniciativa própria ou sob consulta, se pronunciarem sobre consultas desta natureza [artº. 229º, q)]. Tudo isto, para poderem ser tomadas na devida conta as especificidades próprias das regiões, designadamente as derivadas da insularidade (artº 231º, nº 1).
1.3. As autarquias locais – que nas regiões autónomas são apenas freguesias e municípios (artº. 238º, nº 2) – são pessoas colectivas territoriais, dotadas de órgãos representativos, votados à prossecução dos interesses próprios das suas populações (artº. 237º, nº 2). A organização autárquica compreende uma assembleia eleita, dotada de poderes deliberativos, e um órgão colegial executivo, responsável perante ela (artº. 241, nº1). A assembleia é eleita por sufrágio universal directo e secreto dos cidadãos residentes, de acordo com o sistema de representação proporcional (id., nº 2).
As autarquias locais estão sujeitas a tutela administrativa, que consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos (artº. 243º, nº1). Estes podem ser dissolvido, mas apenas com fundamento em acções ou omissões ilegais graves [artº. 243º, nº3; e artº. 93º, nº 1, a) e e), da Lei nº 79/77, de 25 outubro]. A dissolução - que é sempre contenciosamente impugnável (cit. Artº. 93º, nº2, da Lei nº 79/77, no caso para o Supremo Tribunal Administrativo – será, nas regiões autónomas, determinada por decreto do governo regional, ouvida a assembleia regional, ouvida a assembleia regional respectiva (artº. 93º, nº 3, da Lei nº 79/77).
2. Órgãos resolutórios
Como decorre do que se disse, podem considerar-se como tais o Presidente da República, o Ministro da República na Região, o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal Administrativo.
IV - A Jurisdição Constitucional no Estado Composto (Federal ou Regional)
1. Portugal não é um Estado composto; mas um Estado unitário, com regiões autónomas dotadas, como foi precisado, de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprios (artº. 6º, nºs 1 e 2).
A distribuição territorial do poder, neste quadro realizada, não tem qualquer repercussão sobre a jurisdição constitucional: esta cabe, sobre todo o território do Estado, ao Tribunal Constitucional; e, de modo difuso, aos Tribunais (arts. 213º e 207º).
2. Conforme acaba de ser referido, ao Tribunal Constitucional pertence a jurisdição constitucional, sobre todo o território, com carácter quer preventivo (artº 278º) quer sucessivo, neste último caso através seja de fiscalização abstracta (artº. 281º, nº 1), seja de fiscalização concreta (artº. 280º); quer, ainda, da inconstitucionalidade por omissão (artº. 283º). Os Tribunais, de seu lado, não podem nos feitos submetidos a julgamento aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artº. 207º). Das suas decisões cabe, no âmbito da fiscalização concreta, recurso para o Tribunal Constitucional (cit. Artº. 280º).
No quadro dos poderes territoriais, ou regionais, compete ao Tribunal Constitucional apreciar e declarar a inconstitucionalidade de normas constantes de diplomas regionais; a ilegalidade de normas, constantes de diploma regionais, que violem o estatuto da região ou lei geral da República; e , ainda, a ilegalidade de normas constantes de diplomas emanados dos órgãos de soberania que violem direitos da região consagrados no seu estatuto (artº.281º, nº1).
3. Quanto aos conflitos entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo regional, o Tribunal Constitucional intervém para decidir as questões de inconstitucionalidade e de ilegalidade que lhe sejam postas, seja com fundamento em que os órgãos regionais, ao legislar, desrespeitam a Constituição ou as leis gerais da República – designadamente invadindo a reserva de competência dos órgãos de soberania -, seja porque estes editem normas com violação dos direitos das regiões [p.ex., sem as ouvir, quando essa audição seja obrigatória ou desrespeitado qualquer direito consagrado no respectivo estatuto (v. 278º a 281º)].
V - A solução
dos conflitos na perspectiva geral da Jurisdição Constitucional
1. Valor jurídico e eficácia das decisões...
1.1. O Tribunal Constitucional – como se viu – pode ser solicitado pelo Presidente da República a apreciar preventivamente a constitucionalidade:(i) de qualquer norma constante de tratado internacional, que lhe tenha sido submetido para ratificação, ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura (designadamente porque, dizendo, por exemplo, directamente respeito a uma região autónoma, esta não participou na respectiva negociação [v. artº. 278º, nº 1; e artº. 229º, p)]; (ii) ou de qualquer norma constante de decreto que lhe tenha sido enviado pela Assembleia da República ou pelo Governo, para promulgação, respectivamente, como lei ou como decreto-lei [v. artº. 278º, nº1; e artº. 229º, q)].
Se o Tribunal Constitucional, num tal caso, se pronunciar pela inconstitucionalidade, o respectivo diploma tem de ser vetado pelo Presidente da República, que o devolverá ao órgão que o tiver aprovado (artº 279º, nº 1). Este – tratando-se de norma constante de decreto – deverá expurgá-lo da norma julgada inconstitucional; ou, sendo caso disso, confirmá-lo por maioria de dois terços dos Deputados presentes, para que, conforme os casos, possa ser promulgado ou assinado (artº. 279º, nº 2). Sendo o decreto reformulado pode o Presidente da República pedir nova apreciação preventiva da constitucionalidade das suas normas (artº. 279º, nº 3). Se se tratar de norma constante de tratado internacional, a ratificação só poderá ser concedida se a Assembleia da República o aprovar por maioria de dois terços dos Deputados presentes (artº. 279º, nº 4).
Também se viu já que o Tribunal Constitucional pode ser chamado a pronunciar-se preventivamente, a requerimento do Ministro da República respectivo, sobre a constitucionalidade de : (i) qualquer norma constante de decreto legislativo regional, que lhe tenha sido enviado para assinatura [v.g., porque estabeleceu, contra o disposto no artº. 230º, b), restrições ao trânsito de pessoas ou de bens entre a região e o restante território nacional (v. artº. 278º, nº 2 referido no artº. 229º, a)]; (ii) ou de qualquer norma constante de decreto regulamentar de lei geral da República, recebido para assinatura [v.g., por esta lei geral ter reservado para si o respectivo poder regulamentar (v. artº. 278º, nº 2 referido ao artº. 229º, b)]. Se, neste caso, o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade, o diploma tem de ser vetado pelo Ministro da República, que o devolverá ao órgão que o tiver aprovado (artº. 279º,nº 1), observando-se, depois, um regime em tudo idêntico ao já descrito para o caso de veto presidencial.
Em síntese, quando, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas submetidas ao seu julgamento, a consequência imediata da decisão traduz-se em que a entidade peticionante – Presidente da República ou Ministro da República – é obrigada a vetar o respectivo diploma legal, recusando-lhe a promulgação, a ratificação ou a assinatura, conforme o que, no caso, couber.
Se o Tribunal Constitucional, nos casos de fiscalização preventiva, se não pronunciar pela inconstitucionalidade, o Presidente da República ou o Ministro da República – aquele, quando se trate de decreto da Assembleia da República ou do Governo – podem promulgar ou assinar o diploma legal ou, então, exercer o direito de veto, nas condições do artº. 139º, nºs. 1 a 4 e 235º, nºs 1 a 4, respectivamente.
O facto de o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, se não pronunciar pela inconstitucionalidade, não impede que, mais tarde, possa ser chamado a nova pronúncia, seja para proceder à fiscalização abstracta a posteriori , seja para fiscalizar, em concreto, tal constitucionalidade. Tal como não obsta a que, nesse novo eventual julgamento, venha a decidir-se pela inconstitucionalidade.
1.2. O Tribunal Constitucional – a requerimento do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, do Procurador-Geral da República, de um décimo dos Deputados à Assembleia da República ou, tratando-se de pedido fundado em violação dos direitos das regiões autónomas, das respectivas assembleias regionais ou do presidente do governo regional respectivo – pode declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas [artº. 281º, nº 1, a)]. Tal como pode declarar – a requerimento das mesmas entidades, e bem assim do presidente da assembleia regional ou de um décimo dos deputados à mesma assembleia – a ilegalidade da norma constante de diploma emanado dos órgãos de soberania, que viole direitos de uma região consagrados no seu estatuto [artº. 281º, nº 1, c)]. Como pode ainda declarar, de igual modo com força obrigatória geral, a requerimento daquelas entidades – as referidas na alínea a), e bem assim do Ministro da República – a ilegalidade de normas constantes de diploma regional, com fundamento em violação do estatuto da região ou de lei geral da República [artº. 281º, nº 1, b)].
O Tribunal Constitucional pode também – por iniciativa de qualquer dos seus Juízes ou do Ministério Público – declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, que ele tenha julgado inconstitucional ou ilegal, em três casos concretos (artº. 281º, nº2 e artº. 82º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro).
Trata-se de fiscalização abstracta e sucessiva (a posteriori) da constitucionalidade.
Em princípio, a declaração de inconstitucionalidade, ou de ilegalidade, com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal (artº 282º, nº 2); e, para além disso, determina a repristinação das normas que ela haja, eventualmente, revogado (artº. 282º, nº1). A decisão tem, pois, eficácia erga omnes, produzindo os seus efeitos ex tunc.
Estes feitos podem, porém, ser fixados pelo próprio Tribunal de modo mais restrito quando entender que a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, o exigirem (artº. 282º, nº 4).
1.3. O Tribunal Constitucional julga também, pela via de recurso interposto das decisões dos demais tribunais, os casos em que estes: (i) hajam recusado a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade; (ii) tenham recusado a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República; (iii) tenham recusado aplicar norma constante de diploma emanado de órgão de soberania com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma; (IV) hajam aplicado norma cuja ilegalidade tenha sido suscitada durante o processo, com fundamento em violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República; e (V) tenham aplicado norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional [artº. 280º, nº 1, a), b); nº 2, a), b) e c) nº 5].
Trata-se, então, de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Os recursos que a esta conduzem são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, conforme os casos (artº. 280º, nº 6). A decisão do Tribunal Constitucional só obriga no processo em que é proferido, fazendo aí caso julgado quanto à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada, devendo o tribunal recorrido, quando for caso disso, reformar a sua decisão em conformidade com aquele julgamento, designadamente aplicando a norma impugnada ao caso sub iudicio com a interpretação que o Tribunal Constitucional lhe fixar (artº. 80º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – Lei nº 28/82, de 15 de novembro).
A decisão tem, pois, tão-só eficácia inter partes.
1.4. O Tribunal Constitucional também aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíves as normas constitucionais. A sua intervenção pode ser requerida pelo Presidente da República ou pelo Provedor de Justiça; ou, no caso de a omissão importar violação dos direitos das regiões autónomas, pelos presidentes das assembleias regionais (artº. 283º, nº1).
Se o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente (artº. 283º, nº 2).
2. Evolução e avaliação da experiência do Tribunal Constitucional na matéria.
O Tribunal Constitucional português, tendo começado a funcionar em 06 de abril de 1983, não possui ainda experiência significativa.
No entanto, desde 1976 e até àquela data a Comissão Constitucional desempenhou funções de órgão consultivo do Conselho da Revolução em matéria de fiscalização abstracta (preventiva e sucessiva) da constitucionalidade; e julgou, em via de recurso, os casos em que os tribunais recusaram a aplicação de normas jurídicas com fundamento em inconstitucionalidade.
No domínio que ora nos ocupa, as questões que em maior quantidade foram submetidas à Comissão Constitucional diziam respeito aos temas seguintes: (i) saber o que eram matérias de interesse específico para as regiões não reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, que permitissem a intervenção legislativa daquelas: (ii) determinar as matérias que, sendo da competência dos órgãos de soberania, diziam respeito às regiões e impunham, por isso mesmo, a audição destas; (iii) saber o que devia entender-se por leis gerais da República, que as regiões deviam respeitar quando emitissem legislação regional.
3. Significado político
das decisões do Tribunal Constitucional
Em Portugal, não existe por ora experiência que permita avaliar
o grau de influência das decisões do Tribunal Constitucional sobre
os órgãos políticos; ou, em geral, a sua repercussão
sobre a vida política.