Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
VIIIª Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus
A Hierarquia das normas constitucionais e a sua função
na protecção dos direitos fundamentais
José Manuel Cardoso da Costa – Presidente
do Tribunal Constitucional, com a colaboração do Dr. J. Casalta
Nabais – Assessor do Gabinete do Presidente do Tribunal Constitucional
e Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra
[Ankara, Turquia, 7 a 9 de maio de 1990]
I - A função dos direitos fundamentais na jurisprudência dos Tribunais Constitucionais
1. Direitos do Homem - Direitos fundamentais - Direitos constitucionais
1.1 Segundo o artigo 1º da Constituição (Constituição da República Portuguesa, hoje vigente, aprovada em 1976 e revista em 1982 e 1989), “ Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. E o artigo 2º do mesmo diploma caracteriza por sua vez essa República como “um Estado de direito democrático baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas e no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, que tem por objectivo a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
Estes preceitos iniciais e emblemáticos da Constituição Portuguesa denunciam já o lugar central que nela ocupa o reconhecimento dos direitos fundamentais, enquanto um dos seus eixos estruturantes, e o significado de tais direitos enquanto expressão do estatuto jurídico-subjectivo básico e irredutível de cada homem, decorrente da sua mesma natureza e dignidade. Nisto - nesta recepção constitucional dos “direitos do homem” como “direitos fundamentais” - não segue a Constituição Portuguesa senão o trilho do constitucionalismo europeu-ocidental clássico; mas é inequívoco, logo por aí, que nessa recepção põe um especial empenho e acento.
Tal se revela, depois, no cuidado do legislador constituinte em elaborar um extenso catálogo de direitos fundamentais, o qual integra a Parte I da Constituição, justamente intitulada dos “ Direitos e deveres fundamentais”. Trata-se de um exaustivo catálogo de direitos, em que se recolhem os contributos, não só da tradição portuguesa anterior, como ainda de diplomas congéneres estrangeiros, e também de documentos internacionais sobre a matéria, em especial a Declaração Universal dos Direitos do homem. Mas trata-se, não obstante esse seu carácter exaustivo, de um catálogo aberto ( e que não se pretende, pois, positivisticamente acabado), já que a Constituição não deixa de ressalvar que os direitos nela consagrados “não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional” (artigo 16º, nº1) e, além disso, eleva a Declaração Universal dos Direitos do Homem a padrão interpretativo e integrador dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais (artigo 16º, nº 2). Importa sublinhar este ponto da “abertura” do catálogo, pois ele, não só denota um entendimento da categoria “direitos fundamentais” como algo de mais amplo do que a categoria “direitos constitucionais” (isto é, dos direitos formalmente consagrados no texto da Constituição), como implica uma caracterização “material” daquela primeira categoria - a qual parece só poder residir na “essencialidade” que a consciência jurídica colectiva atribua a determinados direitos, enquanto exigência da própria dignidade da pessoa.
Característica particularmente importante e distintiva do catálogo de direitos da Constituição portuguesa (no conspecto geral do direito constitucional comparado europeu) reside, porém, no facto de ele se não confinar ao enunciado dos clássicos direitos de liberdade e correspondentes garantias e dos direitos de participação política, mas desde logo destacar, ao lado daqueles, os “direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”, e sobretudo incluir, para além dos direitos económicos, sociais e culturais (como o direito ao trabalho, o direito à segurança social, o direito à saúde, o direito à habitação, o direito à educação e ao ensino, etc.). Vai aqui a clara superação duma concepção puramente liberal - individualista dos direitos fundamentais, substituída por uma outra que inequivocamente assume também a dimensão “social” desses direitos (em consonância, naturalmente, com os grandes valores e princípios de ordenação do Estado e da sua acção, proclamados nas já transcritas disposições iniciais da Constituição). Não se quer, em suma, afirmar e garantir apenas a liberdade em abstracto, mas igualmente assegurar a todos e cada um os meios que lhes possibilitem afirmá-la e exprimi-la plenamente em concreto: por isso (por essa possibilidade de concreta efectivação) há-de ser a comunidade - e logo o Estado - também responsável, e a isso, portanto, tem também “direito” cada pessoa.
Importa advertir, todavia, para que a Constituição - se bem que a todos reconhecendo a dignidade de “direitos fundamentais” - não coloca exactamente no mesmo plano os direitos de liberdade e de participação, por um lado, e os direitos “sociais”, por outro. Isso é logo visível na circunstância de ela os agrupar e distribuir por dois títulos diferentes da sua Parte I, subordinados respectiva e justamente às epígrafes “direitos, liberdades e garantias” (Título II) e “ direitos e deveres económicos, sociais e culturais” (Título III). Mais importante, porém, do que esta circunstância externa (mas não acidental) da sua arrumação sistemática, é o facto de não ser idêntica a eficácia jurídica reconhecida pela Constituição a uns e outros desses direitos: é que, nos termos do artigo 18º, nº 1, da lei fundamental, só os preceitos constitucionais respeitantes aos “direitos, liberdades e garantias” (e direitos fundamentais de natureza análoga) são directamente aplicáveis. Quer isto dizer, basicamente (e prescindindo de algumas diferenciações ou nuances que a natureza do presente relatório não comporta), que tais direitos vêem o seu conteúdo e extensão determinados ao próprio nível constitucional, e de tal modo que cabe aos operadores jurídicos ( seja a Administração, sejam os tribunais) aplicá-los, ainda que não haja lei que os concretize; e que, pelo contrário, já os direitos “sociais” ficam dependentes, na sua exacta configuração e dimensão, de uma ulterior intervenção legislativa, concretizadora e conformadora, só então adquirindo plena eficácia e exequibilidade.
Não cabe aqui justificar desenvolvidamente esta diversidade do regime dos direitos - a qual tem a ver, por um lado, com a sua diferente estrutura e conteúdo e, por outro, com exigências do princípio da divisão de poderes. O que importa sobretudo sublinhar é que dessa diversidade de tratamento constitucional decorre evidentemente uma importante consequência no tocante ao tipo, extensão e grau ou intensidade de vinculação com que uns e outros direitos são susceptíveis de operar ao nível da justiça constitucional: tal será referido mais adiante (infra 1.3.).
1.2. Outro aspecto da específica força jurídica dos “direitos, liberdades e garantias”, no conjunto dos direitos fundamentais, está em que justamente aqueles representam um dos limites materiais estabelecidos pelo artigo 288º da Constituição [alínea d) e, ainda, alínea e)] à revisão constitucional. Não pode, pois, o legislador da revisão pôr em causa tais direitos, eliminando-os do catálogo constitucional, ou reduzindo-lhes o seu conteúdo e âmbito de protecção ao menos naquilo que é essencial.
Ao estabelecer expressamente um tal limite ao poder de revisão, torna a própria Constituição claro que os “direitos, liberdades e garantias” - esse núcleo originário e tradicional dos “direitos fundamentais” ou dos “direitos do homem”, mais imediata ou directamente o “núcleo duro” da Constituição, isto é, aquele núcleo essencial de princípios e valores em que assenta a própria identidade do diploma constitucional, e que a este conferem unidade de sentido.
1.3. Situando-se no reconhecimento dos direitos fundamentais, e em particular dos “direitos, liberdades e garantias”, um dos eixos estruturantes da Constituição, não podiam eles deixar de ocupar um lugar primordial e particularmente significativo na jurisprudência do Tribunal Constitucional português [2]
a) A tal respeito, deve salientar-se desde logo, porém, que o direito português não conhece nenhum mecanismo processual específico de garantia, pelo Tribunal Constitucional, dos direitos fundamentais - e nomeadamente dos clássicos direitos de liberdade e de participação política - do tipo do instituto da Verfassungs-beschwerd, dos direitos alemão, austríaco e suíço, ou do instituto do “recurso de amparo”, do direito espanhol. A intervenção do Tribunal Constitucional nesse domínio será, assim, a que pode ocorrer no quadro do exercício de outras suas competências e, muito em especial, da de controlo da constitucionalidade das leis e demais normas jurídicas. Significa isto que a garantia pelo Tribunal Constitucional português dos direitos fundamentais - e prescindindo aqui da relativa aos direitos de participação eleitoral, a que o Tribunal pode ser chamado no exercício das suas várias competências contenciosas nessa área - respeitará basicamente à observância desses direitos pelo legislador (lato sensu), operando, pois, ao nível das leis e regulamentos (ou ainda, eventualmente, de outros actos normativos públicos) e traduzindo-se, em primeira linha, na negação de eficácia a normas desses diplomas infraconstitucionais que contrariem os mesmos direitos.
Admitindo a Constituição portuguesa (artigo 278º e seguintes) tanto o controlo abstracto como o controlo concreto da constitucionalidade, no âmbito de qualquer deles se abre ao Tribunal Constitucional oportunidade para aplicar os princípios e preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais e para assegurar, assim, o respeito e a efectivação dos mesmos direitos. Particular importância, do ponto de vista de uma garantia directa dos cidadãos, assume aqui, no entanto, o controlo normativo concreto, ou seja, aqueles que é levado a cabo no contexto dum pleito ou controvérsia jurídica submetida a decisão judicial: é que - tal como sucede noutros ordenamentos - o direito português não confere aos cidadãos em geral a possibilidade de desencadearem o controlo abstracto duma norma jurídica pelo Tribunal Constitucional, reservando a legitimidade para tanto a certas entidades públicas (as referidas nos artigos 278º e 281º da Constituição); mas já precisamente lhes concede a possibilidade de perante qualquer tribunal (os quais dispõem, em Portugal, duma competência genérica de judicial review, nos termos do artigo 207º da Constituição) impugnarem a constitucionalidade de uma qualquer norma, por violação de um seu direito fundamental, o que dará, ou poderá dar lugar, em seguida, a uma decisão final do Tribunal Constitucional, em via de recurso (seja recursos obrigatório, no caso de a decisão judicial anterior ser no sentido da inconstitucionalidade da norma legal impugnada, seja recurso do interessado, uma vez esgotados os recursos ordinários, quando aquele tenha visto desatendida pelo tribunal da causa a impugnação da norma - tudo conforme o previsto no artigo 280º da Constituição e nos artigos 70º a 72º da Lei Tribunal Constitucional).
b) Dito isto, sobre as condições processuais que balizam as possibilidades de intervenção do Tribunal Constitucional português na protecção e garantia dos direitos fundamentais cumpre assinalar, de seguida, que o controlo normativo, pelo Tribunal Constitucional, em sede de direitos fundamentais, está longe de poder operar, relativamente a todos eles, com a mesma extensão e o mesmo grau de intensidade: tal decorre da diferente eficácia reconhecida aos preceitos constitucionais relativos aos “direitos, liberdades e garantias” (e direitos análogos), por um lado, e aos direitos “sociais”, por outro, a que já se aludiu (supra, 1.2.).
Trata-se, na verdade, de dois tipos diversos de preceitos constitucionais. Os preceitos relativos aos “direitos, liberdades e garantias”, vendo reconhecida expressamente pela Constituição a sua “aplicabilidade directa”, revestem-se, logo ao nível constitucional, de uma especial densidade de conteúdo e de imediata eficácia dispositiva - o que obviamente legitima a possibilidade (e o dever) de um controlo judicial extenso e verdadeiramente “intrínseco”, mormente pelo Tribunal Constitucional, sobre as normas legais que concretizem ou regulem o exercício dos correspondentes direitos ou, de todo o modo, com eles interfiram. É este, pois, um campo onde - dito por outras palavras [3] - plena e privilegiadamente cabe uma “ concretização jurídico-interpretativa” da Constituição, de índole judicial: permite-a a sedimentada tradição cultural subjacente aos direitos em causa, a qual fornece ao juiz uma suficiente base heterónoma e objectiva de decisão.
Já, diferentemente, os preceitos relativos aos direitos “sociais”, sem deverem reduzir-se a simples proposições “programáticas” ou proclamatórias, de qualquer maneira não ostentam ao nível constitucional a mesma densidade de conteúdo, nem idêntica eficácia, antes se perfilando, em primeira linha, como normas impositivas de legislação - ou seja, preceitos que, definindo uma incumbência do legislador, também lhe cometem primariamente o encargo da concretização e conformação precisa dos direitos em causa, deixando-lhe para tanto a necessário e inerente margem de “liberdade constitutiva”. Ora, é bom de ver que neste outro domínio - domínio, por excelência, de uma “concretização jurídico-política” da Constituição - já há-de ser bastante mais reduzido o espaço para uma intervenção judicial, em particular do Tribunal Constitucional, de controlo das normas legais concretizadoras dos correspondentes direito. Certamente que se requer aí do Tribunal Constitucional um máximo de contenção, e que só em casos muito contados ou extremos poderá e deverá ele emitir um juízo negativo de constitucionalidade sobre aquelas normas - sob pena de, de outro modo, o Tribunal invadir a função própria do legislador e se sobrepor, indevidamente, às opções (políticas) por este legitimamente tomadas.
Resulta de quando vem de dizer-se que é essencialmente no domínio dos “direitos, liberdades e garantias” que a acção controladora e de garantia dos direitos fundamentais pelo Tribunal Constitucional pode fazer-se sentir. E tal tarefa tem-na ele desempenhado com frequência, sendo já significativo o acervo das suas espécies jurisprudências relativas a tal matéria.
Quanto aos direitos “sociais”, o Tribunal, até agora, apenas num único caso emitiu um juízo de inconstitucionalidade sobre normas legais, com fundamento em violação dum desses direitos, ou melhor, duma incumbência constitucional, posta ao legislador, para a sua concretização: tratou-se do caso versado no acórdão nº 39/84, em que estava em causa legislação governamental extinguindo um serviço - o Serviço Nacional de Saúde - cuja instituição é prevista pela Constituição como instrumento de realização do direito à protecção da saúde (artigo 64º).
Ainda quanto aos direitos “sociais”, todavia, cumpre acrescentar uma outra nota. Tem ela a ver com o facto de a Constituição portuguesa (artigo 283º) prever, ao lado do controlo da constitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais - controlo esse a cargo, também, do Tribunal Constitucional. Ora, atenta a natureza (acima descrita) dos preceitos da Constituição relativos a tais direitos, não é de excluir a possibilidade de também quanto à execução deles vir a suscitar-se essa outra modalidade de controlo constitucional. A hipótese, porém, não só nunca foi posta ao Tribunal, como, vindo a sê-lo, sempre seria muito problemática a verificação (positiva) da ocorrência de omissão legislativa (atenta a cautela que se impõe, e a que o Tribunal tem sido sensível, na identificação e delimitação dessas situações, conjugada com o facto de que sempre se estaria aí perante uma omissão “relativa”, dado o nível de realização legal dos direitos sociais, já hoje atingido em Portugal).
2. Interpretação, materialização e criação de direitos
Em vista do que acaba de referir-se - sobre a diferente operatividade dos preceitos da Constituição relativos aos “direitos, liberdades e garantias” e aos “direitos sociais” - são aqueles primeiros direitos que basicamente cabe agora considerar.
2.1. Ora, se bem que a Constituição pressuponha, quanto a tais direitos, que o respectivo conteúdo e extensão se encontram nela mesmo definidos, não deixa a sua “materialização” de exigir dos operadores jurídicos, em particular do Tribunal Constitucional, uma mais ou menos ampla e delicada actividade interpretativa dos correspondentes preceitos constitucionais. E isso tanto mais quanto estes últimos não raro utilizam conceitos consideravelmente indeterminados e se limitam a enunciar um “princípio”, antes que uma “norma” tecnicamente acabada. Em razão desta última circunstância, pode mesmo dizer-se - como a doutrina vem acentuando - que é verdadeiramente de uma operação de “concretização”, e não só de “pura” interpretação, dos preceitos constitucionais, que aí se trata.
No tocante às “técnicas” - que é como quem diz, ao percurso metódico e deôntico - observadas nessa concretização pelo Tribunal Constitucional, duas notas, porventura, deverão destacar-se. A primeira será a de que, mesmo neste domínio dos direitos “imediatamente aplicáveis”, não tem o Tribunal deixado de reconhecer o espaço que eles ainda concedem à liberdade constitutiva” do legislador, com o consequente respeito pelas “opções legislativas que entende caberem dentro dessa “liberdade” (como exemplos, podem citar-se o acórdão nº 25/84, sobre a despenalização do aborto em certos casos, e o acórdão nº 76/85, sobre a reserva da propriedade de farmácias a farmacêuticos diplomados - decisões, todavia, controvertidas, e que não lograram obter a unanimidade do Tribunal). A outra nota a merecer destaque será relativa à utilização corrente, pelo Tribunal, da noção ou categoria dos limites imanentes dos direitos para definir o respectivo âmbito de protecção: tal, porém, é algo que já tem a ver com a problemática dos “conflitos”, a versar adiante (infra, 3.).
2.2. Se a tarefa de materialização” dos direitos fundamentais reclama já, em geral, uma operação “concretizadora” por parte do Tribunal Constitucional, não deixa ela de assumir, nalguns casos, uma feição ainda mais abertamente “criativa”. Não, decerto, no sentido de que o Tribunal detenha legitimidade para originariamente “inventar” novos direitos, ou “optar” pela sua consagração; mas no de que lhe cabe privilegiadamente “revelá-los” ou “explicitá-los”, num processo de Rechtsfindung (ou de “descoberta” do direito) que excede seguramente os quadros duma simples “interpretação”, no sentido tradicional do termo.
Isto é assim, desde logo, em vista do carácter “aberto” do catálogo constitucional dos direitos, o qual leva necessariamente subjacente ou pressuposto um critério “material” daqueles (supra 1.1): caberá ao Tribunal Constitucional, em último termo, identificar esses direitos fundamentais fora do catálogo, por recurso ao mencionado critério material, e nomeadamente reconhecer essa qualidade a direitos de fonte puramente legal.
Exemplo flagrante é o do reconhecimento como tal do direito à motivação dos actos administrativos desfavoráveis (ao tempo apenas expressamente consagrado na lei), operado nos acórdãos nºs 109/85, 190/85, e 78/86, da 1ª Secção (mas contestado pela outra Secção, e não acolhido pelo Plenário do Tribunal, no acórdão nº 266/87.
Outro tipo de jurisprudência “criativa” do Tribunal Constitucional, em sede de “direitos, liberdades e garantias”, é a dos casos em que o Tribunal retira da consagração constitucional expressa de um direito, e como necessária consequência ou implicação deste, o reconhecimento de outro ou outros direitos. Trata-se agora de um caminho metódico mais frequente - mas que não deixa de ter atinências com o primeiro indicado. Como exemplos mais significativos citem-se: o do reconhecimento do direito a um segundo grau de jurisdição (direito ao recurso) em processo penal (ao menos quando esteja em causa a restrição da liberdade, ou outro direito fundamental do interessado), que o Tribunal tem feito derivar do princípio constitucional (artigo 32º) das garantias de defesa do arguido (v., entre outros, acórdão nº 31/87); o do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, que o Tribunal extraiu, como seu corolário, do direito “à identidade pessoal” e do direito à “integridade moral” das pessoas, consagrados nos artigos 26º, nº 1 e 25º nº 1, da Constituição (v. acórdão nº 99/88); e ainda, porventura, o do direito da pessoa a opor-se, por razões de consciência, à utilização do seu próprio cadáver (v.g., para o fim de transplantes de órgãos), que o Tribunal não deixou de reconhecer no acórdão nº 130/88, seja retirando-o do dito direito à “integridade moral”, seja imputando-o directamente a uma exigência da ideia de Estado de direito.
3. Conflitos de direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e outras normas de valor constitucional
Aspecto particularmente relevante da “materialização” ou “concretização” judicial dos direitos fundamentais é, naturalmente, o que tem a ver com a resolução ou superação dos conflitos que eles inevitavelmente suscitam entre si, ou com outros valores constitucionais. Esta é uma tarefa assumida ordinariamente pelo legislador, mediante a emissão de normas que, prevenindo situações típicas de conflito, antecipadamente as submetem a uma certa disciplina genérica. Só que, sendo tais normas - como é uma óbvia decorrência da própria natureza conflitual dessas situações - necessariamente delimitadoras, condicionadoras ou restritivas dos direitos, a questão do seu controlo judicial põe-se com especial acuidade e assume particular importância.
Ora, a tal propósito há que referir, antes de mais, os limites que a própria Constituição estabelece à emissão de leis restritivas de direitos e os critérios gerais que simultaneamente fornece para o respectivo controlo. Constam eles dos nºs 2 e 3 do artigo 18º, que dispõem o seguinte: “ a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (nº 2); “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caracter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactiva nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” (nº3).
Deste enunciado parece resultar, desde logo, que não há que distinguir, no direito constitucional português, entre as situações de conflito de direitos e aquelas outras em que determinado direito conflitua com uma norma ou valor constitucional de diversa índole: a Constituição, admitindo que tanto “direitos” como simples “interesses” constitucionalmente protegidos possam justificar uma restrição, coloca aparentemente os dois tipos de situações no mesmo plano, e sujeita-as ao mesmo regime. Ponto é que - e é um ponto decisivo - em qualquer dos casos ela autorize “expressamente” a restrição. O Tribunal Constitucional, no entanto, vem entendendo esta condição - que sublinha o carácter sempre excepcional da restrição - com uma certa maleabilidade, aceitando que a previsão ou autorização da restrição resulte “expressa”, mas apenas “indirectamente”, da Constituição: assim, nos acórdãos nºs 225/85 e 244/85 (em que o Tribunal concluiu, a partir da previsão constitucional de inelegibilidades para o Parlamento, pela admissibilidade de inelegibilidades para os órgãos das autarquias locais) e no acórdão nº 7/87 (em que o Tribunal concluiu, a partir da previsão constitucional da prisão preventiva, pela constitucionalidade do instituto da detenção para identificação, previsto no Código de Processo Penal.)
De entre os critérios com que o Tribunal há-de operar - de harmonia com as disposições constitucionais transcritas - para apreciar a legitimidade da restrição (e, portanto, da solução legal dada ao conflito) avulta em importância o do princípio da proporcionalidade, na sua tripla vertente (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito): ele vai afirmado, não apenas na exigência expressa de que as restrições “se limitem ao necessário” para o objectivo de protecção visado, mas ainda na de que elas hão-de em qualquer caso deixar intocado o “conteúdo essencial” do preceito constitucional relativo ao direito restringido. Mediante este princípio logrará estabelecer-se uma “concordância prática” entre os direitos em conflito - sendo precisamente nessa sua concordância possível, antes que numa sua apriorística “hierarquização”, que (como a doutrina vem acentuando) haverá de resolver-se tal conflito. Tratando-se de um princípio estruturalmente “aberto”, que reclama inevitavelmente um juízo de avaliação por parte do respectivo operador, o manejo do princípio da proporcionalidade (muito à semelhança do que sucede com o princípio da igualdade, p.ex.) apresenta-se, em sede de controlo judicial de opções legislativas, como uma tarefa particularmente delicada, atentos os “limites funcionais” que aquele controlo deve respeitar (cfr. supra, 2.1., sobre a “ liberdade constitutiva” do legislador). Seja como for, não tem o Tribunal Constitucional português deixado de aplicar esse princípio com alguma frequência (cfr., p.ex., acórdãos nºs 225/85 e 244/85, há pouco referidos) e nem mesmo deixado de extrair da violação dele a consequência da inconstitucionalidade de certas soluções legais (cfr. acórdão nºs 282/86 e 103/87).
Como emerge do que a Constituição dispõe sobre leis restritivas de direitos, liberdades ou garantias, a emissão de tais diplomas encontra-se sujeita a um apertado condicionalismo. A doutrina tem chamado a atenção, todavia, para o facto de tal condicionalismo (mormente a exigência de uma autorização constitucional “expressa”) já não valer para normas simplesmente “regulamentadoras” do exercício dos direitos, ou meramente concretizadoras dos seus “limites imanentes” (neste último caso, estar-se-á perante a pura explicitação do âmbito de protecção do direito, tal como ele já resulta, expressa ou implicitamente da Constituição, pelo que a situação de conflito que essas normas vêm eventualmente resolver não é senão “aparente”). O Tribunal Constitucional tem acolhido estas distinções doutrinais e, nomeadamente, aceite (como já se disse: supra, 2.1), ainda que nem sempre e o nomine, a noção de “limites imanentes” (mesmo implícitos) dos direitos: v., quanto a estes, acórdãos nºs 11/83 e 66/84 (no qual se considera a sujeição aos impostos justamente como um “limite”, e não uma “restrição”, ao direito de propriedade, com a consequência da não exclusão a priori da possibilidade de leis tributárias retroactivas), 81/84, 236/86 e 103/87; e, quanto à distinção entre “restrição” e “regulamentação”, acórdão nº 99/88 [4] .
II. A hierarquia das normas constitucionais
1. Normas constitucionais
Num ordenamento jurídico com Constituição escrita, como é o caso português (e, de resto, a generalidade dos casos), normas “constitucionais” serão, antes de mais, ou em primeira linha, as que integram formalmente o respectivo texto ou documento constitucional. Mas resta saber se aí se esgota o conteúdo ou âmbito material da Constituição ou se não deve antes entender-se que nesse âmbito se inclui ainda um conjunto, mais ou menos extenso, de normas ou princípios não escritos naquele texto. Tal questão, todavia, não parece assumir, no caso português, a mesma relevância que pode apresentar noutros ordenamentos.
Decerto não é a Constituição entendida, em Portugal, num sentido puramente “legalista” “como um corpus normativo positivisticamente “fechado” e tecnicamente acabado), mas antes objecto de um outro entendimento, mais compreensivo e global: de acordo com ele, o corpus constitucional é integrado, não apenas por “normas” (no sentido dogmático mais preciso da expressão), sejam organizatórias e procedimentais, sejam materiais, mas também por “princípios”, quer princípios de conformação política e social, quer, desde logo, princípios jurídicos fundamentais (Rechtsgrundsätze), e outros deles derivados. Isto – pelo menos – é reconhecido generalizadamente pela doutrina [5] e corresponde, de resto, à tradição do constitucionalismo português, como já se chamou a atenção [6].
Só que o texto constitucional português está longe de assumir um cunho puramente “organizatório”, e antes igualmente compreende uma desenvolvida parte “material”, a qual, a par do catálogo dos “direitos” (extenso e exaustivo, como se sublinhou: supra I,1.1), inclui logo o enunciado expresso de um conjunto de “princípios fundamentais” e ainda uma alargada formulação de princípios e objectivos programáticos (no campo social e económico). Integrando já tudo isso, pois, o direito constitucional “escrito”, compreende-se que no caso português se faça sentir menos intensamente a necessidade do apelo a princípios materialmente constitucionais “não escritos”.
Seja como for, não deixa de admitir-se que entre os princípios da Constituição há que contar, não apenas os explicitamente recebidos no respectivo texto, mas ainda os que nele vão “implícitos” [7] – o que leva necessariamente a reconhecer ao Tribunal Constitucional, em particular, uma certa margem para a “explicitação” desses últimos princípios (como exemplo de “derivação” de princípios por essa instância, v. já supra, I, 2.2.).
Por outro lado, o facto de a Constituição (artigo 16º, nº1) admitir a existência de direitos fundamentais legais (cfr. supra, I, 1.1. e 2.2.) e de dispor (artigo 17º) que “o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplica (...) aos direitos fundamentais de natureza análoga” suscita o problema de saber se aqueles direitos não recebem, ao fim e ao cabo, um estatuto “constitucional”. A questão foi debatida em vários acórdãos do Tribunal Constitucional (v., além dos já citados acórdãos nºs 109/85, 190/85, 78/86 e 266/87, ainda os acórdãos nºs 150/85 e 174/87), acabando por prevalecer (no acórdão nº 266/87) um entendimento negativo a esse respeito (recte, o entendimento de que a tais direitos só é aplicável parte do regime dos direitos, liberdades e garantias); atenta, porém a discrepância que se verificou nas mencionadas decisões (e também a discrepância doutrinal sobre o ponto), bem poderá dizer que se trata duma questão que continua em aberto.
2. Hierarquia substancial e formal de normas constitucionais
2.1. O problema duma hierarquia formal das normas constitucionais – isto é, de uma relação de supra e infra-ordenação dessas normas, consoante a sua origem última – não é desconhecido da doutrina portuguesa. Não sendo o caso de a Constituição, ela própria, estabelecer aí alguma distinção (já que a nenhuma das suas normas retira expressamente valor “constitucional”) trata-se de saber – na mais radical dimensão desse problema – se não deve reconhecer-se a determinados princípios jurídicos fundamentais, recolhidos explicitamente ou não do documento constitucional, e em razão dessa sua fundamentalidade, um valor superior ao das restantes normas (ou princípios) contidos nesse documento. E isto em tais termos que se poderia mesmo vir a concluir pela “inconstitucionalidade” destas outras normas ou princípios, quando eles contrariassem os primeiros (normas constitucionais inconstitucionais).
Se não falta quem admita pôr assim mesmo a questão [8] , deve dizer-se, porém, que uma parte significativa da doutrina recusa colocá-la nesses termos, e afasta decididamente a noção de “normas constitucionais inconstitucionais” [9] . Trata-se, de resto, no contexto de uma Constituição democrática, mais de uma questão teórica (mas, nesse plano, fundamental), do que prática, já que este seu último relevo só em situações absolutamente excepcionais e extremas se suscitará.
Seja como for – e isto é o que mais importa referir aqui – a noção de uma hierarquia “formal” de normas da Constituição não desempenhou até agora qualquer papel na jurisprudência do Tribunal Constitucional. É certo que a questão da inconstitucionalidade de normas da Constituição já chegou a ser-lhe posta; mas no único caso em que tal aconteceu, e em que se impugnava a norma da Constituição portuguesa que proíbe o lock-out, o Tribunal, sem tomar uma posição geral sobre o problema, afastou liminarmente o seu cabimento na hipótese (acórdão nº 480/89).
2.2. Coisa diferente de uma eventual relação de supra e infra-ordenação de normas constitucionais será o especial grau de protecção e garantia ou a especial eficácia jurídica de que a Constituição revista certas das suas normas. Se se entender falar aí de hierarquia, será já num sentido bastante diferente do antes considerado – no sentido, porventura, e justamente, duma hierarquia substancial.
Assim, no conjunto das normas e princípios constitucionais, destacar-se-ão, antes de todos, aqueles que integram os “limites materiais da revisão” da Constituição, e representam assim o seu núcleo essencial – aquele em que assenta a sua identidade e unidade de sentido. Tais limites constam do artigo 288º da Constituição portuguesa, e entre eles se contam (a par de princípios fundamentais relativos à estrutura e organização do estado, à natureza do regime político e outros) os “direitos, liberdades e garantias” (como se disse supra, I, 1.2.).
Mas não é este o único exemplo da atribuição ou reconhecimento de um estatuto privilegiado a determinados preceitos constitucionais. Outro será, depois, o que se traduz na “aplicabilidade directa” dos preceitos relativos aos “direitos, liberdades e garantias” (por contraposição aos direitos “sociais”) – ponto que já anteriormente foi versado (supra, I, 1.1. e 1.3.). E ainda outro exemplo – agora dentro já dos próprio “ direitos, liberdades e garantias” – será, por último, o que respeita àquele núcleo mais radical de direitos “pessoais” ( o direito à vida, os direitos à integridade pessoal, identidade e cidadania, a liberdade de consciência e religião, a não retroactividade da lei penal e o direito de defesa) que mesmo no caso de estado de sítio ou de emergência não podem ser afectados (artigo 19º, nº 6).
3. Hierarquia entre as normas constitucionais, as normas internacionais e as normas supranacionais
3.1. Nos termos do artigo 8º da Constituição, “as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português” (nº 1); e “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado português” (nº2).
A estas cláusulas gerais de recepção automática das normas de direito internacional in foro domestico vem parte significativa da doutrina portuguesa, ao que se crê dominante, ligando a conclusão da supremacia do direito internacional recebido sobre as normas legais internas, mesmo posteriores, mas não da primazia dele sobre os princípios e normas da Constituição [10].
Do princípio da recepção automática das convenções internacionais ratificadas pelo estado português resulta já, sem mais, a possibilidade da aplicação directa, pelos tribunais portugueses, daquelas dessas convenções que sejam relativas aos direitos fundamentais ou direitos do homem – como será o caso, em particular, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E aceite o mencionado posicionamento das normas de direito internacional convencional na hierarquia normativa – como o foi, expressamente, em numerosa jurisprudência da 1ª Secção do Tribunal Constitucional: v., por último, acórdãos nºs 303/89 e 424/89 –, logo por aí tal aplicação poderá e deverá mesmo fazer-se com prejuízo da de normas legais internas que as contrariem (assim, o acórdão nº 219/89, ainda da 1ª Secção).
Resta saber, porém , se às convenções sobre direitos do homem, de que Portugal é parte, não deverá reconhecer-se inclusivamente um estatuto (hierárquico) privilegiado, atenta a específica recepção ou reconhecimento que a Constituição faz, no artigo 16º, nº1, dos direitos nelas consagrados (supra, I, 1.1.). Trata-se de saber – é um problema paralelo ao já referido quanto aos direitos fundamentais “legais” (supra, II, 1.), se bem que possa não ter resposta idêntica – se às normas dessas convenções é de atribuir, ao fim e ao cabo, natureza “constitucional”, ou se, pelo menos, as mesmas não devem ser aceites como padrão autónomo e directo para um juízo de constitucionalidade sobre as normas legais internas. A questão – cuja importância terá sobretudo a ver com o reconhecimento de uma competência “plena” do Tribunal Constitucional para aplicar as convenções em causa – já foi abordada num acórdão da 2ª Secção desse Tribunal (acórdão nº 99/88), mas não chegou então a receber resposta. O que o Tribunal aí reconheceu, foi o relevo desses instrumentos internacionais pelo menos enquanto elemento coadjuvante e clarificador da interpretação dos preceitos da Constituição relativos aos direitos fundamentais.
3.2. Se na Jurisprudência do Tribunal Constitucional não deixam de encontrar-se referências (como acabou de ver-se) ao posicionamento hierárquico das normas de direito internacional recebido in foro domestico, já o mesmo não poderá dizer-se no que toca a normas supranacionais – e nomeadamente às normas de “direito derivado” das Comunidades Europeias. No respeitante à recepção de direito comunitário, o Tribunal apenas teve ocasião, até agora, de firmar o princípio segundo o qual é ao direito constitucional interno que cabe dispor sobre a competência para a emissão e sobre a forma de que devem revestir-se as normas internas necessárias à execução daquele outro direito (acórdão nº 184/89).
Todavia, a Constituição também estabelece uma cláusula de recepção automática das normas supranacionais desse tipo, já que dispõe, no artigo 8º, nº 3, que “as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos”. E a esta cláusula não deixa a mesma doutrina a que antes se fez referência de ligar a primazia de tais normas sobre a lei interna, mas não sobre as normas constitucionais [11] .
Dada a natureza do direito comunitário derivado, não se vê facilmente, todavia, que caiba ou venha a pôr-se o problema do seu eventual relevo enquanto instrumento de garantia dos direitos fundamentais. Maior cabimento poderá vir a ter o problema inverso – ou seja, o da compatibilidade das normas desse direito com os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Como resulta do que começou por dizer-se, é esta, porém, uma questão que não foi até agora objecto de tratamento na jurisprudência constitucional portuguesa.
3.3. Quanto, por último, à hierarquia entre normas internacionais e normas supranacionais, tão-pouco ela foi abordada alguma vez nessa jurisprudência.
Mas o problema não deixou já de encontrar eco na doutrina – com referência, precisamente, às normas recebidas in foro domestico ao abrigo do citado artigo 8º, nº 3, da Constituição. Opina a tal respeito Afonso Queiró – continuando, aliás, a qualificar essas normas como “de direito internacional” – que entre elas e as restantes normas internacionais não há escalonamento hierárquico: o que acontece é que as primeiras são direito internacional especial, que, a esse título, e não por virtude de um princípio de hierarquia, prevalecem sobre o “direito internacional geral” [12].
III. A função da hierarquia das normas constitucionais na protecção dos direitos fundamentais
1. A função protectiva da hierarquia das normas constitucionais internas
1.1. As normas e princípios constitucionais escritos – e entre eles, portanto, também os respeitantes aos direitos fundamentais – ocupam o mais alto escalão da hierarquia normativa (prescindindo agora do problema da sua subordinação a “princípios jurídicos fundamentais”: supra, II, 2.1) e gozam de primazia sobre todas as demais normas do ordenamento jurídico (normas de direito “ ordinário”), seja qual for a sua fonte.
Ora, é evidentemente que deste posicionamento hierárquico dos direitos fundamentais – ou dos preceitos constitucionais que os reconhecem e consagram – já para aqueles decorre um efeito protectivo básico e essencial: é o de que tais direitos se impõem às normas de direito ordinário (e, desde logo, ao legislador), não podendo essas normas contrariá-los ou postergá-los, sob pena de invalidade (inconstitucionalidade). Este efeito (da inconstitucionalidade) pode, em Portugal, extraí-lo qualquer tribunal, desaplicando a correspondente norma no caso concreto; mas cabe reconhecê-lo, em último termo, ao Tribunal Constitucional. O ponto já foi referido [supra, I, 1.3., a)]; cumpre agora sublinhar apenas que se está aqui, na verdade, perante um aspecto central e nuclear da protecção dos direitos fundamentais – o qual, como se vê, tem simplesmente como pressuposto a superior hierarquia das normas constitucionais, em geral, soberba as restantes.
Quanto, por outro lado, a saber se dentro das próprias normas constitucionais cabe ainda uma qualquer hierarquia, e se dela deriva alguma específica protecção para os direitos fundamentais, nada mais resta senão remeter para o que atrás foi dito sobre a questão (supra, II, 2.). Sublinhe-se aqui, unicamente, que nas manifestações do que poderá considerar-se uma superior hierarquia “substancial” dos preceitos relativos aos direitos fundamentais se está, certamente, perante aspectos, e dos mais significativos, da garantia ou protecção institucional destes últimos direitos.
1.2. Já houve também ocasião de dizer que no caso português, dado o desenvolvimento assumido pelo respectivo texto constitucional, não se mostrará de grande acuidade o recurso a normas e princípios constitucionais não escritos (supra, II, 1.).
Cumpre agora acrescentar que, onde, de todo o modo, tal acontecer – como, nomeadamente, no caso em que de determinados princípios constitucionais escritos se “derivem” outros, neles “implícitos “ – a esses princípios não escritos há-de atribuir-se a mesma posição hierárquica das normas da Constituição escrita. Na medida em que tais princípios respeitem ao reconhecimento de direitos fundamentais, receberão estes, pois, uma protecção hierárquica idêntica à dos direitos expressamente recolhidos no catálogo constitucional.
Ponto controverso – como igualmente se viu (cfr., de novo, supra, II, 1.) – é o de saber em que medida tal protecção se estenderá inclusivamente a direitos fundamentais de fonte “legal”.
2. A função protectiva da hierarquia das normas internacionais e supranacionais com valor constitucional
Também quanto a esta questão haverá fundamentalmente que remeter para o que antes já foi exposto sobre a hierarquia das normas agora em causa (supra, II, 3.).
Como então se viu, nem a doutrina nem a jurisprudência constitucional portuguesas foram ao ponto, até agora, de reconhecer “valor constitucional” a determinadas normas internacionais (ou supranacionais), maxime, consagradoras de direitos fundamentais. Se tivessem ido, claro que tais normas, elevadas ao mesmo plano das normas “constitucionais”, desencadeariam uma função ou efeito protectivo em todo idêntico ao destas últimas.
Mas a doutrina porventura dominante, acompanhada
por larga jurisprudência, reconhece de todo o modo às normas internacionais
(ou supranacionais) recebidas in
foro domestico uma posição
hierárquica superior à das normas legais internas. A ser assim,
mesmo não elevadas essas normas ao escalão “constitucional”,
sempre os direitos (fundamentais) que as mesmas reconheçam beneficiarão
duma especial protecção hierárquica – Já que
continuarão a dever impor-se ao legislador interno.