Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
VIIª Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus
A Justiça constitucional no quadro das funções
do Estado vista à luz das espécies, conteúdo e efeitos
das decisões sobre a constitucionalidade das normas jurídicas
José Manuel M.. Cardoso da Costa, Juiz do Tribunal
Constitucional
[Lisboa, Portugal, 27 a 30 de abril de 1987]
Nota prévia
O presente relatório segue basicamente o questionário oportunamente enviado aos Tribunais participantes e cinge-se aos temas nele enunciados.
Serviram de base à sua elaboração aos Relatórios apresentados pelos seguintes Tribunais e instituições: Tribunal Constitucional da R.F. da Alemanha, Tribunal Constitucional da Áustria, Tribunal de Arbitragem e Tribunal de Cassação da Bélgica, Tribunal Constitucional de Espanha, Conselho Constitucional da França, Supremo Tribunal da Finlândia, Supremo Tribunal da Holanda, Supremo Tribunal da Irlanda, Tribunal Constitucional da Itália, Tribunal Constitucional da R.S.F. da Jugoslávia, Tribunal de Estado do Principado do Liechtenstein, Conselho de Estado do Luxemburgo, Tribunal Constitucional da Polónia, Tribunal Constitucional de Portugal, Tribunal Federal da Suíça, Tribunal Constitucional da Turquia e Comissão Europeia dos Direitos do Homem.
1. Introdução
1.1. Órgãos da justiça constitucional.
Só o ponto de vista dos “órgãos da justiça constitucional”, continua a verificar-se nos diversos ordenamentos jurídicos e jurídico-constitucionais europeus uma clara distinção ou contraposição entre aqueles que prevêem e os que não prevêem uma instituição jurisdicional específica para o exercício dessa função, ou parte dela.
Entre os primeiros contam-se os ordenamentos dos países em que se acha instituído um “Tribunal Constitucional” (Alemanha Federal, Áustria, Espanha, Itália, Jugoslávia, Polónia, Portugal e Turquia) ou um Tribunal similar (Tribunal Federal Suiço, Tribunal de Estado do Liechtenstein), ordenamento esses a que cumpre acrescentar o francês (onde cada vez menos se contesta que o Conselho Constitucional decide como um órgão jurisdicional) e mais recentemente o belga (depois da criação do Tribunal de Arbitragem).
Nos demais ordenamentos que cabe considerar, a “justiça constitucional” – na específica dimensão do controlo da constitucionalidade de normas jurídicas – é exercida, em grau variável, pela generalidade dos tribunais (tribunais comuns e administrativos). A maior ou menor extensão dessa competência tem sobretudo a ver com a possibilidade de controlo das leis em sentido formal (leis parlamentares), que é excluída em vários ordenamentos (infra, 1.3.).
Nos ordenamentos que conhecem um Tribunal Constitucional ou instituição similar nem sempre, porém, se acha inteiramente excluída a competência dos restantes tribunais para o controlo da constitucionalidade de normas jurídicas. Como ideia geral, pode dizer-se que, nesses ordenamentos, se encontra sempre reservado (ao menos em definitivo) àqueles Tribunais o controlo das normas com o valor de lei; e que, por via de regra, o controlo de normas com valor infra-legal cabe (ou cabe também), em medida e segundo procedimentos variáveis consoante os diversos ordenamentos, aos tribunais em geral. Indicações mais precisas a este respeito resultarão da exposição subsequente (infra, 1.2 e 1.3).
Entretanto, nos ordenamentos constitucionais em que não existe um Tribunal Constitucional ou similar não deixam, por vezes, de se encontrar consagrados certos institutos específicos de verificação e controlo da constitucionalidade, nem sempre de índole jurisdicional, que são expressão tanto da singularidade da respectiva ordem constitucional como das peculiaridades do respectivo ordenamento jurídico e institucional. É o caso do Luxemburgo, em que cabe ao Conselho de Estado examinar, também sob esse ponto de vista, todos os projectos de lei e propostas de emenda apresentados à Câmara dos Deputados; o caso da Finlândia, em que o Presidente da República e o “ Conselho de Estado” podem pedir o parecer prévio do Supremo Tribunal Administrativo antes da apresentação de um projecto ao Parlamento ou antes de o Presidente promulgar um acto deste último (prática, todavia, relativamente rara), e em que a Comissão de Direito Constitucional do Parlamento desempenha um importante papel de interpretação da Constitucionalidade e controlo da constitucionalidade (as posições por ela assumidas revestem-se duma grande autoridade de facto); e o caso da Irlanda, cuja Constituição concede ao Presidente igualmente a faculdade de pedir o parecer do Supremo Tribunal sobre a constitucionalidade de actos aprovados pelo parlamento, parecer esse que se reveste de eficácia vinculativa (mas trata-se de um procedimento também raramente utilizado). Por outro lado, e ainda no que concerne ao caso irlandês, cabe referir que o controlo da constitucionalidade exercido pelos tribunais em geral, e em particular pelo Supremo Tribunal, acaba por assumir uma natureza e eficácia semelhantes aos do controlo levado a cabo por Tribunal Constitucional, em virtude do teor das respectivas decisões sobre a matéria e da sua força de precedente (infra, 2.1 e 3).
1.2. Modalidades e vias processuais de controlo da constitucionalidade.
a) Uma primeira distinção fundamental a este respeito é a que cabe estabelecer entre o controlo preventivo (antes do início da vigência das normas jurídicas) e o controlo sucessivo (quando as normas já entraram a fazer parte do ordenamento).
No que toca aos países em que a justiça constitucional se encontra institucionalizada num Tribunal Constitucional ou instituição similar, a primeira modalidade (controlo preventivo) é, em princípio, a única admitida em França (com ressalva da hipótese prevista no art. 37, alínea c) da Constituição): trata-se do controlo (obrigatório) das “leis orgânicas” e dos “regimentos” das câmaras do Parlamento e do controlo (facultativo) de acordos internacionais e leis parlamentares (por iniciativa do Presidente da República, do Primeiro-Ministro ou do Presidente de qualquer das Câmaras ou ainda, quando às últimas, de 60 deputados ou senadores).
Também em Portugal, Áustria, Itália e Espanha se acha expressamente consagrado um controlo preventivo. Em Portugal, esse controlo cabe, com qualquer fundamento, de todos os diplomas com valor legislativo ou equiparado (convenções internacionais, leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais): já na Áustria, Itália e Espanha tem um âmbito muito mais limitado, pois é admitido apenas quanto a questões de repartição de competência entre a Federação e os Estados federados (Áustria), quanto a leis regionais reaprovadas pela respectiva assembleia depois da oposição do Governo (Itália) ou quanto a tratados internacionais (Espanha, onde, a partir de 1985, desapareceu a possibilidade de controlo preventivo dos estatutos das “Comunidades Autónomas” e das “leis orgânicas”). Por outro lado, também na R.F. da Alemanha o Tribunal Constitucional veio a admitir, mesmo sem texto expresso, o controlo preventivo de leis de aprovação dos tratados internacionais.
Ainda no âmbito do controlo preventivo cabe incluir os procedimentos específicos de verificação da constitucionalidade a que se aludiu no final do número anterior (supra, 1.1.). Às situações então referidas deve acrescentar-se, entretanto, o caso da Bélgica, onde também o Conselho de Estado é chamado a emitir parecer prévio sobre o texto dos projectos e propostas de lei e de decreto, sem que nada exclua que o respectivo exame abranja a questão da constitucionalidade.
Não são numerosos, pois, os casos de admissão de um controlo preventivo de normas jurídicas. Mais generalizado – e sobretudo mais comum aos sistemas que conhecem uma jurisdição constitucional institucionalizada – é o controlo sucessivo da constitucionalidade.
b) No que toca a este último a distinção mais usualmente feita é entre o controlo abstracto, directo ou em via principal e o controlo concreto ou incidental: como é sabido, o primeiro tem lugar independentemente da aplicação da norma a um caso, enquanto o segundo ocorre a propósito dessa aplicação.
Pode dizer-se que nos sistemas jurídico-constitucionais sem jurisdição constitucional institucionalizada (i. é., sem Tribunal Constitucional ou equivalente) o controlo sucessivo, na medida em que seja admitido, é por natureza um controlo concreto ou incidental (richterliches Prüfungsrecht, judicial review) – abstraindo agora da possibilidade que nalguns desses sistemas se reconheça do controlo “directo” de normas infra-legislativas, maxime, de regulamentos.
É nos ordenamentos com uma jurisdição constitucional institucionalizada que a distinção verdadeiramente se manifesta, podendo dizer-se que em quase todos eles se consagram as duas modalidades de controlo, embora em diferente medida e com diversa importância. Constitui excepção o caso da Jugoslávia, em que todo o controlo parece ser havido como “abstracto”, ainda quando a iniciativa do mesmo tenha partido de um juiz ou do Ministério Público, no contexto de um caso concreto. [ Entretanto, deixa-se agora de lado o caso francês, já referido na alínea anterior, e o caso suíço, considerado especialmente a seguir: infra c) ].
Quanto ao controlo abstracto importa sobretudo sublinhar que a iniciativa do respectivo processo é por via de regra reserva a determinados órgãos e entidades públicas ou organismos sociais. Constitui novamente excepção o direito jugoslavo, e num duplo sentido: quer porque reconhece a faculdade de iniciativa a todos os cidadãos (acção popular), embora sujeita a um juízo prévio de admissibilidade por parte do Tribunal Constitucional (que já não tem lugar quando a iniciativa é de órgãos ou entidades públicas); quer porque admite a iniciativa (ex officio) dos próprios tribunais (o da R.S.F. Jugoslávia e os das Repúblicas Federadas e Províncias).
Ainda quanto ao controlo abstracto refira-se que nalguns ordenamento se estabelece um prazo dentro do qual ele deve ser requerido, após o que o controlo das correspondentes normas só poderá ter lugar através de outra via (maxime, do controlo concreto). Assim acontece na Itália (prazos de 30 ou de 60 dias, a contar da publicação, para a impugnação por uma Região de leis da República ou de outra Região), na Espanha (três meses a partir da publicação da lei), na Turquia (10 dias ou 60 dias, a contar da promulgação, consoante a irregularidade seja ou não de natureza formal) e na Polónia (cinco anos, a contar da publicação ou da aprovação do diploma, consoante os casos).
No que diz respeito ao controlo concreto, ou em via incidental, tem lugar, na generalidade dos sistemas jurídico-constitucionais com jurisdição constitucional institucionalizada, através do mecanismo da “questão prejudicial” da constitucionalidade, que é reenviada pelo tribunal da causa ao Tribunal Constitucional. Nalguns ordenamentos (Áustria, Polónia) esse reenvio ocorre qualquer que seja a natureza da norma cuja constitucionalidade (ou legalidade) é posta em causa; noutros, apenas ocorre quando a norma questionada seja de uma lei ou diploma com força legislativa ou equivalente (R.F. Alemanha, Itália, Espanha),o que permite dizer que a intervenção do Tribunal Constitucional, em tal caso, se justifica também pela “defesa da lei”. Neste último tipo situação cabe à generalidade dos tribunais o controlo concreto da constitucionalidade das restantes jurídicas, mormente das normas com valor infra-legal.
Os pressupostos para o reenvio da “questão da constitucionalidade” ao Tribunal Constitucional são em larga medida coincidentes nos diversos ordenamentos num ponto fundamental: o da relevância da norma para o caso a decidir pelo tribunal a quo, relevância essa cuja existência, pelo menos nalguns ordenamentos, o próprio Tribunal Constitucional controla (assim, na Itália, Espanha, Turquia; e, de modo semelhante, na Áustria, mas limitadamente a um “controlo de evidência”). Uma importante diferença, porém, subsiste entre o regime adoptado na R.F. Alemanha e nos restantes ordenamentos já referidos: enquanto nestes últimos o reenvio ao Tribunal Constitucional tem lugar desde que exista “dúvida” fundada sobre a constitucionalidade, no primeiro ele só deverá ocorrer quando o tribunal a quo chegue ao resultado da “inconstitucionalidade” (monopólio da “decisão negativa”). Refira-se ainda que os diferentes ordenamentos também divergem quanto às instâncias legitimadas para propor ao Tribunal Constitucional a questão da constitucionalidade: enquanto nuns essa possibilidade se abre a todo e qualquer tribunal (ex.: R.F. Alemanha, Itália, Espanha), noutros abre-se apenas aos Supremos Tribunais e a tribunais de 2ª instância, quando estejam em causa “leis” (ex.: Áustria), e noutros ainda estende-se a instâncias administrativas superiores (Polónia).
Regime diferente do da “questão prejudicial” é o consagrado no ordenamento português. Aqui é reconhecida a todos os tribunais competência, e competência oficiosa, para o controlo da constitucionalidade de toda e qualquer norma jurídica, cabendo-lhes o dever de recusar a aplicação, nos casos concretos submetidos ao seu julgamento, das normas que reputem inconstitucionais. O controlo normativo concreto cumpre, pois, em primeira linha, aos tribunais em geral. Mas, das decisões destes sobre a “questão da constitucionalidade” cabe recurso para o Tribunal Constitucional, recurso que é obrigatório (devendo ser interposto pelo Ministério Público) quando a norma recusada conste de convenção internacional, acto legislativo ou regulamento promulgado pelo Presidente da República. Quando a “questão da constitucionalidade” tenha sido suscitada por uma das partes no processo, mas haja sido desatendida pelo tribunal da causa, aquela também pode recorrer para o Tribunal Constitucional, uma vez esgotados os recursos ordinários.
c) Modalidade específica de controlo normativo, que escapa à distinção entre o controlo abstracto e o controlo concreto, é a do controlo a requerimento individual dos cidadãos dirigido directamente ao Tribunal Constitucional, a qual se encontra prevista no ordenamento austríaco. Pode ter lugar na hipótese em que uma lei ou um regulamento afectem imediatamente (i. é, independentemente da sua aplicação através dum acto judicial ou administrativo) um cidadão, mas acha-se subordinada ao “princípio da subsidiaridade” (i. é, só é admitida quando aos interessados não esteja aberta outra via judicial de recurso).
Esta modalidade aproxima-se do controlo normativo exercido através dos processos de “queixa constitucional” (staatsrechtliche Beschwerde, Verfassungsbesch-werde). No direito constitucional suíço é justamente através desse procedimento que o Tribunal Federal basicamente exerce o controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, sendo que a “queixa constitucional” tanto pode ser dirigida directamente contra um acto normativo (cantonal) como (indirectamente) contra um acto que o aplique. Também aqui vigora, no entanto, um princípio de subsidiariedade.
Igualmente no direito alemão-federal pode o controlo normativo ter lugar através do processo de “queixa constitucional”, podendo também aí essa queixa ser dirigida inclusivamente contra leis e outras normas jurídicas, verificados certos apertados pressuposto (maxime, o da eficácia imediata e actual dessas normas). E ainda no próprio direito austríaco pode semelhante processo dar lugar a um controlo de constitucionalidade, mas na forma de “controlo concreto” por iniciativa do próprio Tribunal Constitucional.
d) Além das modalidades processuais de o controlo normativo que ficam referidas, esse controlo pode ainda ocorrer, incidentalmente, noutros processos da jurisdição constitucional. Assim pode acontecer, v.g., em processos destinados a resolver conflitos de competência entre diferentes órgãos do Estado ou litígios federais ou quase-federais.
1.3. Âmbito e objecto do controlo
a) Leis e outros preceitos jurídicos. No âmbito do presente relatório importa fundamentalmente considerar o controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis e outras normas com força de lei ou equivalente. Essa possibilidade acha-se reconhecida em quase todos os ordenamentos considerados, com as seguintes especialidades e excepções:
– na Holanda, no Luxemburgo e na Finlândia (países que não conhecem uma jurisdição constitucional específica) um tal controlo não é admitido; é admitido, sim, um controlo de normas infra-legais (“lei” em sentido simplesmente material), o qual na Finlândia se encontra expressamente previsto na Constituição;
– na Irlanda, o judicial review de leis post-constitucionais é reservado à Supreme Court e à High Court;
– na Suíça, acha-se excluído o controlo da lei federal e, bem assim, qualquer controlo “abstracto” de outras normas (regulamentos) federais (o controlo destes pode, todavia, ter lugar incidentalmente, sobretudo no recurso contencioso administrativo); o controlo respeita essencialmente, pois, a diplomas cantonais;
– na Bélgica, o controlo do Tribunal de Arbitragem, respeitando embora a lei e outros actos legislativos (decretos), é limitado, todavia, às questões de repartição de competência entre o estado, as Comunidades e as Regiões; por outro lado, a orientação tradicional do direito belga é no sentido de não reconhecer à generalidade dos tribunais a faculdade de controlo de normas legais (mas a questão tem ultimamente sido objecto de discussão, a partir de um acórdão da Cour de Cassation, de 1974);
– em França, o controlo da constitucionalidade da lei resume-se, fundamentalmente, ao controlo preventivo já mencionado, pois que também é orientação tradicional a que recusa às jurisdições ordinárias e administrativa esse controlo;
– na Turquia, acham-se excluídas do controlo contencioso (pelo Tribunal Constitucional) as leis que constituem a base da Revolução Kemalista, as editadas pelo Conselho de Segurança Nacional entre 1980 e 1983, e os decretos legislativos do Conselho de Ministros emitidos durante o estado de emergência ou de sítio;
– na Polónia, finalmente, a competência de controlo do Tribunal Constitucional é restrita às leis (e outros actos normativos) posteriores à revisão da Constituição polaca, de 1982.Uma especial referência merece o controlo de convenções internacionais que em alguns ordenamentos é expressamente admitido, em graus e formas variáveis (Áustria, Espanha, França, Portugal), e noutros claramente excluídos (Holanda, Polónia).
Por último, e no que respeita aos ordenamentos com uma jurisdição constitucional específica, cabe dizer que os respectivos mecanismos e procedimentos nem sempre estão exclusivamente votados ao controlo da constitucionalidade da lei (ou sequer ao controlo da constitucionalidade. Assim:
– na R.F.Alemanha o controlo abstracto cabe de quaisquer normas jurídicas, e tanto ele como o controlo concreto se estendem à compatibilidade do direito dos Länder como o direito federal;
– em Portugal, a competência do Tribunal Constitucional estende-se ao controlo (abstracto ou concreto) da constitucionalidade de quaisquer normas jurídicas, e abrange ainda o controlo de uma específica forma de “legalidade” (a que tem a ver com as regras de distribuição de competência legislativa entre o Estado e as Regiões Autónomas);
– na Áustria, a jurisdição constitucional abrange o controlo de leis e regulamentos (incluindo os regulamentos internos e quaisquer disposições gerais) e, pelo que toca aos últimos, não apenas o controlo da constitucionalidade mas ainda da legalidade; e semelhantemente se passam as coisas na Jugoslávia (onde a competência dos Tribunais Constitucionais abrange o controlo da constitucionalidade das leis, de outros actos jurídicos gerais e dos actos gerais de organismos de autogestão, bem como o controlo da legalidade destes dois últimos tipos de actos) e na Polónia (onde o controlo se estende a outros actos normativos, além das leis, e à simples “legalidade” deles).
– Em Espanha e na França, finalmente, o controlo da constitucionalidade acha-se expressamente previsto também quanto aos “regimentos” das assembleias parlamentares.b) Preceito e norma. Nalguns ordenamentos jurídico-constitucionais e na jurisprudência de alguns Tribunais Constitucionais tem-se posto a questão de saber se objecto do controlo de constitucionalidade são os preceitos ou disposições legais (o “texto” da lei) ou as normas que eles encerram. No primeiro sentido vai o Tribunal Constitucional espanhol, considerando que não entra na sua competência o controlo das “aplicações” dos preceitos legais; mas em sentido oposto dos casos de mera inconstitucionalidade parcial de um preceito (embora referindo sempre as decisões a uma certa lei ou artigo de lei).
Nos restantes Relatórios nacionais não se faz referência a este específico problema. Apenas no Relatório português se alude a uma questão com algum paralelismo, qual seja a de saber o que deve entender-se por “norma” para o efeito do controlo de constitucionalidade (já que a Constituição portuguesa reporta expressamente esse controlo a “norma”). O entendimento do Tribunal Constitucional português vem sendo o de que esse conceito deve ser tomado num sentido “funcional”, tal que dele são de excluir os puros actos administrativos, as decisões judiciais e os actos “políticos”, mas já não os “preceitos” legais de conteúdo individual e concreto e, em geral quaisquer “regras de conduta” ou “critérios de decisão” para os particulares, para a Administração ou para o juiz.
Seja qual for a resposta mais rigorosa a dar à questão de enquadramento teórico que começou por enunciar-se, duas coisas parecem certas: por um lado, o controlo de “normas” há-de sempre incidir sobre um “texto” ou um “preceito” (legal) que lhes sirva de suporte; por outro, isso não obsta a que unanimente (pode dizer-se) se reconheça a possibilidade de simples inconstitucionalidade parciais, mesmo de índole “quantitativa” (infra, 2.2).
c) Omissões legislativas. Apenas em três dos ordenamentos constitucionais considerados se acha expressamente previsto o controlo da constitucionalidade de omissões legislativas: trata-se do ordenamento português, e dos ordenamentos jugoslavo e polaco. No primeiro, a Constituição estabelece a possibilidade de o Presidente da República, o Provedor de Justiça ou os presidentes das assembleias regionais (quando estejam em causa direitos das regiões) requererem ao Tribunal Constitucional que “verifique o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias” para tornar exequíveis certas das suas normas; no segundo, cabe mesmo na competência oficiosa dos Tribunais Constitucionais a faculdade de assinalarem às correspondentes assembleias a obrigação de serem emitidas normas legais ou de outra natureza para a execução da Constituição ou da lei – uma faculdade que tem uma amplitude tanto mais vasta quanto aos Tribunais Constitucionais jugoslavos cabe genericamente o poder e o dever de acompanhar os factos e situações com interesse para a concretização da constitucionalidade e da legalidade, e bem assim a faculdade genérica de apresentar “propostas” às assembleias para a emissão e alteração de leis; e no ordenamento polaco acha-se contemplada uma competência oficiosa semelhante do Tribunal Constitucional, para apresentar ao Parlamento observações sobre a existência de lacunas cuja eliminação é indispensável para assegurar a coerência do respectivo sistema jurídico.
Não obstante, a problemática das omissões legislativas não é desconhecida noutros ordenamentos, nem é de todo excluída a possibilidade de os respectivos órgãos jurisdicionais de controlo normativo apreciarem a ocorrência de tais omissões, retirando daí uma consequência de inconstitucionalidade (v. os Relatórios nacionais da R.F. Alemanha, Áustria, França, Irlanda, Itália e Turquia). Trata-se aí, porém, de omissões que podem dizer-se “relativas”, isto é, omissões que respeitam a um certo regime ou preceito legal e decorrem basicamente da sua “incompletude”, a qual pode ser fundamento da inconstitucionalidade do preceito ou diploma em causa (no Relatório francês dá-se o exemplo de uma lei em que o legislador ficou aquém da sua competência; mas a situação mais referida é a da não consideração, pelo legislador, de situações semelhantes às por ele contempladas, com violação do princípio da igualdade). Situando-se, pois, no contexto do controlo de normas, o problema ora referido tem a ver, no fundo, com o do “conteúdo” das respectivas decisões, a tratar adiante (infra, 2.2). Acrescente-se aqui, apenas, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional austríaco parece ser a mais radical na matéria, ao considerar que as omissões em causa, sendo relevantes, podem ter unicamente como sanção a inconstitucionalidade do correspondente preceito.
Uma situação específica, atinente à problemática das “omissões legislativas”, é a que pode resultar da revogação pura e simples duma lei necessária à execução de normas constitucionais ou à garantia de exigências da Constituição: tanto o Tribunal Constitucional português como o Conselho Constitucional francês já se pronunciaram sobre hipóteses desse tipo, concluindo pela inconstitucionalidade da norma revogatória.
1.4. Padrões ou parâmetros de controlo
Naturalmente que padrão ou parâmetro do juízo de “constitucionalidade” há-de ser a própria Constituição. E naturalmente também que onde a jurisdição constitucional compreende o controlo da “legalidade” (de toda a legalidade ou de certa espécie dela), padrão ou parâmetro do correspondente julgamento hão-de ser as normas hierarquicamente superiores cuja observância se visa garantir [ v. supra, 1.3. alínea a)].
Quanto ao primeiro dos referidos parâmetros – único que importa considerar neste relatório – algumas observações complementares, todavia, se impõem.
Assim, e em primeiro lugar, deve dizer-se que na generalidade dos ordenamentos é a Constituição no seu todo – tanto, pois, no que toca às suas regras de competência e de procedimento legislativo, como aos seus princípios materiais e aos valores nestes incorporados – que é tomada como padrão do julgamento de constitucionalidade. A este respeito importará sobretudo destacar a evolução, nesse sentido, da jurisprudência do Conselho Constitucional francês, nos anos mais recentes, e também a evolução verificada na jurisprudência constitucional austríaca, no sentido de passar a conferir uma “efectividade” antes não reconhecida a princípios “abertos” (o princípio da igualdade, v.g.) ou a conceitos “indeterminados” (o de “bem público”, p. ex.) da Constituição.
Representa uma excepção a essa orientação geral o direito belga, onde a competência do Tribunal de Arbitragem é limitada ao controlo da observância das regras constitucionais de competência legislativa, como se referiu [supra, 1.3. alínea a)].
Por outro lado, o facto de a generalidade das normas e princípios da Constituição valerem como padrão do juízo de constitucionalidade não exclui que circunstâncias ou razões processuais (a natureza e objecto do processo ou a legitimidade limitada da entidade que o promove) restrinjam, no processo em concreto, o âmbito dos preceitos e princípios constitucionais que podem ser considerados. Assim: no controlo abstracto perante o Tribunal Constitucional português, promovido por órgãos das regiões autónomas (que só pode ter como fundamento a violação dos direitos destas); de modo semelhante, no controlo normativo levado a cabo pelo Tribunal Constitucional da R.F.Alemanha em processos relativos a conflitos de competência: no controlo preventivo do Tribunal Constitucional austríaco [ supra, 1.2. a)]; ou ainda no controlo levado a cabo, quer pelo Tribunal Constitucional alemão, quer pelo tribunal Federal suíço, em processos de “queixa constitucional”, que é restrita à violação de “direitos individuais” dos cidadãos (já não assim, em processos semelhantes, na Áustria).
Uma segunda observação que importa fazer é a de que em alguns relatórios se dá conta de um “alargamento” do parâmetro da constitucionalidade para além das normas e princípios consignados na Constituição “formal” É o caso, designadamente, do “bloco de constitucionalidade” definido pelo Conselho Constitucional francês (incluindo, não só os princípios para que reenvia o preâmbulo da Constituição, mas ainda os “princípios gerais de direito de valor constitucional” e a noção de “objectivos de valor constitucional”); como é o caso do reconhecimento de “normas constitucionais implícitas” pelo Tribunal Constitucional italiano; ou do recurso pelo Tribunal Constitucional turco aos “princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”; ou também da consideração, pelo Tribunal Federal suíço, das garantias e direitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E numa linha semelhante poderá ainda referi-se, porventura, o controlo de normas legislativas em sentido material (não parlamentares) pelos tribunais holandeses à luz dos “princípios gerais do direito”.
Uma terceira nota é a de que também um “alargamento” do padrão da constitucionalidade se verifica quando o mesmo se estende a normas não-constitucionais por força ou em ligação com princípios e normas da Constituição. Trata-se do fenómeno ou em ligação com princípios e normas da Constituição. Trata-se do fenómeno das chamadas normas interpostas, especialmente considerado pela doutrina e jurisprudência italianas. Como normas nessas condições apontam-se aí as leis de delegação legislativa, os “princípios fundamentais estabelecidos nas leis do Estado” (relevantes para a definição da competência legislativa regional) e as “normas de direito internacional geral” (de modo semelhante, quanto a estas últimas, também na Turquia). Em termos paralelos deve considerar-se o “bloco de constitucionalidade” a que o Tribunal Constitucional espanhol se refere, em sede de distribuição de competência legislativa entre o Estado e as Comunidades Autónomas, bloco no qual se integram, além das pertinentes normas da Constituição, os “Estatutos” das diferentes Comunidades e as leis delimitadoras, no quadro constitucional, do âmbito de tal competência. Também a problemática das normas interpostas tem sido objecto de frequente consideração pelo Tribunal Constitucional português, a propósito da questão específica do relevo, como padrão de controlo da “constitucionalidade”, dos tratados internacionais (os quais, segundo a doutrina dominante, têm em Portugal, por força da Constituição, valor supra-legislativo): a jurisprudência das duas Secções do Tribunal encontra-se, a tal respeito, radicalmente dividida.
Finalmente, uma quarta observação que deve reter-se – e é assinalada no Relatório nacional italiano – é a do possível relevo da própria lei ordinária, quer como indicador e estabilizador da interpretação da Constituição, quer como tertium comparationis nos juízos de constitucionalidade à luz do “princípio da igualdade” (cada vez mais frequente). É este último, porém, um tema que se liga já ao do “conteúdo” das decisões (infra, 2).
2. Conteúdo das decisões
Nos ordenamentos considerados oferecem-se dois modelos básico de controlo da constitucionalidade de normas jurídicas: o do controlo difuso pela generalidade dos tribunais e o controlo concentrado por Tribunais Constitucionais ou similares [ supra, 1.2. b)]. Assim, a primeira distinção que cabe fazer é entre o conteúdo das decisões nos dois casos: é que, se no controlo concentrado a decisão versa directamente sobre a questão da constitucionalidade e incorpora no seu teor o correspondente juízo, no controlo difuso a decisão visa imediatamente resolver outra questão jurídica (a “questão principal”) submetida ao tribunal e, em geral, só nos seus fundamentos integra um juízo sobre a constitucionalidade da norma, juízo que se resolve na “aplicação” ou “não aplicação” desta ao caso concreto.
Um desvio a esta regra encontra-se, porém, no ordenamento irlandês, onde vigora o primeiro dos modelos indicados (e onde, de resto, a competência de judicial review tem expressa consagração constitucional): aí, na hipótese de inconstitucionalidade, o procedimento mais usual é o de o tribunal emitir uma correspondente declaração formal (embora também ocorram casos em que aquele juízo figura só nos fundamentos da decisão).
Deve também notar-se que, mantendo-se em Portugal, não obstante a instituição do Tribunal Constitucional, a competência do controlo normativo da generalidade dos tribunais [supra, 1.2. b) ] naturalmente que a decisão destes, nos casos concretos, se traduzirá na “aplicação” ou “não aplicação” da norma.
De referir é ainda, por outro lado, que mesmo em processos perante os Tribunais Constitucionais não deixam de surgir situações em que estes não emitem uma decisão directa sobre a constitucionalidade duma norma, mas simplesmente incorporam o correspondente julgamento nos fundamentos de uma outra decisão (com a consequência de um tal julgamento não produzir então os efeitos que aquela decisão directa teria): assim acontece nos processos de “queixa constitucional” perante o Tribunal austríaco, e pode acontecer, em processos idênticos, perante o Tribunal alemão e perante o Tribunal Federal suíço (neste caso, quando a queixa respeite a actos de aplicação do direito).
Na exposição subsequente considerar-ser-ão basicamente as decisões directas sobre a questão da constitucionalidade.
2.1. Os tipos simples ou extremos
Reconduzem-se, obviamente, a uma decisão, pura e simples, de inconstitucionalidade (decisões de “acolhimento” na terminologia italiana ou a uma decisão de sentido e alcance oposto (decisões de “rejeição” na mesma terminologia).Em qualquer dos casos trata-se da emissão de um juízo simples, sem reservas ou condições. O respectivo conteúdo não é, porém, precisamente o mesmo em todos os ordenamentos e situações.
a) No tocante às decisões no sentido da inconstitucionalidade, elas incorporam antes de mais uma “declaração” ou pronúncia” de inconstitucionalidade. Mas desde logo importa distinguir consoante são proferidas em controlo preventivo ou em controlo sucessivo. No primeiro caso, o seu conteúdo dispositivo traduz-se em impedir a entrada em vigor da norma; no segundo, ele consiste, em regra, em determinar a eliminação da norma do ordenamento jurídico.
Atendo-nos agora exclusivamente ao controlo sucessivo, deve dizer-se que o mencionado efeito se produz, em princípio, tanto no controlo concreto ou incidental (questão de constitucionalidade) como no controlo abstracto ou principal. Constitui excepção o caso português, já que, em virtude da particular configuração do respectivo sistema de controlo, nas hipóteses de controlo concreto o Tribunal Constitucional é simplesmente chamado, em via de “recurso”, a “rever” (limitadamente à “questão da constitucionalidade”) uma decisão judicial prévia de aplicação ou não aplicação duma norma: cumpre-lhe, pois, simplesmente confirmá-la (decisão de “não provimento do recurso”) ou revogá-la (decisão de “provimento do recurso”). Daí que, onde o juízo do Tribunal (em consonância ou em divergência com o da decisão recorrida) for no sentido da inconstitucionalidade, ele simplesmente se limite a “julgar a norma inconstitucional” (incorporando esse julgamento na decisão do recurso).
O modo como nos diferentes ordenamentos jurídicos se configura o efeito “cassatório” da norma não é, porém, idêntico. Nalguns, liga-se a esse efeito o da declaração da “nulidade” da norma (R.F. Alemanha, Turquia, Espanha, acrescendo, neste último país, o da “derrogação”, quando se esteja perante normas pré-constitucionais); noutros, liga-se, em princípio, um efeito de “revogação” (Áustria, onde, todavia, estando em causa tratados internacionais ou normas revogadas, se pronuncia apenas uma “declaração de inconstitucionalidade”); noutros ainda, um efeito, por vezes qualificado de intermédio, de “anulação” (Itália, Bélgica); na Jugoslávia, no tocante a normas infra-legais, fala-se de “anulação” ou “revogação”; em Portugal, por último, a Constituição e a lei referem-se apenas à “declaração de inconstitucionalidade”. O significado destas divergências, no tocante à eficácia (temporal) da decisão, será analisado infra, 4.1 e 4.2.
Consideração à parte exigem os ordenamentos jugoslavo e polaco. E isso porque, aí, a declaração de inconstitucionalidade ou de “não conformidade” da norma não importa sempre ou imediatamente o seu efeito cassatório. Na Jugoslávia, estando em causa normas com o valor de “lei”, as decisões dos Tribunais Constitucionais são comunicadas à respectiva assembleia, para que ela, no prazo de 6 meses (que pode ser porrogado), reponha a constitucionalidade (revogando ou alterando a norma ou normas em questão); só no caso de inércia da assembleia, findo esse prazo, pode o competente Tribunal Constitucional emitir uma segunda decisão destinada a fazer cessar a vigência da norma. Na Polónia, todas as decisões declaratórias de “não conformidade” de normas são remetidas aos órgãos que emitiram estas últimas, cabendo depois distinguir consoante se trate de normas de lei ou decreto parlamentar ou de outras: no primeiro caso, cabe ao Parlamento decidir a revogação ou alteração da norma ou então (pela maioria exigida para a revisão constitucional) revogar a decisão do Tribunal; no segundo caso, o órgão normativo fica adstrito a revogar ou alterar a norma no prazo de 3 meses, sob pena de esta perder a sua eficácia obrigatória.
Ainda no tocante às decisões de “inconstitucionalidade”, cumpre referir que, de uma maneira geral, o seu conteúdo (e âmbito) é delimitado pelo objecto do “pedido” ( de harmonia com o consabido princípio ne eat judex ultra vel extra petita partium), no controlo abstracto, ou da “questão da constitucionalidade”, no controlo concreto. E, assim, bem se pode dizer que onde haja sido questionada apenas uma parte do preceito ( uma alínea ou um número), a respectiva decisão de inconstitucionalidade “parcial” corresponde ainda, a uma decisão “simples”.
O “principio do pedido” estende-se, em regra, apenas ao “objecto” da decisão (a norma questionada), e não aos fundamentos da inconstitucionalidade ( normas ou princípios violados): nesse sentido, por ex., é expressa a Lei do Tribunal Constitucional português. Mas por vezes vai mais longe, como parece acontecer no ordenamento suíço, se bem entendeu o respectivo Relatório nacional.
Um tal princípio, porém, não é reconhecido sem excepções. Assim, pode dizer-se que não vigora na Jugoslávia nem na França (aqui, naturalmente, no âmbito do controlo preventivo), e que conhece duas importantes limitações na R.F. Alemanha (a decisão pode estender-se a outras disposições da “mesma” lei, inconstitucionais pelos “mesmos” fundamentos) e na Áustria (quando a inconstitucionalidade resulte da infracção de uma regra da infracção de uma regra de competência ou de forma). Na Espanha, por sua vez, está legalmente previsto o alargamento da decisão por uma razão de “conexão ou consequência”, e idêntica declaração “ consequencial” de inconstitucionalidade se admite na Itália.
b) Pelo que respeita às decisões de sentido oposto ao da inconstitucionalidade, fundamentalmente importa referir que, na sua modalidade mais frequente e usual, elas assumem um carácter puramente “negativo” (como se diz no relatório suíço) traduzindo-se, ou numa “não declaração de inconstitucionalidade” (é a fórmula portuguesa, no controlo abstracto sucessivo; e de modo semelhante na Jugoslávia), ou então, de modo ainda mais simples, na “negação de provimento” (rejeição) da acção, do recurso ou da questão de constitucionalidade (assim, p.ex., além da Suíça, na Espanha, Itália, Bélgica, Irlanda, Áustria). Em qualquer das duas variantes o que os Tribunais não pronunciam é uma declaração “positiva” da “constitucionalidade” da lei ou da norma questionada: o correspondente juízo só de maneira “indirecta” poderá resultar da decisão (como se acentua no relatório jugoslavo).
Há, porém, situações e ordenamentos onde essa declaração positiva de conformidade constitucional ou de não inconstitucionalidade tem lugar. Assim acontece, desde logo, no controlo preventivo dos ordenamentos irlandês e francês (mas já não no controlo preventivo português) [supra, 1.1 e 1.2. b)]; e acontece, bem assim (agora já no âmbito do controlo sucessivo), na R.F. Alemanha, na Polónia e ainda na Turquia.
Desde já se deve adiantar que a distinção referida não é isenta de consequências jurídicas, pois que a ela correspondem, em via máxima, efeitos materiais e processuais diversos das decisões (nomeadamente no tocante à medida do seu efeito preclusivo): isso se referirá, infra 3.
2.2. Os tipos intermédios
Não obstante a decisão sobre a questão da constitucionalidade de normas jurídicas dificilmente poder deixar de reconduzir-se “formalmente” a uma das alternativas simples que vêm de referir-se, a verdade é que, sob essa capa, e por vezes rompendo mesmo esse esquema alternativo binário, não deixou a jurisprudência constitucional de desenvolver tipos ou modelos “intermédios” de decisão isto é, situando-se “substancialmente” (quando não mesmo “formalmente”) entre os dois extremos apontados.
Podendo dizer-se que se trata de um fenómeno inteiramente generalizado, não será arriscado situar a sua mais funda raiz na consciência de que uma decisão de inconstitucionalidade implica sempre, afinal, uma “desautorização do legislador” (contempt of Parliament), o que logo denuncia a sua “gravidade”. E a isso acresce, depois, que tal decisão pode acarretar por vezes, ao menos no imediato, dificuldades não negligenciáveis, designadamente de ordem institucional. Bem se compreende, pois, que em todos os ordenamentos, com maior ou menor amplitude, a jurisprudência desde cedo tenha vindo a adoptar “técnicas de decisões” que permitem evitar aquele resultado, quando ele de todo em todo se não imponha.
a) A primeira dessas técnicas é a da interpretação em conformidade com a Constituição. Trata-se, como é sabido, de reinterpretar a norma, recusando-lhe o sentido ou sentidos que conduziriam à sua inconstitucionalidade e, eventualmente, fixando-lhe um outro compatível com a Constituição. È um procedimento que, como se escreve no Relatório austríaco, porventura pode reconduzir-se a uma sub-espécie da “interpretação sistemática-teleológica” do direito, o que e explicará, no fundo, a sua “universal” aceitação (por vezes, sob uma denominação específica, como a de “interpretação neutralizante”, em França). Esta difusão do método estende-se mesmo – será curioso referi-lo – a ordenamentos em que se acha integral ou parcialmente vedado o controlo judicial da constitucionalidade da “lei”, funcionando aí como “compensação” para tal ausência de controlo: assim, na Suíça, quanto às leis federais, e recentemente na Finlândia).
A técnica da “interpretação conforme” conduz, obviamente, a decisões em que não se julga inconstitucional a norma questionada: decisões interpretativa de rejeição, na terminologia italiana. Em geral tratar-se-á de decisões cujo sentido e alcance se apura através dos respectivo “fundamentos”, e por “reenvio” para estes (que pode ser um reenvio “específico”) do “teor da decisão” ou “ dispositivo” da sentença. Mas podem assinalar-se casos em que a “interpretação conforme” é levada mesmo a este “dispositivo”: assim, no controlo preventivo francês, e também na prática do Tribunal Constitucional espanhol.
Duas ordens de problemas, no entanto, levanta a “técnica” em apreço, os quais têm a ver com a amplitude e os limites dos poderes dos Tribunais Constitucionais, face, por um lado, ao legislador e, por outro, aos tribunais em geral. Desses problemas dão conta vários relatórios nacionais.
Quanto ao primeiro problema, pode dizer-se, como ideia geral, que a interpretação conforme à Constituição tem os seus limites “na letra e na clara vontade do legislador” (Rel. alemão), devendo, pois, “respeitar a economia da lei” (Rel.belga) e não podendo traduzir-se na “reconstrução” de uma norma que não esteja devidamente explícita num texto” (Rel. espanhol). Dentro desta orientação comum podem entretanto assinalar-se diferentes tónicas na aplicação do método: v. o Relatório suíço (especial empenho do Tribunal Federal na procura de uma interpretação conforme) e o Relatório irlandês (“presunção” de interpretação conforme no caso de leis post-constitucionais e “presunção” inversa no caso de leis pré-constitucionais; cfr. também, a este propósito, o Relatório austríaco).
Quanto ao segundo problema, deriva ele de a “interpretação conforme” não ser “monopólio” dos Tribunais Constitucionais Rel. austríaco) e de a interpretação da lei competir primariamente aos tribunais “comuns”. Daí que se pergunte se aos Tribunais Constitucionais é lícito, não apenas afastarem as interpretações desconformes com a Constituição, mas imporem a sua própria interpretação da lei. A orientação dos Tribunais alemão e austríaco é no primeiro sentido; de um modo mais geral, todavia, parece que a prática está longe de corresponder a tal orientação. A este respeito, e além do Relatório austríaco, v., em especial, os Relatórios italianos, francês e português. No primeiro , dá-se nota de dois tipos de “interpretação conforme”: um, segundo o “direito vivente” (i.é, segundo a orientação interpretativa fixada pelos tribunais em geral, e em especial pela Cassação), e outra em que o Tribunal Constitucional define a sua própria interpretação; no Relatório francês, assinala-se que, onde a constitucionalidade de um texto se haja baseado numa “interpretação neutralizante”, esta adquire um “carácter obrigatório”; no Relatório português sublinha-se que a própria Lei do Tribunal Constitucional dispõe, no tocante à fiscalização concreta, que a “interpretação conforme” feita pelo Tribunal é obrigatória para os restantes tribunais intervenientes no processo em causa.
b) Outro tipo de “decisões intermédias” geralmente reconhecido é o da declaração duma inconstitucionalidade parcial, isto é, de decisões em que apenas se julga inconstitucional uma parte do preceito questionado no pedido (ou na “questão prejudicial”). Poderá tratar-se de uma parte correspondente a uma das “disposições” do preceito, ou mesmo só a um período ou frase do respectivo texto (inconstitucionalidade parcial “horizontal” ou quantitativa); ou então a uma certa dimensão do seu conteúdo dispositivo (a uma “norma” que dele se extrai), o que poderá chamar-se inconstitucionalidade parcial “qualitativa”, “ideal” ou “vertical”.
Interessará destacar esta segunda modalidade (também ela geralmente aceite). Correspondendo formalmente ao “inverso” da “interpretação conforme”, ela assenta todavia (como se assinala em alguns Relatórios nacionais) numa abordagem metodológica semelhante do preceito questionado, e é guiada por idêntica preocupação de afastar os seus possíveis sentidos inconstitucionais: só que, na “inconstitucionalidade parcial” esse resultado se obtém julgando inconstitucional o preceito “enquanto” ou “na medida em que” ou “na parte em que” incorpora um certo conteúdo de sentido ou uma certa dimensão aplicativa. Trata-se das decisões que a doutrina italiana designa como interpretativas de acolhimento (quando a inconstitucionalidade “parcial” é definida por “reenvio” do dispositivo decisório para os respectivos “fundamentos”) ou de “acolhimento parcial (quando a correspondente “declaração” consta daquele próprio dispositivo).
Tratando-se de decisões “simétricas” das decisões “interpretativas de rejeição” (ou de “interpretação conforme”), mas com um alcance afinal idêntico, compreende-se que a opção entre umas e outras dependa, em última análise, de um “juízo prudencial” (se não de um juízo de “oportunidade”) dos Tribunais: v. a este propósito, nomeadamente, os Relatórios italiano, português e espanhol, e a referência, nos dois primeiros, a um tópico especialmente importante neste contexto, que é o da força vinculativa geral das decisões de inconstitucionalidade parcial, em confronto com as de “interpretação conforme” (enquanto decisões de simples “rejeição” do pedido) (infra, 3). Isso explica que na prática do Tribunal Constitucional italiano tenha passado a dar-se prevalência às sentenças “interpretativas de acolhimento”, primeiro, e às de “acolhimento parcial”, depois.
Decorre do exposto que também no âmbito das decisões de “inconstitucionalidade parcial” se poderá pôr um problema paralelo ao que a “interpretação conforme” coloca no plano da extensão dos poderes dos Tribunais Constitucionais face ao legislador: o de saber se a “modificação” do preceito que elas não deixam de implicar é, a essa luz, admissível.
Mas, em particular, suscitam essas decisões o problema, de âmbito mais genérico, da “separabilidade” da parte do preceito julgado inconstitucional (“separabilidade”, não apenas em atenção ao sentido e alcance inicial do preceito, mas também, desde logo, à sua funcionalidade). A tal respeito cabe em especial referir a competência do Conselho Constitucional francês para “determinar”, ele próprio, se e em que medida se verifica, ou não, tal separabilidade (decisão com consequência no tocante aos poderes de promulgação do Presidente da República).
c) Se a “interpretação em conformidade com a Constituição” e a “inconstitucionalidade parcial” são “ técnicas” de decisão geralmente praticadas, já o mesmo não pode dizer-se de outros tipos “intermédios” de decisão, como são os das decisões apelativas e as de mero “reconhecimento” da inconstitucionalidade, desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional alemão. O segundo destes tipos de decisão veio entretanto a ser recebido pela própria Lei do Tribunal Constitucional Federal.
Nas “decisões apelativas” o Tribunal considera que uma lei ou situação jurídica “ainda” não é inconstitucional, mas liga a essa declaração um “apelo” ao legislador para modificar essa situação, eventualmente fixando-lhe um prazo para o efeito; nas decisões de “mero reconhecimento” da inconstitucionalidade, o Tribunal “declara” a inconstitucionalidade da norma, mas não liga a essa declaração a da correspondente “nulidade”.
Na base de decisões destes tipos está uma ordem de razões semelhante, as quais podem reconduzir-se, por um lado, à preocupação de evitar um “caos” jurídico ou “político-constitucional” ou o surgimento de uma situação ainda menos compatível com a Constituição e, por outro lado, à ideia de preservar a “liberdade constitutiva” do legislador, nomeadamente em situações de “omissão legislativa” [supra, 1.3.a)]. E a esta última ideia ligam-se, por vezes, considerações dogmáticas, como, nomeadamente, a da dificuldade de declarar “nula” uma mera omissão (ou lacuna) de regulamentação. Nos casos em que o Tribunal Constitucional alemão enveredou por tal modalidade de decisões, são frequentes aqueles em que estavam em causa violações do princípio da igualdade (resultantes, justamente, de “omissões” do legislador).
O sentido comum de todas essas decisões é, no fundo, o de que o Tribunal Constitucional considera que “a situação actual não pode permanecer”, mas deixa ao legislador “a decisão política sobre o modo como deve configurar-se a regulamentação futura”.
Não obstante as razões determinantes dos tipos de decisões em causa poderem obviamente ocorrer noutros ordenamentos, a verdade é que esses mesmos tipos de decisões não lograram generalizar-se. Em diversos Relatórios nacionais sublinha-se que os correspondentes ordenamentos não parecem consenti-los. Entre tais Relatórios destaquem-se o austríaco e o português, quando salientam, nesse contexto, os poderes de conformação dos efeitos das decisões, de que os respectivos Tribunais dispõem (infra, 4).
Em todo o caso, em paralelo com as “decisões apelativas” do Tribunal alemão parece poderem colocar-se algumas raras “decisões admonitórias” (senteze monito) do Tribunal Constitucional italiano (decisões de “rejeição”, mas, no fundo, condicionadas), depois seguidas por uma decisão de “acolhimento” (técnica da “dupla pronúncia”). Cfr. também , no tocante às “decisões apelativas”, o Relatório austríaco.
d) Entretanto, pode falar-se de “decisões apelativas” num outro sentido, qual seja o daqueles em que o Tribunal, sob a forma de uma decisão de inconstitucionalidade (decisão de “acolhimento”, na terminologia italiana), enuncia também uma série de princípios que uma nova lei com o mesmo objecto deve conter para se conformar com a Constituição (quando não emite ele mesmo uma normação provisória para substituir a declarada inconstitucional) (assim se exprime o Relatório português). Tais decisões podem também denominar-se de construtivas (assim, o Relatório espanhol).
Trata-se de decisões cuja admissibilidade é altamente problemática, atento o carácter essencialmente “negativo” da função cometida aos Tribunais Constitucionais (função cassatória). Nos diferentes Relatórios são raras, por isso, as referências a tal tipo de decisões. Em todo o caso, podem citar-se, porventura, certas decisões do Tribunal alemão em que teve lugar um mero reconhecimento da inconstitucionalidade, e a decisão 53/85 do Tribunal espanhol, sobre a despenalização do aborto.
Situação porventura diferente duma sentença “construtiva”, mais ou menos claramente assumida como tal, será aquela em que dos “fundamentos” duma decisão de inconstitucionalidade se retiram indicações quanto a uma futura regulamentação da matéria, conforme à Constituição. Tal situação é assinalada, p. ex., nos Relatórios francês e suíço, mas sempre sublinhando a “contenção” que aí se impõe às instâncias de controlo.
d) Algumas outras modalidades específicas de decisões de tipo “intermédio” poderão ainda apontar-se.
Estarão nesse caso as que no Relatório austríaco se designa como decisões de complemento da lei: trata-se de decisões em que se julga conforme à Constituição uma norma, na medida em que ela deve considerar-se integrada por certas normas constitucionais imediatamente aplicáveis.(Algum paralelismo “estrutural “ com elas, mas tendo um sentido “substancial” diverso, oferecem certas decisões do Tribunal Constitucional turco, em que este, “reconhecendo a inconstitucionalidade”, fez aplicação directa de disposições constitucionais, para assim contornar o obstáculo, que na hipótese existia, ao seu poder de controlo).
Também como modalidade específica de decisões “intermédias “ podem considerar-se aquelas em que o Tribunal Constitucional espanhol delimitou o âmbito “espacial” e o Tribunal Constitucional português o âmbito “temporal” de aplicação de certas normas: mas trata-se, no fundo, de decisões de inconstitucionalidade “parcial” ratione territorii ou ratione temporis.
2.3 Decisões integrativas e substitutivas.
De um ponto de vista “estrutural”, não se trata de decisões diferentes das decisões de “inconstitucionalidade parcial qualitativa” (decisões de “acolhimento parcial”, na terminologia italiana). O que em tais designações se exprime é o específico efeito “substancial” de certas dessas decisões, o qual se traduz num imediato (“autoaplicável”) alargamento ou “adição” do regime contido no preceito julgado parcialmente inconstitucional, ou até na sua “substituição” por outro. Daí que a doutrina italiana destaque as sentenças aditivas (por efeito da declaração da inconstitucionalidade de um preceito “na parte em que” estabelece uma “excepção” ou uma “condição” ou “não contempla” certa situação) e as sentenças substitutivas (por efeito da declaração da inconstitucionalidade de um preceito na parte ou na medida em que estabelece um certo regime “antes que” um outro). Também nos Relatórios português e espanhol se dão exemplos de decisões “aditivas” dos respectivos Tribunais.
Justifica-se o destaque, porque é com referência a tais decisões – frequentemente designadas, juntamente com outras, de “manipuladoras” – que se revela plenamente a problemática da legitimidade de decisões que operam um efeito “modificador” no ordenamento jurídico, e se tem travado um correspondente debate doutrinal. Deste debate dá desenvolvida conta, no que à respectiva literatura diz respeito, o Relatório italiano, concluindo, porém, que semelhantes decisões são hoje geralmente admitidas, no seu conjunto, e que a verdadeira questão é a dos limites dessa admissibilidade. A tal propósito, sublinha-se que as decisões em causa não podem ser “verdadeiramente criadoras de direito novo, no mesmo plano da função legislativa”, mas devem “limitar-se a individualizar a norma já implicada no sistema” (são decisões, pois, a rime obbligate, e não decisões em que o Tribunal disponha duma liberdade constitutiva idêntica à do legislador). Assim, elas serão admissíveis quando “se trate do único dispositivo concebível para, no estado actual do ordenamento, reafirmar a Constituição no ponto em causa”; sempre que, em lugar disso, “as soluções hipotizáveis sejam mais do que uma, e a escolha entre elas releve de opções de carácter político”, não se estará perante uma questão de legitimidade constitucional.
3. Vinculatividade das decisões
3.1. A principal distinção que ocorre é entre decisões com eficácia limitada ao caso e decisões com “eficácia “erga omnes”. Respeita ao diferente âmbito de vinculatividade do “dispositivo” da sentença (o julgamento de inconstitucionalidade ou o julgamento inverso, ou a correspondente “declaração”) e aos efeitos que o mesmo produz imediatamente (ou não) sobre o ordenamento jurídico (sobre o universo das respectivas normas).
O recorte da distinção tem fundamentalmente a ver, por um lado, com a “natureza processual” e a “estrutura” das decisões e, por outro, com o seu “conteúdo”. O seu fundamento e explicação decorrem, pois, do que se expôs supra, 2 e 2.1, para onde se remete.
a) Assim, a generalidade das decisões proferidas em controlo “difuso” da constitucionalidade (no exercício, pois, duma genérica competência de judicial review) produzem, naturalmente, uma eficácia limitada ao caso; fazem excepção as decisões em que os tribunais irlandeses (maxime, a Supreme Court e a High Court) emitem uma “declaração” de inconstitucionalidade. E a mesma eficácia limitada produzem, além disso, certas decisões dos Tribunais Constitucionais a que corresponde, no fundo, um simples controlo “incidental” da constitucionalidade (v.g., em processos de “queixa constitucional”).
b) Diversamente, já quanto às decisões “directas” sobre a constitucionalidade de normas jurídicas, proferidas em controlo “concentrado”, importará distinguir consoante elas são no sentido da inconstitucionalidade ou em sentido inverso, e consoante incorporam ou não uma correspondente “declaração”.
No que toca às primeira pode dizer-se, com poucas reservas, que produzem eficácia obrigatória geral (“erga omnes”), pois que em princípio incorporam uma “declaração” formal da inconstitucionalidade. Não acontece assim, porém, nas decisões proferidas em controlo “concreto” (questão de constitucionalidade) pelo Tribunal Constitucional português e pelo Tribunal de Arbitragem belga, as quais têm, por isso, eficácia limitada ao caso (fazem “caso julgado” no processo quanto àquela questão, vinculando não só o tribunal recorrido ou proponente como todos os que venham ainda a intervir no processo). Por outro lado, as decisões proferidas em controlo “abstracto” pelos Tribunais Constitucionais polaco e jugoslavo só têm uma eficácia geral “cassatória” da norma nas hipóteses e condições referidas supra, 2.1..
No que toca às decisões em sentido inverso ao da inconstitucionalidade, a tendência dominante é no sentido de não incorporarem qualquer “declaração” formal de constitucionalidade ou não inconstitucionalidade, mas limitarem-se a julgar improcedente o pedido ou a questão de inconstitucionalidade, não surtindo, por conseguinte, “eficácia obrigatória geral”. Tratando-se de decisões proferidas em controlo “concreto”, terão, pois, eficácia limitada ao caso (na Itália, ao juiz a quo); sendo proferidas em controlo “abstracto”, dir-se-á que não produzem um efeito preclusivo. Mas a tendência dominante mencionada comporta importantes desvios e atenuações, como se refirá a seguir brevemente.
Assim, na R.F.Alemanha, o Tribunal Constitucional, sendo o caso, “declara” a conformidade constitucional da norma sujeita ao controlo, declaração que tem eficácia idêntica à da declaração de inconstitucionalidade; de modo semelhante acontece na Polónia, onde a “declaração” de conformidade tem o valor duma “interpretação proconstitucional universalmente obrigatória”; na Áustria, as decisões em causa têm eficácia geral no tocante às questões de constitucionalidade apreciadas (produzindo uma correspondente força de caso julgado nos respectivos “fundamentos”); na Espanha, a lei prevê que as declarações de negação de provimento produzam um “efeito preclusivo” relativamente à apreciação do mesmo problema de constitucionalidade, não estando todavia ainda jurisprudencialmente fixado o exacto alcance dessa disposição (quanto às situações a que se aplica); na Turquia, as decisões de não provimento, no âmbito do controlo concreto, implicam um julgamento de “conformidade constitucional” que exclui a possibilidade de a questão ser reapreciada durante 10 anos; finalmente, na Bélgica, as decisões de rejeição dum “recurso de constitucionalidade” (controlo abstracto) são obrigatórias para os tribunais no que respeita à questão decidida.
c) As considerações da alínea antecedente reportam-se essencialmente às decisões proferidas em controlo “sucessivo”, mas pensa-se que em princípio serão aplicáveis, mutatis mutandis, às decisões proferidas em controlo preventivo, nos casos em que este se acha previsto [ supra,1.2.a)]. Em vários dos concernentes Relatórios nacionais o ponto, aliás, não foi sequer especificamente considerado. Foi-o, no entanto, nos Relatórios português, francês e irlandês.
Tendo em conta estes três últimos, a principal nota a assinalar é a de que as decisões de controlo preventivo em que se não conclui pela inconstitucionalidade têm um alcance muito diverso em Portugal e nos dois outros países referidos: enquanto no primeiro não produzem qualquer efeito preclusivo duma ulterior apreciação da norma, na França e na Irlanda têm o efeito de firmar “erga omnes” a respectiva “conformidade constitucional” (na Irlanda, determina-o um preceito constitucional expresso; na França, isso estará logo de harmonia com o princípio tradicional da recusa dum judicial review das leis).
Por outro lado, quanto às decisões de inconstitucionalidade, se pode aí falar-se duma “eficácia geral”, deverá notar-se, todavia, que o seu efeito específico e imediato se dirige ao órgão competente para promulgar o diploma em causa, obrigando-o a vetá-lo. A este respeito, porém, algumas diferenças ocorrem entre o regime francês e o regime português. Acrescentar-se-á apenas que em Portugal o parlamento pode, por maioria qualificada, ultrapassar o julgamento do Tribunal Constitucional, quando a normas por ele aprovadas.
3.2. Para além do que fica referido, a “qualificação”, em termos de direito comparado, dos efeitos das decisões judiciais de controlo normativo origina não poucas dificuldades e perplexidades. Afigura-se ser este um domínio particularmente propício a ser esclarecido através do debate. Nas breves notas subsequentes considerar-se-ão unicamente as decisões proferidas pelas instâncias específicas de controlo da constitucionalidade e tendo directamente por objecto esse controlo (cfr. supra, 2).
a) No tocante à força de caso julgado, o único ponto que se pode ter como firme é o de que as decisões em causa adquirem, em geral, força de caso julgado formal, ou uma eficácia equivalente . Isto é: são decisões “finais”, não passíveis de recurso, e que “precludem a possibilidade de a questão por elas resolvida vir a ser reposta, de qualquer forma, no mesmo processo” (como se diz no Relatório português). Mas ainda aqui surge uma ou outra excepção ou especificidade.
Não será exactamente o caso do reenvio pelos Tribunais Constitucionais das Repúblicas ou Províncias da Jugoslávia ao Tribunal Constitucional da Jugoslávia de uma questão de constitucionalidade por eles desatendida, para que este último sucessivamente a aprecie: é que esse reenvio corresponde unicamente a um princípio de “competência paralela” desses Tribunais, tal que os padrões de controlo de uns e do outro são diversos (respectivamente, e em via de máxima, o direito da República ou Província e o direito federal). Mas já se verifica uma excepção quando no ordenamento polaco se admite a possibilidade de “revisão” no tocante a decisões declaratórias da inconstitucionalidade de normas infra-legais. Por outro lado, não deixa de constituir uma “especificidade” a possibilidade, já referida, de o Parlamento português “confirmar”, por maioria qualificada, normas, por ele aprovadas, julgadas inconstitucionais em controlo preventivo: fica então ao Presidente da República a faculdade de promulgar ou não o respectivo diploma (ou de o ratificar ou não, sendo um tratado internacional).
Já pelo que respeita à força de caso julgado material, os Relatórios nacionais revelam acentuadas divergências, as quais parecem reflectir entendimentos não de todo coincidentes desse conceito, ou do seu alcance. Assim, na Áustria e na Bélgica reconduzem-se a essa noção (caso julgado “com eficácia geral” ou caso julgado “absoluto”) os efeitos “erga omnes” das decisões; em França, também às decisões do Conselho Constitucional se reconhece uma “autoridade comparável à do caso julgado “ (extensível aos “fundamentos”); na R.F. Alemanha distingue-se a eficácia “erga omnes” do efeito de caso julgado (limitado ao “dispositivo” da decisão); já na Suíça se recusa o efeito de caso julgado material (ao que parece entendido de modo puramente “objectivo”) mesmo às decisões proferidas em controlo abstracto, e com eficácia “erga omnes”; e o mesmo acontece nos Relatórios espanhol e italiano, onde se questiona que a noção processual em causa convenha às decisões de controlo normativo.
b) Nalguns ordenamentos a eficácia “erga omnes” das decisões é qualificada como força de lei. Assim, na R.F.Alemanha (conforme disposição expressa da Lei do Tribunal Constitucional) e na Itália (de harmonia com a doutrina prevalecente, que reconhece às decisões de “acolhimento”, ainda quando puramente anulatórias, o valor de “fontes normativas”). E, de facto, este é um alcance que, pelo menos num sentido “negativo”, não poderá deixar de atribuir-se às decisões “cassatórias” da justiça constitucional (ao menos a essas).
c) Também nalguns ordenamentos se dispõe expressamente que as decisões do respectivo Tribunal Constitucional ou órgão equivalente são obrigatórias para todos os poderes públicos e autoridades ou entidades públicas (e privadas), ou para os restantes órgãos constitucionais do Estado e para todos os tribunais e autoridades administrativas: v., com formulações diversas, os Relatórios alemão, espanhol, português, francês e turco. Põe-se, assim, o problema duma peculiar força obrigatória geral de todas as decisões, para lá do específico efeito ou eficácia (“erga omnes”, caso julgado, efeito preclusivo) que deva reconhecer-se a cada uma espécie ou categoria delas em particular.
Saber em que precisamente consista esse outro tipo de eficácia das decisões dos Tribunais Constitucionais, e saber se ele na verdade se diferencia do efeito próprio de cada espécie de decisões, é algo que não parece fácil de determinar com segurança. No Relatório alemão refere-se que tal eficácia se estende não só ao “dispositivo” das decisões mas igualmente aos seus “fundamentos determinantes” (ratio decidendi). No Relatório espanhol (onde se consagra ao tema considerável desenvolvimento) reporta-se essa eficácia à “incidência institucional” das decisões do Tribunal sobre os restantes órgãos do Estado, e ao papel que aquele reivindica de definir “uma doutrina constitucional” (o que obviamente exige a consideração dos “fundamentos” das decisões). No fundo, estar-se-á perante uma qualificada força de precedente reconhecida às decisões dos Tribunais Constitucionais (bastante dubitativo a este respeito, todavia, é o Relatório português; entretanto, de uma “eficácia prejudicial” das decisões do Tribunal Federal se fala também no Relatório suíço).Um aspecto particular, mas especialmente importante, desta “eficácia obrigatória geral” das decisões dos Tribunais Constitucionais é o de saber em que medida ela atinge o próprio legislador (estarão em causa agora as decisões declatórias da inconstitucionalidade).
Também aqui se encontram respostas divergentes, nos Relatórios que consideram expressamente o ponto. Assim, enquanto no Relatório austríaco essa “vinculação” do legislador às decisões do Tribunal Constitucional é claramente negada (salvo o caso dum manifesto “abuso do poder legislativo” visando antecipadamente “frustar” essas decisões), afirmam-na, também claramente, o Relatório alemão (tal vinculação será justamente um dos aspectos da “força obrigatória geral” das decisões) e o Relatório italiano (a pura e simples reprodução, sem mais, duma norma declarada inconstitucional violará desde logo o princípio constitucional da eficácia “cassatória” das “decisões de acolhimento”). Por outro lado, na Constituição turca dispõe-se expressamente que as decisões do Tribunal Constitucional são obrigatórias desde logo para os órgãos legislativos, assinalando-se no respectivo Relatório, em consonância com isso, que elas têm o valor de “orientação para o Parlamento”.
Note-se, entretanto, que esta “vinculação” do legislador – onde seja reconhecida – não poderá deixar de ser entendida sob reserva duma modificação das circunstâncias (ou duma alteração global de todo o instituto ou do contexto normativo em causa, como se assinala no Relatório italiano), modificação essa susceptível de alterar o alcance da norma e a sua valoração constitucional (a este propósito, cfr. também os Relatórios espanhol e suíço).
3.3. Por último, no tocante à vinculação dos órgãos de justiça constitucional às suas próprias decisões, pode dizer-se que é unânime a orientação segundo a qual tais decisões não representam um precedente obrigatório para esses órgãos. A única “vinculação” que poderá aí ocorrer – e mesmo essa só é assinalada pelos Relatórios alemão e austríaco – é a decorrente do caso julgado. Fora disso, não se consideram os Tribunais Constitucionais adstritos a manter-se em absoluto fiéis à orientação uma vez por eles estabelecida, mas antes, sem excepção, admitem a possibilidade de “revisão” da doutrina firmada em decisões anteriores, à luz duma alteração das circunstâncias (sociais, económicas e técnicas), ou duma modificação do direito ordinário, ou de uma evolução da consciência ético-jurídica (geradora de novas representações de valores) ou à luz até, simplesmente, de uma reconsideração argumentativa.
Mas se isto é assim, deve dizer-se que é também unanimente assinalada a contenção e o particular cuidado com que os Tribunais Constitucionais e órgãos similares operam na revisão da sua orientação anterior. A verdade é que, na ordem dos factos, tal revisão não é encarada com facilidade e antes os “precedentes” representam um factor de primeira importância no desenvolvimento da jurisprudência constitucional, dentro, nomeadamente, duma assinalável preocupação de “coerência decisória”.
4. Eficácia temporal das decisões
Importa considerar o problema com referência às decisões de declaração da inconstitucionalidade com eficácia cassatória da norma, ou seja, às decisões de inconstitucionalidade proferidas em controlo sucessivo dotadas de eficácia erga omnes Trata-se de saber a partir de que momento a declaração de inconstitucionalidade opera a cessação da vigência da norma, e quais os efeitos que acarreta relativamente às situações criadas e aos actos jurídicos (maxime, actos administrativos e decisões judiciais) praticados ao abrigo da norma declarada inconstitucional. É por isso um problema que não se põe, nem no domínio do controlo normativo com eficácia limitada ao caso, nem no do controlo preventivo, nem tão-pouco relativamente às decisões, em controlo sucessivo, de sentido inverso ao da inconstitucionalidade, ainda que dotadas de um efeito declaratório geral ou preclusivo.
4.1. – 4.2. A questão fundamental é a de saber se a declaração de inconstitucionalidade opera com eficácia ex tunc (remontando os seus efeitos, pois, à data da entrada em vigor da norma, ou eventualmente, tratando-se de norma pré-constitucional, à data da entrada em vigor da Constituição) ou mera eficácia ex nunc (operando, pois somente a partir da publicação da decisão). No primeiro caso, a decisão de inconstitucionalidade produz um efeito de invalidação da norma; no segundo, um efeito puramente revogatório.
Os diversos ordenamentos não são coincidentes a esse respeito. Nalguns – como o austríaco, o suíço, o turco e o polaco – reconhece-se às decisões de inconstitucionalidade uma eficácia, em princípio, simplesmente ex nunc ou “revogatória”; mas na generalidade dos restantes reconhece-se-lhes, em princípio, eficácia ex tunc ou de “invalidação”. Em certos destes últimos ordenamentos, tal eficácia acha-se expressamente prevista na Constituição ou na lei (como na R.F. Alemanha ou em Portugal); já na Itália, nomeadamente, o seu reconhecimento foi objecto de um desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial, operado a partir duma formulação constitucional que apontava, prima facie, para um simples efeito “revogatório”. Por outro lado, no ordenamento espanhol, embora expressamente se determine que as decisões de inconstitucionalidade comportam a “declaração de nulidade” dos preceitos, subsistem interrogações quanto à caracterização do efeito de tais decisões.
Seja como for, decerto mais significativo e importante do que a precisa qualificação conceptual da eficácia das decisões de inconstitucionalidade é o facto de, em geral, não se ligarem a essa qualificação todas as suas consequências teoricamente possíveis – isso, no tocante à sorte das situações criadas e dos actos praticados ao abrigo da norma declarada inconstitucional. Na verdade, reconhece-se em geral que ocorrem exigências impreteríveis de justiça ou segurança jurídica as quais reclamam ou um alargamento da pura eficácia revogatória das decisões ou, sobretudo, a restrição dos seus potenciais efeitos “retroactivos”.
Assim, e no que toca aos ordenamentos onde em princípio se atribui à declaração de inconstitucionalidade mera eficácia ex nunc, cumpre dizer que na Áustria o efeito de tal declaração se estende, de todo o modo, ao caso concreto que deu origem ao controlo (ao Anlssfall, noção a que o Tribunal austríaco dá um sentido bastante amplo) e que o Tribunal Constitucional dispõe da faculdade (raramente utilizada, todavia) de decidir que a declaração de inconstitucionalidade produza um efeito mais radical; por seu turno, na Turquia , o efeito da inconstitucionalidade estende-se aos processos em curso e às sentenças penais desfavoráveis (mesmo transitadas).
Por outro lado, no que respeita aos ordenamentos onde vigora o princípio da eficácia ex tunc, um primeiro limite estabelecido a essa eficácia, quase sem excepções, é o do “caso julgado”, salvo de sentenças penais ou sancionatórias (baseadas numa norma penal desfavorável). Excepção a esta orientação ocorre na Bélgica, onde se admite um mecanismo de “retratação” de sentenças transitadas em julgado). Além disso, no mesmo plano das sentenças passadas em julgado tendem a considerar-se outras situações (“direitos adquiridos”, obrigações “cumpridas”) e actos definitivamente consolidados (v.g., pela prescrição ou decurso do prazo para recorrer). Note-se, no entanto, que na R.F. Alemanha e Jugoslávia a declaração de inconstitucionalidade faz precludir a possibilidade da execução de sentenças e actos já “consolidados” mas ainda não executados). Por outro lado, sublinhe-se ainda a orientação que acabou por prevalecer na jurisprudência italiana, no sentido de reconhecer mera eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade de normas penais “favoráveis”.
Mas não ficam por aqui os limites à eficácia, seja ex nunc, seja ex tunc, das decisões de inconstitucionalidade. Especialmente de assinalar é ainda o facto de nalguns ordenamentos se conferir expressamente aos respectivos Tribunais Constitucionais a faculdade de delimitarem, em certos termos, a eficácia temporal dessas decisões: assim, na Áustria, Liechtenstein, Bélgica e Portugal.
4.3. Nos ordenamentos em que se atribui às declarações de inconstitucionalidade, em princípio, simples eficácia ex nunc, poderá também dizer-se que as correspondentes decisões apenas surtem efeito pro futuro (com as limitações apontadas). O que a generalidade dos ordenamentos não prevê é a possibilidade de os Tribunais Constitucionais fixarem um prazo para a cessação da vigência das normas declaradas inconstitucionais.
Uma tal possibilidade, em todo o caso, é admitida – por disposição expressa – nos ordenamentos da Áustria, Liechtenstein e Turquia, enquanto o ordenamento belga confere ao Tribunal de Arbitragem poderes de modelação dos efeitos da decisão susceptíveis de conduzirem a um resultado equivalente (ainda que parcial). Nos demais ordenamentos considera-se em geral que semelhante possibilidade é excluída pela própria natureza do controlo de constitucionalidade e pelo respectivo regime constitucional e legal (assim também, segundo a doutrina dominante, em Portugal, não obstante os poderes de delimitação da eficácia das decisões de que dispõe o respectivo Tribunal).
Não obstante, as razões que poderiam eventualmente justificar um deferimento no tempo dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ( e que terão a ver, grosso modo, com a preocupação de evitar um “vazio legislativo” e as dificuldades jurídicas e institucionais a ele inerentes) não deixam de reflectir-se na prática de alguns Tribunais e nas “técnicas “ de decisões por eles adoptadas – “técnicas” através das quais se obtém um resultado semelhante. É esse o caso, particularmente, das decisões “apelativas” e de “mero reconhecimento da inconstitucionalidade” do Tribunal alemão. Mas na mesma linha se poderá ainda citar o expediente do protelamento da publicação da decisão, adoptado por vezes pelo Tribunal italiano.
4.4. Uma questão específica, que intimamente se liga ao problema da eficácia temporal das declarações “erga omnes” de inconstitucionalidade, é a de saber se elas importam a repristinação da norma ou regime revogado pela norma ou normas declaradas inconstitucionais.
A questão é directamente considerada nas Constituições austríaca e portuguesa, em ambas se estabelecendo a regra de que a declaração de inconstitucionalidade acarreta é reconhecida, porém, a faculdade de excluírem, no caso, esse efeito (na Áustria, conforme disposição constitucional expressa, sendo que tal faculdade é utilizada na maior parte dos casos; em Portugal, no quadro do poder geral de delimitação dos efeitos das decisões).
Também se referem ao ponto os Relatórios italianos, espanhol e turco, deles se podendo retirar a conclusão de que o problema em causa é nos respectivos ordenamentos um problema em aberto. Nos Relatórios italiano e turco dá-se entretanto nota de decisões em que os respectivos Tribunais consideraram verificar-se a repristinação, e acrescenta-se que a doutrina tende a admitir este efeito automático quando se esteja perante a declaração de inconstitucionalidade de uma cláusula revogatória expressa; no Relatório espanhol, assinala-se que a questão não pode considerar-se resolvida por aplicação da regra (legal) segundo a qual a “revogação” da lei não tem efeito repristinatório (porque se não está perante uma “revogação”, mas uma declaração de nulidade).
5. Os poderes dos órgãos da justiça constitucional na determinação do conteúdo e efeitos das suas decisões (síntese)
a) Pré-determinação constitucional e legal e autonomia dos Tribunais.
A conclusão que se pode extrair da precedente exposição comparada é a de que, se o âmbito dos poderes dos órgãos de justiça constitucional – maxime, dos Tribunais Constitucionais e órgãos similares – se encontra em larga e fundamental medida pré - definido pelas normas constitucionais e legais que dispõem em cada ordenamentos sobre o exercício dessa parcela da justiça não deixa a sua mais precisa delimitação e concretização de resultar também, em parte considerável, da jurisprudência desses mesmos órgãos, do entendimento que eles próprios têm da sua função, e da interpretação que fazem das pertinentes normas da Constituição e da lei. Em suma: pré-determinação constitucional e legal e autonomia dos Tribunais combinam-se aqui em medida mais ou menos variável.
Como ideia muito geral, poderá dizer-se que em matéria de competência dos Tribunais Constitucionais e dos meios processuais de acesso a tais instâncias vigora um estrito princípio de regulamentação constitucional e legal, não dispondo esses órgãos, nesse domínio, senão da margem de liberdade interpretativa inerente a toda a aplicação do direito. È assim que, nomeadamente, e quanto ao primeiro aspecto, o universo normativo sujeito ao seu controlo é o definido pela Constituição e pela lei; e é assim também, noutro plano, que os Tribunais Constitucionais europeus encaram a sua competência como de exercício obrigatório, insusceptível de ser afastado pelo recurso à conhecida doutrina americana da “polítical question” (v., quanto a este ponto, os Relatórios alemão e austríaco).
Também não fica aos Tribunais Constitucionais, por via de regra, determinar o tipo de eficácia das suas decisões, o seu grau de vinculatividade e os seus efeitos “ratione temporis”. Mas aí, não só já nalguns ordenamentos se abre margem para uma jurisprudência diferenciadora (v. o Relatório alemão), como, sobretudo, em vários deles se faculta expressamente a essas instâncias a possibilidade de modelarem os efeitos das decisões em termos diversos dos que se acham em princípio estabelecidos.
Domínio, porém, onde mais caracteriza e amplamente se manifestam a criatividade e a “autonomia” da jurisprudência constitucional é o do conteúdo das respectivas decisões. A esse respeito, bastará recordar a multiforme variedade e sucessiva gradação dos tipos “intermédios” de decisão oportunamente descritos, e sublinhar que todos eles foram (ou começaram por ser) obra de criação jurisprudencial.
b) O âmbito, os limites e o significado dos poderes dos órgãos de justiça constitucional:
b.1. – Face ao poder legislativo
É sabido que a função primacial dos órgãos de justiça constitucional – a de assegurarem a conformidade das leis com a Constituição – é também a mais árdua e delicada das suas tarefas. Pois que aí se defronta a legitimidade (jurídico-constitucionalmente fundada) do seu poder de controlo, e da sua competência para fixar em definitivo o sentido e alcance da Constituição, com a liberdade constitutiva do legislador, também ela constitucionalmente garantida e democraticamente legitimada. A tensão entre estas duas legitimidades é pois, necessariamente inevitável; como serão sempre difíceis de traçar, com antecipada precisão, as fronteiras entre uma e outra. Trata-se de um problema clássico – do problema clássico – da justiça constitucional e da sua dogmática .
Dessa “tensão” dão conta diversos Relatórios nacionais: uma tensão hoje “agravada” – como oportunamente se sublinha no Relatório suíço – pela intensificação e incremento da função orientadora e “dirigente” da lei, alargada ela como está, no contexto político-constitucional contemporâneo, a praticamente todos os domínios da vida social.
Essa “tensão” exprime-se privilegiadamente na problemática do “conteúdo” das decisões dos órgãos de justiça constitucional e, de modo muito particular, na relativa à admissibilidade e limites das “decisões intermédias”, a seu tempo analisadas. Considerando em especial as indicações fornecidas a tal respeito pelos diferentes Relatórios, poderão extrair-se as seguintes conclusões fundamentais :
– aos Tribunais Constitucionais cabe uma função essencialmente negativa e constitucionalmente vinculada, por natureza distinta da função “constitutiva” do legislador. Nesse quadro, porém cumpre-lhes o indeclinável dever de tornar efectivos e actuantes na ordem jurídica os princípios e valores constitucionais;
– desse carácter “negativo” da função decorre que a competência de controlo contencioso da constitucionalidade se encontra sujeita a certos limites funcionais, os quais podem reconduzir-se à ideia fundamental de que não cabe aos Tribunais Constitucionais proceder a valorações e escolhas “políticas”, nem tomar as correspondentes decisões. Neste sentido continua a ter validade a ideia segundo a qual a justiça constitucional não deve conduzir à instalação, mais ou menos encoberta, de um indesejável “governo de juízes”;
– os “limites funcionais” referidos, e a preocupação de preservar a liberdade constitutiva do legislador, estão na base da particular contenção revelada em certos tipos de decisões dos Tribunais Constitucionais (ou de alguns deles). Mas tão-pouco impedem que, com maior ou menor frequência, as decisões dos mesmos Tribunais venham a revestir-se de um alcance não estritamente “cassatório” e a induzir um efeito “modificador” da ordem jurídica: só que se trata aí de um efeito como que “indirecto”, produzido no quadro da “vinculação constitucional” do sistema jurídico, e não de uma autónoma “criação” de direito.b.2. Face aos tribunais em geral
Nos ordenamentos jurídicos-constitucionais onde o controlo da constitucionalidade não é (ou não é só) confiado aos tribunais em geral, mas é reservado (pelo menos em definitivo e na sua parte mais significativa) a um específico órgão jurisdicional, são igualmente inevitáveis as interferências entre o âmbito da competência e a actividade jurisprudencial de uns e de outro. Essas interferências ocorrem, basicamente, no âmbito do controlo concreto da constitucionalidade, e podem surgir, em particular, em sede de “relevância” da questão da constitucionalidade e de “interpretação em conformidade com a Constituição”.Do lado dos Tribunais Constitucionais, caber-lhes-à respeitar a esfera própria de actuação dos tribunais “comuns”, aos quais em primeira linha compete a interpretação e aplicação do direito ordinário. Mas cumpre-lhes, em compensação, definir os tópicos constitucionais dessa interpretação e aplicação, velando por que ela decorra em sintonia com os princípios e valores da lei fundamental. E, neste capítulo, pode dizer-se que em todos os ordenamentos é reconhecida à jurisprudência constitucional, e à correspondente “doutrina”, uma preeminência orientadora crescentemente respeitada e um incontestável relevo fáctico de “precedente”.
b.3. Face aos tribunais internacionais e supranacionais
No tocante ao “relacionamento” dos órgãos jurisdicionais internos de justiça constitucional com os tribunais internacionais ou supranacionasi, não são especialmente desenvolvidos – como bem se compreenderá – os diversos Relatórios nacionais.Na verdade, e tomando-se apenas em consideração o âmbito do direito internacional clássico, tratar-se-à de instâncias que operam em domínios jurídicos, e sobretudo institucionais, claramente diferenciados. Mas ainda aí não são teoricamente impossíveis as intercorrências e as divergências: bastará considerar a eventual competência dos Tribunais Constitucionais, seja para o controlo da constitucionalidade dos tratados internacionais, seja para o controlo da constitucionalidade da lei à luz, também, dos princípios do direito internacional geral, se não mesmo das regras do direito internacional convencional.
Mas passando do âmbito do direito internacional clássico para o moderno direito internacional dos “direitos do homem”, por um lado, e para o direito comunitário europeu, por outro, já se modifica qualitativamente o panorama das “relações” dos Tribunais Constitucionais internos com as instâncias contenciosas supranacionais situadas nas áreas em referência.
Assim, na área dos países subscritores ou aderentes à Convenção Europeia dos Direitos do Homem – e em particular aceitantes da cláusula de recurso directo à respectiva Comissão – não é de considerar excluída a possibilidade teórica de divergências jurisprudenciais entre os Tribunais internos e as instâncias de Estrasburgo, seja quanto ao entendimento e sentido de certos direitos fundamentais em concreto, seja mesmo quanto à interpretação das cláusulas da Convenção (isto, em particular, nos países onde a mesma tem o valor de direito interno, directamente aplicável: a esse respeito, v. as indicações contidas no Relatório da Comissão Europeia dos Direitos do Homem). Mas Trata-se, por agora, de uma eventualidade meramente “teórica”. Antes pode assinalar-se uma considerável influência da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu sobre vários Tribunais Constitucionais internos, em algum deles funcionando a própria Convenção como parâmetro de constitucionalidade (v., em particular, os Relatórios austríaco, suíço, turco).
Por sua vez, no que respeita aos países membros da Comunidade Económica Europeia, problemas muito específicos se põem aos respectivos órgãos de controlo da constitucionalidade no tocante à aplicação do “direito comunitário derivado”, e à sua inserção na ordem jurídica interna. Deles dão conta – e justamente das três questões fundamentais que nesse domínio se levantam – os Relatórios irlandês, alemão e italiano. Trata-se, em primeiro lugar, da questão suscitada pelo princípio estabelecido pelo art. 177º do Tratado da CEE (“ reenvio prejudicial” pelos tribunais internos, ao Tribunal de Justiça das Comunidades, da questão da interpretação do direito comunitário, e sua “obrigatoriedade” para os tribunais supremos); depois, e em ligação com isso, da questão do eventual controlo da constitucionalidade, pelos tribunais internos, do direito comunitário derivado; e, por fim, do problema da supremacia deste direito derivado sobre o direito interno, e da sua consideração ou não como “questão de constitucionalidade”, da competência, portanto, dos Tribunais Constitucionais.
As respostas – e são as únicas – que nos Relatórios mencionados se dão a estes três problemas são as seguintes: – o Supremo Tribunal irlandês considera-se vinculado à “obrigação” do “reenvio prejudicial” do art. 177º do Tratado da CEE; o Tribunal Constitucional alemão, tendo começado por admitir o controlo da constitucionalidade do direito derivado à luz dos direitos fundamentais, deixa hoje essa questão em aberto; o Tribunal Constitucional italiano, ao cabo de uma evolução jurisprudencial que conheceu diferentes etapas, considera hoje “inadmissível”, como questão constitucional, a do eventual confronto de normas internas com o direito comunitário derivado.