Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
IXª Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus
Protecção Constitucional e Protecção
Internacional dos Direitos do Homem: Concorrência ou Complementaridade?
António Vitorino, Juiz do Tribunal Constitucional
[Paris, França, maio de 1993]
(O presente texto constitui
o relatório que apresentamos em representação do Tribunal
Constitucional português à IX Conferência dos Tribunais Constitucionais
Europeus, realizada em Paris em maio de 1993. O seu desenvolvimento seguiu,
por isso, de perto, o questionário elaborado pela entidade organizadora
- O Conselho Constitucional francês. Para efeitos de publicação
limitámo-nos a actualizar algumas referências bibliográficas
e estatísticas e a incluir alguns trechos mais desenvolvidos da jurisprudência
constitucional citada).
Introdução
1. A fiscalização da constitucionalidade
na Constituição da República Portuguesa de 1976
A apreciação do tema da protecção constitucional e da protecção internacional dos Direitos do Homem exige algumas precisões prévias quanto aos contornos e à projecção jurídica no ordenamento português de ambos os sistemas de garantia de direitos fundamentais em causa.
Assim, importa desde logo sublinhar que o sistema de fiscalização da constitucionalidade vigente em Portugal foi introduzido pela Constituição da República, de 1976 e, na sua matriz fundamental actual, resulta sobretudo das alterações nela introduzidas pela primeira revisão constitucional, de 1982, onde se instituiu uma verdadeira e própria jurisdição constitucional autónoma.[1]
Contudo, nos dois textos constitucionais anteriores (as Constituições de 1911 e de 1933) já se encontram exemplos de modalidades de garantia contenciosa da Constituição. Com efeito, a Constituição de 1911 reconhecia expressamente aos tribunais a faculdade de, nos feitos submetidos a julgamento, apreciarem a constitucionalidade das leis que tivessem de aplicar e recusarem essa aplicação com fundamento em inconstitucionalidade. Este sistema de controlo incidental difuso manteve-se, no essencial, no período de vigência da Constituição de 1933, bem como no período constitucional provisório que antecedeu a entrada, em vigor da Constituição actual ( entre 25 de abril de 1974 e 25 de abril de 1976). [2]
O sistema de fiscalização da constitucionalidade acolhido no texto originário da Lei Fundamental e vigente até 1982, para além do controlo difuso a cargo da generalidade dos tribunais, assentava no papel do Conselho da Revolução (um órgão político-militar de base não electiva) e da Comissão Constitucional (órgão de natureza técnico-jurídica), que coadjuvava aquele Conselho em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade e de controlo da inconstitucionalidade por omissão e possuía simultaneamente poderes decisórios próprios, em sede de reapreciação, em recurso obrigatório, das decisões judiciais que desaplicassem normas legais, com fundamento em inconstitucionalidade.[3]
A revisão constitucional de 1982, como já se disse, criou o Tribunal Constitucional e reformou o sistema de fiscalização da constitucionalidade em função da natureza jurisdicional deste órgão, tendo sido aprovada para o efeito a legislação complementar necessária [4], na sequência do que o Tribunal iniciou funções em 6 de abril de 1983.
A segunda revisão constitucional, de 1989 [5], veio introduzir apenas alterações de pormenor no sistema gizado em 1982 [6], que assim permaneceu inalterado nas suas grandes linhas definitórias.
Em síntese: na vigência da Constituição de 1976, o sistema de controlo de constitucionalidade conheceu dois modelos distintos, um primeiro desde a entrada em vigor da Constituição (25 de abril de 1976) até 1982, e um segundo, desde a primeira revisão constitucional, de 1982, que se tornou efectivo a partir de abril de 1983, até ao momento presente.
2. A introdução na ordem jurídica portuguesa das convenções internacionais de garantia e protecção dos Direitos do Homem.
Assim como a revolução de 25 de abril de 1974 gerou uma ordem constitucional nova, também o processo político dela decorrente se revestiu de particular importância no que concerne à vigência na ordem interna de diversas convenções internacionais atinentes à protecção dos Direitos do Homem.
Desde logo quanto à Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e até por forçado do próprio texto constitucional (designadamente do disposto no nº 2 do artigo 16º) [7], o seu texto 'foi publicado na I Série do jornal oficial português (o "Diário da República") em 9 de março de 1978.
Com a reinstauração da democracia, Portugal aderiu logo em 1976 ao Conselho da Europa [8], tendo a Assembleia da República aprovado a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) através da Lei nº 65/78, de 13 de outubro, cuja entrada em vigor se verificou em 9 de novembro de 1978, data em que simultaneamente o Estado português procedeu à declaração que reconhe o direito ao recurso individual, nos termos do artigo 25º da Convenção e do nº 2 do artigo 6º do Protocolo Adicional nº 4 ( artº 6º da Lei nº 65/78) e a jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 46º da Convenção e do nº 2 do artigo 6º do Protocolo Adicional nº 4 ( artº 7º da Lei nº 65/78), reconhecimentos esses feitos, em ambos os casos, pelo prazo de dois anos, renovável automaticamente.
A mesma Lei nº 65/78 aprovou os Protocolos Adicionais nºs 1, 2, 3, ,4 e 5, que entraram em vigor igualmente em 9 de novembro de 1978. O Protocolo Adicional nº 6 foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República nºº12/86, de 6 de junho de 1986, o Protocolo nº 7 foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, de 27 de setembro de 1990 (embora o instrumento de adesão ainda não tenha sido depositado) e o Protocolo nº 8 foi aprovado pela Resolução nº 30/86, de 9 de outubro de 1986.
Os Protocolos Adicionais nºs 2,3,4,5,6 e 8 foram aprovados sem quaisquer reservas, enquanto foram formuladas reservas a certos preceitos da Convenção e dos Protocolos nºs I e 7, a que adiante aludiremos com mais pormenor .
Quanto aos Pactos Internacionais celebrados no âmbito da Organização das Nações Unidas, o relativo aos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) foi aprovado pela Lei nº 29/78, de 12 de junho, e o referente aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) foi aprovado pela Lei nº 45/78, de 11 de julho. o Protocolo facultativo referente ao PIDCP ( competência da Comissão dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas) foi aprovado pela Lei nº 13/82, de 15 de junho.
Finalmente os Tratados institutivos das Comunidades Europeias entraram em vigor em Portugal a 1 de janeiro de 1986, nos termos do Tratado de Adesão aprovado pela Assembleia da República através da Resolução nº 22/85, de 18 de setembro de 1985.
3. A questão das reservas do Estado português apostas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e seus Protocolos Adicionais.
Como já foi referido, o Estado português decidiu formular algumas reservas a certos preceitos da Convenção Europeia e dos seus Protocolos Adicionais nºs 1 e 7, as quais, aliás, na sua maioria, já foram entretanto retiradas. [9]
Ao texto da Convenção foram formuladas, em 1978, as seguintes reservas (artigo 2º da Lei nº 65/78):
a) ao artigo 5º da Convenção, que não obstaria à prisão disciplinar imposta a militares, em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar português; [10]
b) ao artigo 7º da Convenção, que não obstaria à incriminação e julgamento dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS; [11]
c) ao artigo 10º da Convenção, que não obstaria à proibição constitucional de a televisão poder ser objecto de propriedade privada; [12]
d) ao artigo 11º da Convenção, que não obstaria à proibição constitucional do lock-out; [13]
e) à alínea b) do nº 3 do artigo 4º da Convenção, que não obstaria à possibilidade de ser estabelecido um serviço cívico obrigatório; [14]
f) ao artigo 11º da Convenção, que não obstaria à proibição constitucional de organizações que perfilhem a ideologia fascista. [15]
O artigo 4º da Lei nº 65/78 formulou duas reservas ao Protocolo Adicional nº 1, a saber:
a) ao artigo lº do Protocolo, que não obstaria a que, por força do disposto na Constituição, as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas pudessem não dar lugar a qualquer indemnização; [16]
b) ao artigo 2º do Protocolo, que não obstaria à não confessionalidade do ensino público e à fiscalização pelo Estado do ensino particular, bem como à validade das disposições legais relativas à criação de escolas particulares. [17]
Ao Protocolo Adicional nº 7 foi formulada a reserva segundo a qual por "infracção penal" e "infracção ", no sentido dos artigos 2º e 4º do aludido Protocolo, o Estado português só compreenderia os factos que constituíssem infracção penal segundo o seu direito (nº 2 da Resolução nº 22/90).
Em síntese: em virtude das disposições da Lei º 12/87, de 7 de abril, no momento actual subsistem apenas as reservas referentes ao alcance do conceito de infracção acolhido nos artigos 2º e 4º do Protocolo Adicional nº 7 e ao disposto nos artigos 5º e 7º da Convenção, a primeira referente à prisão disciplinar de militares e a segunda quanto à incriminação dos agentes e responsáveis da PIDE/DGS. [18]
I - Condições de introdução na ordem jurídica interna das normas internacionais referentes aos direitos do Homem
1.1. O sistema de recepção geral do Direito Internacional Convencional na Ordem Jurídica Portuguesa.
A generalidade da doutrina que se tem debruçado sobre o sistema de inserção do Direito Internacional Convencional na ordem jurídica portuguesa aponta no sentido de a Constituição da República consagrar um sistema da recepção geral plena desse Direito Internacional, condicionada pela publicação das normas em causa no jornal oficial e pela sua efectiva vigência, na ordem internacional [19]. É o que deflui do nº 2 do artigo 8º da Lei Fundamental portuguesa, que dispõe que "as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português ". [20]Quanto aos aspectos formais de introdução no ordenamento jurídico português das normas de Direito Internacional Convencional, registe-se desde já que a Constituição recobre, na designação de "convenção internacional", dois tipos diferentes de instrumentos internacionais, os "tratados solenes " e os "acordos sob forma simplificada", sem que, contudo, adiante, ela própria, critérios distintivos entre eles, pelo que a integração de tais conceitos deverá ser feita por recurso ao Direito Internacional Público. Assim o afirmou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 168/88 [21], onde se escreveu, na esteira do ensino de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que " esta disciplina constitucional pressupõe, porém, num plano de inteira harmonização dos respectivos princípios, a distinção material entre acordos e tratados, a qual, na ausência de uma definição vinculativa, deve recorrer à definição dos dois conceitos correntes no direito internacional, podendo dizer-se que, em geral, "se impõe a forma de tratado quando se pretende uma disciplina primária semelhante à das leis internas, e se estabelece a forma de simples acordo para os instrumentos diplomáticos executivos (executive agreements) de tratados já celebrados. De certo modo, esta distinção reconduz-se à ideia do valor legislativo dos tratados e do valor regulamentar dos acordos e tem de confrontar-se em cada caso concreto com o objectivo prosseguido pelas partes contratantes ao celebrarem uma convenção internacional".
Na redacção ora vigente da Constituição, emergente da segunda revisão constitucional, compete ao Governo, no exercício da sua competência política ( artigo 200, nº 1, alínea b) da Constituição), "negociar e ajustar convenções internacionais" enquanto " órgão de condução da política geral do país " ( artº 185º da Constituição).
A aprovação de tais convenções, por seu turno, compete quer à Assembleia da República quer ao próprio Governo.
À primeira cabe, no exercício da sua competência política (artigo 164º, alínea j) da Constituição) "aprovar as convenções internacionais que versem matéria da sua competência reservada [22], os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras, os respeitantes a assuntos militares, e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe".
Ao segundo cabe, no exercício da sua competência política, "aprovar as convenções internacionais cuja aprovação não seja da competência da Assembleia da República ou que a esta não tenham sido submetidas "(artigo 200º, nº 1, alínea c) da Constituição ), competência que a Lei Fundamental, no seu artigo 203º, nº 1, alínea d) atribui expressamente ao Conselho de Ministros.Finalmente, o Presidente da República tem a competência de "assinar as resoluções da Assembleia da República que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo" [23] ( artigo 137º, alínea b) da Constituição) e de "ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados " ( artigo 138º, alínea b) da Constituição ).
Neste contexto, pode-se concluir que as convenções internacionais sobre protecção e garantia dos Direitos do Homem podem ser objecto quer de tratados solenes, quer de simples acordos. Quando versarem matéria de direitos, liberdades e garantias [24] e independentemente da forma de que se revestirem (tratado ou simples acordo), a sua aprovação compete sempre à Assembleia da República. Quando respeitarem aos demais direitos fundamentais [25] a sua aprovação pode ser feita pelo Governo, em Conselho de Ministros, ou pode, por este, ser submetida a decisão final da Assembleia da República.
As convenções internacionais (tratados ou acordos) aprovados pela Assembleia da República são-no por resolução [26] e as aprovadas pelo Governo revestem a forma de decreto, nos termos do nº 2 do artigo 200º da Constituição. Em qualquer caso, os tratados, solenes são aprovados para ratificação, que reveste a forma de decreto presidencial de ratificação, e os acordos são- no para assinatura competindo ao Presidente, neste caso, a assinatura dos decretos governamentais que consubstanciam tal aprovação.
Nos termos do disposto nº 1, alínea b), do artigo 122º da Constituição, são publicadas no jornal oficial " as convenções internacionais e os respectivos avisos de ratificação, bem como os restantes avisos a elas respeitantes.[27]
1.2. A fiscalização da constitucionalidade das normas de Direito Internacional Convencional.
No que concerne à posição do Direito Internacional Convencional no ordenamento jurídico português, a doutrina que sobre a matéria se tem debruçado exprime-se no sentido de o mesmo ocupar uma posição infra-constitucional, resultando tal entendimento quer do próprio artigo 8º, nº 2, já citado, quer das normas constitucionais atinentes ao sistema de fiscalização da constitucionalidade.[28]Com efeito, a Lei Fundamental portuguesa, no nº 1 do seu artigo 277º dispõe que " são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados", ressalvando, contudo, logo no nº2 do mesmo preceito que "a inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental". [29]
1.2.1. A fiscalização preventiva.
As normas de Direito Internacional Convencional podem, desde logo, ser submetidas a fiscalização preventiva da constitucionalidade, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 278º da Constituição, onde se diz que " o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação (...) ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura".
Tal pedido há-de ser formulado no prazo de oito dias a contar da data de recepção do diploma (artigo 278º, nº 3), devendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se no prazo de vinte e cinco dias, o qual, contudo, pode ser encurtado pelo Presidente da República por motivo de urgência (artigo 280º, nº8). O processo a seguir nesta sede é em tudo idêntico ao da fiscalização preventiva da constitucionalidade dos demais actos normativos.[30]
Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de qualquer norma constante de decreto ou acordo internacional, a regra geral será a de o diploma ser vetado pelo Presidente da República e devolvido ao órgão que o tiver aprovado (artigo 279º, nº 1, da Constituição ). Contudo, quanto aos tratados internacionais, existem algumas particularidades que importa ter em linha de conta.
Desde logo, não cabe aqui falar propriamente de veto, uma vez que a ratificação de tratados é um acto próprio e livre do Presidente da República. Pelo que, neste caso, o Presidentecomunica ao órgão que o tiver aprovado ( a Assembleia ou o Governo) , que não ratifica o tratado por o mesmo conter normas consideradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.
Por outro lado, se quanto aos actos legislativos o órgão autor da norma pode modificar ou expurgar dos diplomas as normas consideradas inconstitucionais (além de poder confirmar a sua aprovação por uma maioria especialmente qualificada), já quanto às normas de um tratado, nas mesmas circunstâncias, o expurgo dessas normas teria que passar pela sua prévia renegociação ou pela redefinição das condições da sua aprovação (v.g. aposição de reservas), com as consequentes implicações no plano da ordem externa. Acresce que, nos termos do nº 4 do artigo 279º da Constituição, nesses casos em que há uma pronúncia de inconstitucionalidade em sede de fiscalização preventiva, apenas restará à Assembleia da República a possibilidade de confirmar a aprovação do tratado por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, o que a ocorrer autoriza o Presidente da República a ratificá-lo (mesmo contendo normas inconstitucionais), podendo, contudo, fazê-lo ou não, em virtude da liberdade de decisão que lhe assiste no processo de ratificação de tratados internacionais.[31]
Caso o tratado tivesse sido originariamente aprovado pelo Governo, a única solução que permitiria a ultrapassagem da pronúncia de inconstitucionalidade formulada pelo Tribunal Constitucional seria a sua submissão à aprovação da Assembleia da República, nos termos e com as consequências decorrentes do nº 4 do, artigo 279º a que acabamos de aludir.1.2.2. A fiscalização sucessiva e a fiscalização concreta ou difusa.
As normas de Direito Internacional Convencional estão igualmente sujeitas a fiscalização abstracta sucessiva ou a posteriori e a fiscalização concreta da constitucionalidade.
No primeiro caso, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas (artigo 280º, n° 1, alínea a) da Constituição), portanto também das normas constantes de convenções internacionais, a pedido das entidades referidas no nº 2 do mesmo preceito [32], seguindo-se para o efeito o processo previsto para a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos actos normativos constante dos artigos 62º a 68º da Lei nº 28/82.
Caso o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, esta produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado (artigo 282º, nº 1, da Constituição). [33]
Quanto ao segundo caso, o da fiscalização concreta, dispõe o artigo 280º, nº 1, da Constituição que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade (alínea a) do nº 1) ou que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no decurso do processo (alínea b) do mesmo nº 1), neste preceito se compreendendo as decisões que envolvem normas constantes de convenções internacionais. No caso da alínea a) o recurso é obriga- tório para o Ministério Público (artigo 280º, nº 3) [34], no caso da alínea b) só pode interpor o recurso a parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade no processo (artigo 280º, nº 4).
O processo a seguir , neste caso, é o que consta dos artigos 69º a 85º da Lei nº 28/82, aplicável à fiscalização concreta da inconstitucionalidade de actos normativos de direito interno, produzindo a decisão do Tribunal Constitucional os efeitos de caso julgado no processo quanto à questão de constitucionalidade. [35]
1.3. A questão da fiscalização da constitucionalidade das normas internacionais de protecção dos Direitos do Homem.
Traçada esta panorâmica, importa registar ainda que as normas de protecção internacional dos Direitos do Homem vigentes em Portugal ( designadamente a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os seus Protocolos Adicionais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - e respectivo protocolo facultativo - e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais) não foram nunca sujeitas nem a fiscalização preventiva nem a fiscalização sucessiva da constitucionalidade.
De igual forma, o Tribunal Constitucional não recebeu até ao momento qualquer recurso, em sede de fiscalização concreta, onde tenha sido recusada a aplicação de qualquer das normas daqueles instrumentos de Direito Internacional com fundamento em inconstitucionalidade ou onde tenha sido aplicada alguma das suas normas que uma parte haja reputado de inconstitucional.
Na realidade, embora o Tribunal tenha sido por diversas vezes confrontado com a temática da projecção na ordem interna do Direito Internacional Convencional, importa sublinhar que na esmagadora maioria dos casos a questão de constitucionalidade colocada reportava-se a normas do direito interno, estando então em causa saber se as regras das pertinentes convenções internacionais integravam ou não o "bloco de constitucionalidade" enquanto parâmetro aferidor da validade dos actos normativos internos.[36] Pelo contrário, só em contados casos foi o Tribunal chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional de instrumentos de Direito Internacional e em nenhum deles estava em causa um instrumento internacional de protecção e garantia dos Direitos do Homem.[37]
1.4. A questão da fiscalização da constitucionalidade dos Tratados institutivos das Comunidades Europeias.
Do mesmo modo, quanto aos tratados institutivos das Comunidades Europeias, o Tribunal Constitucional português nunca foi confrontado com a questão da sua conformidade face ao texto constitucional.
Na realidade, tendo em vista precisamente a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, a revisão constitucional de 1982 aditou ao artigo 8º da Constituição portuguesa um normativo (nº 3) que dispunha na redacção então adoptada que " as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal faça parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos". Este preceito veio a ser alterado na revisão constitucional de 1989, onde se eliminou o inciso "expressamente", no essencial para contemplar o caso das directivas comunitárias dotadas de efeito directo.
Adiante voltaremos ao tema a propósito da posição do direito comunitário no quadro da hierarquia das fontes no ordenamento português.
II - Convergências e divergências quanto aos direitos do Homem garantidos quer pelas normas constitucionais quer pelas normas internacionais
2.1. Os Direitos do Homem garantidos quer por normas constitucionais quer por normas internacionais.
Embora a adopção dos principais instrumentos internacionais de protecção e garantia dos Direitos do Homem na ordem interna só tenha ocorrido em Portugal em momento posterior ao da entrada em vigor da Constituição de 1976, na verdade esses instrumentos exerceram, desde logo, uma influência decisiva na elaboração da própria Lei Fundamental portuguesa.
Como adiante veremos com maior atenção, a Constituição portuguesa não só recolheu o desiderato da evolução do processo de garantia e de protecção dos Direitos do Homem verificada no espaço geopolítico onde o País se insere, em especial o constante das convenções internacionais de que ora nos ocupamos, mas também procedeu a um desenvolvimento muito pormenorizado desses direitos e garantias a ponto de se poder afirmar, que numa visão de conjunto, o quadro de direitos humanos e liberdades individuais reconhecidos na ordem interna se apresenta bem mais completo do que o núcleo dos mesmos direitos e liberdades garantidos no plano europeu [38]. Não será, por isso, de estranhar que a quase totalidade dos direitos e liberdades consagrados na Convenção e nos Pactos Internacionais encontrem correlação directa com os direitos e liberdades consagrados nos preceitos constitucionais portugueses atinentes a estas matérias.
A que acresce que a Lei Fundamental portuguesa consagra, no nº1 do seu artigo 16º um princípio de "não tipicidade" dos Direitos Fundamentais, ou uma "cláusula aberta" de Direitos Fundamentais, quando dispõe que "os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional".[39] Em função do disposto neste preceito constitucional, pode-se falar de um "sentido material de direitos fundamentais” [40] que se traduz em considerar como tais não apenas aqueles cujo enunciado conste da própria Constituição mas também todos aqueles que possam ser tidos como a eles similares do ponto de vista da Constituição material.[41] [42]
2.2. Os Direitos do Homem exclusivamente garantidos por normas constitucionais.
Como resulta do que já atrás se deixou dito, existe uma larga coincidência entre os Direitos Fundamentais garantidos pela Constituição portuguesa e a "justaposição" dos Direitos do Homem garantidos pelas diversas convenções internacionais (conforme se pode apurar do quadro constante do Anexo I).
Considerando os instrumentos de direito internacional a que temos vindo a aludir no seu conjunto, poderemos afirmar que o distinguo face à Lei Fundamental portuguesa reside essencialmente na circunstância de o tratamento constitucional dos Direitos Fundamentais na Constituição portuguesa assumir uma pormenorização muito significativa (às vezes mesmo de vocação regulamentar) que, como é facilmente compreensível, vai bem mais além do natural "denominador comum " inter-estadual que pressupõe o tratamento desses Direitos no plano internacional.
Assim, sem uma preocupação de exaustão, pode-se referir como Direitos do Homem ou elementos relevantes do seu sistema de garantia que encontram essencialmente a sua sede consagradora na Constituição e não nas convenções internacionais:
2.2.1. No domínio dos Direitos Civis e Políticos, o direito de resistência (artº 21º), o direito à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem e à palavra (artº 26º), a regra sobre a proibição da perda de direitos civis, profissionais ou políticos como efeito automático de uma pena (artº 30Q , nº 4), o regime do Habeas Corpus (artº 31º), as garantias atinentes ao direito de asilo (artº 33º), o especial enfoque (conferido pelo artº 36º) quanto ao direito de constituir família e de contrair casamento, as garantias quanto à liberdade de escolha de profissão e de acesso à função pública (artº 47º), o regime do direito de petição e de acção popular (artº 52º), a consagração do princípio da segurança no emprego e da proibição dos despedimentos por motivos políticos ou ideológicos (artº 53º), a pormenorizada regulamentação da liberdade sindical e dos direitos das comissões de trabalhadores e dos sindicatos (artºs 54º e 56º) e o regime constitucional de exercício do direito à greve e proibição do lock-out (artº 57º).
2.2.2. Quanto aos direitos económicos, sociais e culturais, a forte carga programática da Constituição portuguesa nesta sede explica, mais uma vez, o pormenor do regime constitucional face às homólogas regras de convenções internacionais, o que é particularmente evidente no que diz respeito ao direito ao trabalho e aos direitos dos trabalhadores (artºs 58º e 59º), às garantias da iniciativa económica privada, cooperativa e autogestionária (artº 61º), às regras atinentes aos regimes da segurança social, saúde e habitação (artºs 63º,64º e 65º), aos regimes normativos referentes à família e à protecção da maternidade e da paternidade (artºs 67º, 68º e 69º), à juventude (artº 70º) , aos deficientes (artº 71º) e à terceira idade (artº 72º) e ainda às regras reguladoras da criação e fruição cultural (artº 78º) e da cultura física e desporto (artº 79º).
2.2.3. Quanto aos denominados Direitos do Homem da "terceira geração", e sem embargo da relativa indefinição deste conceito nos tempos que correm, pode-se referir que a Constituição portuguesa regula com especial atenção e pormenor a temática do uso da informática e da protecção de dados (artº 35º), dos direitos dos consumidores (artº 60º) e do ambiente e qualidade de vida (artº 66º).
2.3. Direitos do Homem constantes de convenções internacionais que não encontram correspondência no plano constitucional.
No quadro descrito, resulta fácil compreender porque é que é limitado o elenco de Direitos Fundamentais, em sentido material, proveniente das convenções internacionais que não encontra correspondência directa na Constituição. Neste domínio podem referir-se o direito de não sujeição a experiências médicas ou científicas sem consentimento do próprio ( artº 7º, 2ª parte, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), os direitos relativos ao regime penitenciário ( artº 10º do mesmo Pacto ), a proibição de prisão por dívidas (artº 11º e artº 1º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem), o direito ao conhecimento da língua em processo penal (artº 14º, nº3, alíneas a) e b) e artºs 5º, nº2e 6º,nº3, alíneas a) e e) da Convenção Europeia) e o direito a decisão em prazo razoável em processo civil (artº 6º, nº I, da Convenção). [43]
2.4. A relevância dos "princípios gerais da ordem jurídica comunitária referentes aos Direitos do Homem.
Uma nota final quanto aos princípios gerais da ordem jurídica comunitária referentes aos Direitos do Homem e seu quivalente no texto constitucional português. Na realidade, como é sabido, não é muito vasto o campo em análise, atenta a especificidade do ordenamento comunitário e as suas lacunas em sede de regulação dos Direitos do Homem, cujo preenchimento tem vindo a ser levado a cabo pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias ( e mais recentemente também pelo Tribunal de 1ª Instância das Comunidades) e que esteve presente quando da elaboração do Tratado da União Europeia.[44]
Sem prejuízo de mais adiante abordamos a temática das relações entre o ordenamento constitucional português e o ordenamento comunitário, registe-se, desde já, que, por um lado, face à amplitude da consagração dos Direitos do Homem na Constituição portuguesa, não parece provável que existam domínios de matérias a eles atinentes que sejam apenas regula- dos pelo ordenamento comunitário e, por outro, que até ao momento o Tribunal Constitucional português ainda não foi confrontado com a questão em termos de se poder dizer que a ordem jurídica comunitária encerra garantias dos Direitos Fundamentais que estejam para além do quadro de garantia e protecção desses direitos constante da Lei Fundamental portuguesa.[45]
III - Relevância das normas internacionais para o juíz constitucional no exercício das suas atribuições
3.1. O estatuto jurídico das normas internacionais referentes aos Direitos do Homem.
Como já atrás referimos (1 -1.1), a Constituição portuguesa consagra (artº 8º, nº 2) um sistema de recepção geral plena do Direito Internacional de origem convencional, que como tal vigora na ordem interna portuguesa sem necessidade de qualquer acto de "tradução" ou "transformação" em normas de direito interno, embora tal vigência esteja condicionada à regular ratificação ou aprovação [ nos termos dos artigos 137º, alínea b) e 138º, alínea b), conjugados com os artigos 164º, alínea j), 169º, nº 5 e 200º, nº 1] , à publicação no jornal oficial [nos termos do artigo 122º, alínea b)] e ainda à vigência na ordem internacional e à não desobrigação do Estado português, nos termos internacionalmente consentidos. [46]
A doutrina que se tem debruçado sobre esta questão tem-na analisado em íntima conexão com a temática da posição hierárquica do direito internacional convencional no sistema de fontes do direito em Portugal.[47] No essencial, a maioria dos autores tem atribuído um valor infraconstitucional mas supralegislativo ao direito internacional convencional, apontando para a sua primazia sobre a lei interna, sem prejuízo da sua subordinação à Constituição.[48]
Neste quadro, a norma internacional vigora directamente na ordem jurídica portuguesa e, em função do seu conteúdo, está constitucionalmente habilitada tanto a gerar obrigações para o Estado (a traduzir em legislação interna de concretização dos preceitos internacionais) como a conferir imediatamente direitos aos particulares, que podem invocar tais normas perante a Administração e junto dos Tribunais portugueses com as consequências a que adiante aludiremos.
3.2.1. A hierarquia das normas de Direito Internacional Convencional na jurisprudência do Tribunal constitucional português.
À clareza das posições dominantes na doutrina não tem correspondido, contudo, uma idêntica definição inequívoca da jurisprudência constitucional portuguesa. Significativamente o Tribunal Constitucional foi inúmeras vezes solicitado a pronunciar-se, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, sobre a questão da desconformidade do disposto no artigo 4º do Decreto- Lei nº 262/83, de 16 de junho face ao disposto no artigo 48º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, aprovada pela Convenção de Genebra de 7 de junho de 1930, estando em causa nesses recursos a definição da taxa de juros moratórias, de 6%. nos termos da Lei Uniforme e de 23% no diploma interno ulterior .
Em sucessivas ocasiões foram tirados arestos de sentido contrário pelas duas secções do Tribunal.Com efeito, a 1ª Secção do Tribunal sempre considerou, embora com votos de vencido, que a desconformidade entre lei interna e convenção internacional prefigura um vício de inconstitucionalidade indirecta, de que o Tribunal deve tomar conhecimento em sede de controlo concreto da constitucionalidade.[49]
Em síntese a argumentação aduzida pode respigar-se do seguinte trecho do já citado Acórdão nº 66/91:"O artigo 8º, nº 2, da Constituição consagra uma regra de recepção automática do direito internacional convencional, condicionada apenas ao facto de a eficácia interna depender da sua publicação no Diário da República.
(Como os requisitos constitucionais de ratificação ou aprovação são requisitos de validade do tratado, pode dizer-se que a ideia do legislador constituinte foi de aceitar a vigência das normas aquelas normas não podem ser alteradas por actos internos e apenas deixam de vigorar na ordem interna quando o tratado, por qualquer motivo, deixar de vincular o Estado.
A ser assim, as normas de direito convencional apresentam- se com uma eficácia supralegal detendo primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior ou posterior.
À luz destas premissas, uma norma de direito interno de valor infraconstitucional que disponha em contradição com uma norma de direito internacional convencional contrariará, simultaneamente, em concurso idea1 essa norma de direito internacional e a regra constitucional definidora da escala da hierarquia normativa, não podendo, então, deixar de haver-se por prevalecente o vício da inconstitucionalidade que, manifestamente, absorve, consumindo, o vício da infracção à norma convencional, de natureza e intensidade menos gravosa.Nesta conformidade, e face ao disposto no artigo 280º, nº 1, alínea b ), da Constituição, tem de afirmar-se a competência deste Tribunal para conhecer da questão suscitada no recurso (...).
Deverá, finalmente, assinalar-se (...) o grave inconveniente de inviabilizar a intervenção do Tribunal Constitucional num domínio de tão alta importância como é o da questão de compatibilidade entre o direito interno e as convenções internacionais” [50]
Por seu turno, a 2ª Secção sempre entendeu que o Tribunal Constitucional não é competente para tomar conhecimento deste tipo de recursos por estar em (causa uma questão de ilegalidade e não de inconstitucionalidade [51], estribando-se na seguinte argumentação que se respiga do já citado Acórdão nº 47/88 :"(...) Não se contesta que existe um sério problema de direito constitucional subjacente à solução da matéria versada nos presentes autos: o da interpretação do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, designadamente no que se refere a saber se aí se estabelece a regra da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno.
Todavia, o que esta Secção vem sustentando é que as normas questionadas no Decreto-Lei nº 262/83 nunca poderiam afrontar directamente essa regra de primazia, a supor que ela se encontra efectivamente consagrada na lei fundamental, mas tão-só a poderiam violar indirectamente, na medida em que eventualmente estabelecessem um regime incompatível com uma convenção internacional.
Ora, se é certo que a Constituição da República Portuguesa não procede expressamente à distinção entre inconstitucionalidade directa e inconstitucionalidade indirecta, do ponto de vista terminológico, a verdade é que, depois de atribuir ao Tribunal Constitucional, no nº 1 do artigo 280º, uma competência genérica para conhecer dos recursos interpostos das decisões dos restantes tribunais que hajam julgado questões de inconstitucionalidade, enumera taxativamente no nº 3 do mesmo artigo os casos em que ao Tribunal Constitucional é lícito conhecer dos recursos interpostos das decisões dos restantes tribunais que hajam apreciado a conformidade de uma certa norma com outra de superior hierarquia que não seja a própria Constituição da República Portuguesa, ainda quando essa hierarquia resulta do preceituado na mesma Constituição da República Portuguesa.
Quer isto dizer que a lei fundamental, como se deduz da contraposição entre os mencionados nºs 1 e 3 do artigo 280º, consagrou implicitamente, ainda que apenas para determinação da competência do Tribunal Constitucional, a distinção entre inconstitucionalidade directa e inconstitucionalidade indirecta, já que esta última só pode ser conhecida pelo Tribunal Constitucional quando tal lhe é expressamente cometido.[52]
Por estes motivos reitera-se a jurisprudência segundo a qual, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição e na lei, apenas a inconstitucionalidade directa e não a indirecta abre caminho ao recurso para o Tribunal Constitucional.
Para obviar a esta divergência jurisprudencial, o legislador , através da Lei nº 85/89, de 7 de setembro, introduziu na Lei Orgânica sobre Funcionamento, Organização e Processo do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82), um novo dispositivo [70º, nº 1, alínea i)], onde se prevê que "cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais (...) que recusem a aplicação de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional". Precisando o âmbito deste recurso, o nº 2 do artigo 71º da Lei nº 28/82, também ele aditado pela Lei nº 85/89, dispõe que " no caso previsto na alínea i) do nº 1 do artigo anterior, o recurso é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida”. [53]
Todavia, conforme resulta dos seus enunciados, as alterações assim introduzidas restringem-se ao âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade.Sem embargo, recentemente o Tribunal teve ocasião de se debruçar sobre esta temática em sede de fiscalização abstracta preventiva, quando o Presidente da República submeteu ao Tribunal a apreciação da conformidade de diversas disposições de um Decreto governamental, aprovado para promulgação como Decreto-Lei, que estabelecia "normas relativas ao uso do cheque", face a vários preceitos da Lei Uniforme Relativa a Cheques, aprovada pela Convenção de Genebra de 19 de março de 1931.[54]
Apreciando o pedido, o Tribunal Constitucional, em plenário, equacionou mais uma vez a temática das relações entre normas constantes de convenções internacionais e normas de direito interno, tendo, mais uma vez também, deixado em aberto a sua resolução, com três votos de vencido, de acordo com uma lógica argumentativa desenvolvida em três grandes momentos, de que se passa a citar os trechos mais relevantes.[55]
Inicialmente o Tribunal equaciona em alternativa as várias respostas que a questão colocada pode receber, afirmando:
" Naturalmente para quem se coloque na perspectiva de que o artigo 8º, nº 2, da Constituição não acolhe o princípio da primazia do direito internacional particular face ao direito interno, nenhuma questão de constitucionalidade se colocará a este propósito.
(...)
Para quem entenda que o artigo 8º, nº 2, da Constituição, consagra, através de uma interpretação sistemática e coerente, um princípio de primazia do direito internacional convencional sobre as normas de direito interno, então tudo dependerá de saber que vício consubstancia a desconformidade entre as normas de direito interno face a convenções internacionais que se encontrem plenamente em" vigor no momento da emissão daquelas ou qual o seu relevo no quadro do controlo de constitucionalidade.Ora, como resulta claro da jurisprudência deste Tribunal em sede de fiscalização concreta, e sem embargo de se ponderarem as diferenças entre este tipo de controlo e o tipo de controlo de constitucionalidade abstracto (e ainda neste, entre a fiscalização preventiva e a fiscalização sucessiva), segundo o entendimento que tal desconformidade prefigura uma situação de inconstitucionalidade ainda que indirecta, e que as normas interpostas (da Lei Uniforme) são parâmetro válido de um juízo de inconstitucionalidade, porquanto reflexamente a violação das normas interpostas comporta, em concurso ideal, violação do artigo 8°, n° 2, da Constituição, haverá na questão colocada pelo Presidente da República uma situação de inconstitucionalidade e, consequentemente o Tribunal Constitucional será competente para dela conhecer, porquanto nos encontramos em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Pelo contrário, para quem entenda que, ainda que comportando o artigo 8º, nº 2, da Constituição tal critério de primazia do direito internacional face ao direito interno, o juízo de desvalor a emitir perante este tipo de situações será, quando muito, identificável como de ilegalidade em sentido amplo e, se daí decorre ofensa da Constituição, esta será meramente indirecta ou como que consequencial, terá de concluir que tal ofensa da Constituição é insusceptível de controlo pelo Tribunal nesta sede, de fiscalização preventiva da constitucionalidade, já que este tipo de controlo se restringe à inconstitucionalidade e não compreende nenhuma forma de controlo preventivo da ilegalidade ou mesmo da inconstitucionalidade indirecta.
De igual forma, para quem entenda, à semelhança da primeira posição referida, que a aludida relação de desconformidade prefigura uma situação de inconstitucionalidade meramente indirecta, mas que no caso o controlo da violação de normas interpostas, constantes de convenção internacional, não cabe no âmbito do controlo de constitucionalidade, salvo nas situações expressamente previstas na Constituição, onde manifestamente não se insere a que estamos a apreciar , então terá de concluir que o Tribunal não é competente para apreciar o alegado vício, porquanto o controlo de constitucionalidade se refere tão somente à inconstitucionalidade directa mas já não à indirecta.
Seguidamente o Tribunal acolhe, por maioria, este último entendimento, o que faz com base na seguinte fundamentação : ,E esta última tese que o Tribunal entende ser de acolher, o que, diga-se desde já, consequência que o Tribunal não é competente para apreciar , nesta sede, o pedido do Presidente da República quanto ao artigo 8º, nº 1, do decreto, quando confrontado com a Lei Uniforme relativa ao Cheque e reflexamente com o artigo 8º, nº 2, da Constituição, e isto sem ter que aderir à tese do primado do direito internacional convencional face ao direito interno, questão que se deixa em aberto por, em si mesma, não relevar neste momento para a decisão
à competência do Tribunal.É que mesmo na óptica de que o artigo 8º nº 2, da Constituição, consagra o princípio do primado do direito internacional convencional face ao direito interno - questão que, como já se disse, se deixa imprejudicada -, isto é, que aquele normativo constitucional reconhece às normas de direito internacional particular um valor infraconstitucional mas supralegal, a caracterização do correspondente vício e da sua projecção no âmbito do sistema de controlo da constitucionalidade levará à conclusão que o Tribunal não é competente para tomar conhecimento do pedido nesta sede.
Com efeito, neste entendimento das coisas, o artigo 8º nº2, da Lei Fundamental, ao estabelecer que as normas de direito internacional convencional vigoram na ordem interna portuguesa "enquanto vincularem internacionalmente o Estado português" determina pois, que tais normas deixarão de vigorar na ordem interna quando o Estado ficar desobrigado no plano internacional, nas formas consentidas internacionalmente para tal efeito, mas postula igualmente que, enquanto vincularem internacionalmente o Estado português, essas normas vigorarão de pleno na ordem interna e só uma desvinculação internacional pode fazer cessar essa vigência, a qual, portanto, não pode ser afectada por um acto, como a lei interna, que em nada altera aquela vinculação internacional. Donde que, em caso de divergência entre uma convenção internacional e uma norma legal interna, inexistindo título bastante de desvinculação do Estado no plano internacional, deve-se aplicar a convenção, que assim prevalece sobre as fontes de direito interno de força legal.
Mas também neste entendimento que temos vindo a referenciar resulta que a desconformidade entre uma norma de direito interno e uma norma constante de convenção internacional gera, desde logo e em primeira mão, um vício de inconstitucionalidade indirecta ou de ilegalidade (em sentido amplo ), ou seja, um desvalor decorrente do facto de a lei interna, ainda que constituindo um acto normativo de idêntica eficácia em relação à norma constante de convenção internacional, a ela ter que se subordinar em virtude de a Lei Fundamental reconhecer à convenção, mesmo que apenas implicitamente, um estalão hierárquico-normativo superior .
Neste contexto, embora não negando que exista subjacente à situação que gera um tal vício uma relevante questão de constitucionalidade, a que resulta da violação, ainda que meramente indirecta, do preceito constitucional que funda o princípio do primado do direito internacional convencional ( artigo 8º, nº 2), como escreveu Jorge Miranda (Manual cit., vol. II, Lisboa, 1988, pág. 279) trata-se de um problema de ilegalidade e não de inconstitucionalidade "não somente em virtude de uma determinada visão do sistema de normas e actos como ainda por virtude do próprio teor do fenómeno: pois o que está em causa em qualquer das hipóteses é, primariamente, a contradição entre duas normas não constitucionais, não é a contradição entre uma norma ordinária e uma norma constitucional; e é somente por se dar tal contradição que indirectamente (ou, porventura, consequentemente) se acaba por aludir a inconstitucionalidade indirecta " .
Este entendimento parece, aliás, sair reforçado com as aludidas alterações da Lei Fundamental introduzidas pela segunda revisão constitucional, ao qualificar expressamente como ilegalidade o desvalor decorrente da contradição entre um acto legislativo e o parâmetro constituído pelas leis com valor reforçado (qualquer que seja o âmbito a reconhecer a estas) : é que também nestes casos há uma projecção constitucional de tal desconformidade, a que resulta da crise da norma constitucional que estabelece a relação hierárquico-normativa entre lei reforçada e lei ordinária. Mas tal projecção constitucional é meramente indirecta, pelo que a Constituição estabeleceu um específico sistema de controlo centrado na óptica da ilegalidade”.
Neste contexto, o Tribunal acaba por decidir que, em sede de fiscalização preventiva, não é competente para tomar conhecimento do pedido em causa, acautelando a sua posição de eventuais observações críticas quando sublinha que "mesmo que se entendesse que o princípio da limitação jurídica do poder poderia, em certas circunstâncias, justificar uma interpretação menos formalista e consequentemente mais permissiva quanto ao âmbito das formas de controlo consagradas na Constituição, no sentido de abranger casos de inconstitucionalidade indirecta, parece de todo em todo de afastar tal entendimento no quadro da fiscalização preventiva, atentas as suas características muito peculiares. "
O que releva desta posição do Tribunal Constitucional é que, confrontado com a temática da posição do direito internacional convencional na hierarquia das fontes do direito, e face a jurisprudência contraditória das suas duas Secções, o plenário entendeu dever manter a questão em aberto em termos de decisão do conjunto dos juizes, o que é válido tanto quanto às regras constantes das aludidas convenções (Leis Uniformes), como, consequentemente, quanto às normas de protecção e garantia dos Direitos do Homem.
3.2.2. O caso específico das normas internacionais atinentes aos Direitos do Homem na jurisprudência do Tribunal Constitucional:
Sem embargo, quanto às normas internacionais atinentes aos Direitos do Homem, importa especificar de seguida algumas particularidades em tomo de dois pólos fundamentais: por um lado, a questão da relevância na ordem interna das normas da Declaração Universal dos Direitos do Homem (que constitui um caso particular por força da referência que expressamente se lhe faz no nº 2 do artigo 16º da Constituição), bem como das normas constantes da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos Pactos Internacionais nas decisões do Tribunal Constitucional; por outro, a especificidade das condições de vigência na ordem interna do direito das Comunidades Europeias.
Como já referimos, o artigo 16º, nº2 da Constituição manda interpretar e integrar os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim sendo, resulta que foi intenção do legislador constituinte português de 1976 que os próprios preceitos constitucionais sobre a matéria fossem objecto de operações de interpretação e de integração na procura do seu sentido conforme à Declaração Universal, o que se mostra tanto mais fácil quanto a própria Declaração foi, ela própria, uma relevantíssima fonte de inspiração da elaboração dos preceitos constitucionais em causa.[56]
A doutrina tem-se, aliás, mostrado dividida quanto ao alcance desta, regra constitucional, designadamente nos casos em que se possa verificar contradição entre normas da Constituição e regras constantes da Declaração [57], designadamente quanto à possibilidade de estas últimas prevalecerem sobre aquelas. Há quem afaste de todo em todo qualquer possibilidade de prevalência das normas da Declaração, há quem entenda precisamente o contrário [58] e quem defenda posições mais matizadas.[59]
O Tribunal Constitucional, por seu turno, nunca foi chamado a resolver uma situação onde estivesse em causa a opção pela aplicação prevalecente de uma das normas em confronto ( ou da Constituição ou da Declaração Universal), sem prejuízo de, por diversas vezes e em sede de fiscalização concreta, os recorrentes invocarem preceitos da D.U.D.H. (bem como da C.E.D.H. e dos Pactos Internacionais das Nações Unidas ) como integrando o "bloco de constitucionalidade" que pretendem ver considerado como parâmetro de aferição da validade de normas de direito interno.
Dito de outro modo, à luz da recepção ou reconhecimento das normas das convenções internacionais sobre protecção e garantia dos Direitos do Homem a que procede o artigo I6º, nº º, da Constituição portuguesa, a jurisprudência constitucional não reconheceu até ao momento, pelo menos de forma sedimentada e inequívoca, um estatuto (hierárquico) privilegiado em termos de se lhes atribuir uma natureza "constitucional" ou de as erigir em padrão autónomo e directo para um juízo de constitucionalidade sobre as normas legais internas. Sem. embargo, é já significativa e uniforme a jurisprudência constitucional que reconhece o relevo desses instrumentos internacionais enquanto elementos coadjuvantes e clarificadores da interpretação dos preceitos da Constituição relativos aos direitos fundamentais.
Assim pode-se dizer, neste capítulo, que a jurisprudência constitucional tem-se orientado essencialmente no sentido de considerar que as convenções internacionais sobre protecção e garantia dos Direitos do Homem constituem sobretudo elementos adjuvantes de interpretação e de integração dos preceitos constitucionais, sem, contudo, representarem individualizadamente parâmetros autónomos, a se, de aferição da validade dos actos normativos impugnados.
Com efeito, esta orientação jurisprudencial foi iniciada pela Comissão Constitucional [60] , nos seus Acórdãos nº 108 e 120 [61], onde se reconhece e faz aplicação do entendimento segundo o qual, por força do disposto no nº 2 do artigo 16º da Constituição, os preceitos constitucionais e legais atinentes aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal. Estando em causa naqueles dois arestos situações concretas decorrentes de uma lei com valor constitucional (a Lei nº 8/75), cuja aplicação envolvia, em certa medida, uma derrogação do princípio nu/um crimen sine lege, sine poena, lei essa mantida em vigor por uma disposição final e transitória da própria Constituição de 1976 ( artigo 309º da redacção originária), a Comissão entendeu que à luz do artigo 11º da D.U .D.H. se deveria optar, dentro das possíveis interpretações do artigo 309º por aquela que de forma mais relevante atenuasse o possível desrespeito do aludido princípio.
Posteriormente, a mesma Comissão Constitucional foi confrontada com uma situação onde estava em causa apurar da violação do princípio da não discriminação face ao disposto na Constituição portuguesa (artigo 13º, nº 2 ) e face aos instrumentos de direito internacional que de igual forma o acolhem. [62] Desta feita a norma impugnada constava da Lei do Serviço Militar [63] e dispunha que em igualdade de classificação ou de graduação para provimento, por concurso, em cargos do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público ou equiparadas, teriam preferência os indivíduos que tivessem cumprido serviço efectivo nas forças armadas.
Considerada tal norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade constante do nº 1 do artigo 13º da Constituição, a Comissão Constitucional equacionou a questão da violação do princípio da não discriminação em função do sexo, postulado pelo nº 2 do artigo 13º da Constituição portuguesa [64], e depois de referenciar os instrumentos internacionais vigentes em Portugal que consagram expressamente o aludido princípio [65], sublinha, contudo, o diferente alcance da consagração do princípio em causa na Declaração Universal e na Constituição portuguesa, aferido em duas dimensões distintas:
- por um lado, o preceito constitucional português consagra um princípio de não discriminação relativo, na medida em que esta só se apura em função de um certo número de critérios limitativamente indicados, enquanto na Declaração Universal se contém um princípio de não discriminação absoluto, na medida em que os critérios nela referidos o são a título meramente exemplificativo, interpretação que resulta necessariamente da utilização da expressão "nomeadamente";
- por outro lado, o princípio da não discriminação constante da Convenção só diz respeito aos direitos e deveres nela consagrados, por forçado disposto no seu artigo 2º, enquanto na Constituição portuguesa, em virtude do princípio da "cláusula: aberta " dos direitos fundamentais constante do nº 1 do artigo 16º já atrás assinalado, o princípio da não discriminação também pode - e deve - ser aferido em relação aos direitos consagrado: ou a consagrar, por via legislativa, ordinária ou convencional.
Neste contexto, a Comissão acabou por se pronunciar pela inconstitucionalidade do preceito em causa, também por violação do princípio da não discriminação consagrado no nº 2 do artigo 13º da Constituição, ainda que para a delimitação dos contornos de tal princípio se tenha socorrido dos aludidos texto: internacionais .
Esta linha de orientação jurisprudencial foi retomada, no seu essencial, pelo Tribunal Constitucional, de que se passam a referir os arestos mais relevantes.
Desde logo, no Acórdão nº 6/84 [66], onde estava em causa saber se um dispositivo do Regulamento de Transportes em Automóveis que obrigava o pessoal que presta serviço nos veículos empregados em transporte colectivo de passageiros: apresentar-se "devidamente uniformizado e barbeado" violaria o direito de personalidade (direito à imagem) consagrado no artigo 26º da Constituição Portuguesa.
Embora o citado normativo constitucional, na redacção anterior à segunda revisão constitucional, não referisse expressamente, entre os direitos de personalidade nele contidos, o "direito à, imagem", o Tribunal entendeu que o ordenamento constitucional português consagrava, em diversos normativos, o direito geral de personalidade, cujo estatuto resultaria, aliás, reforçado pelas regras constantes dos números 1 e 2 do artigo 16º da Constituição, em virtude de o artigo 26º, nº 2, da D.U.D.H. referir, ainda que incidentalmente, a plena expansão da personalidade humana e de o artigo 22º estabelecer que todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à realização dos direitos indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Paralelamente, o Tribunal invocou também o regime do artigo 29º, nº 1, da D.U.D.H. quanto aos deveres do homem para com a sociedade, na qual o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade é possível, bem como do seu "nº 2, no qual se declara que no exercício dos seus direitos e liberdades, todo o homem estará sujeito apenas às limitações determinadas por lei exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. Mas ao invocar o disposto no artigo 29º da D. U .D.H., o Tribunal concluiu que o seu regime coincide, no essencial, com a regra do nº 2 do artigo 18º da Constituição portuguesa, que determina que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Pelo que não julgou inconstitucional a aludida norma legal, tendo recorrido à D.U.D.H. para reforçar o entendimento do direito de personalidade em causa.
Também no Acórdão nº14/84 [67] , onde estava em causa a fixação legal da "justa indemnização" devida aos proprietários de terrenos rústicos na Região Autónoma da Madeira que deles se viram desapossados em virtude de uma medida de intervenção económica (remição da colonia) em benefício dos rendeiros, o Tribunal concluiu que a interpretação do artigo 62º da constituição ( sobre direito de propriedade ) não resultava alterada por força do disposto no artigo 17º da D .U .D .H. , uma vez que o seu nº2 dispõe que "ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade" e o Tribunal afirmou que a extinção da colonia não se podia ter por arbitrária.
Na mesma linha de orientação, refira-se ainda o Acórdão nº 63/85 [68], em que estava em causa a apreciação da constitucionalidade de uma norma da Lei de Imprensa [69] que presumia ser o director do periódico o autor de escritos não assinados ou de escritos subscritos por pessoas insusceptíveis de responsabilizar-se por se ignorar quem sejam. O Acórdão recorrido ( da Relação do Porto) havia considerado inconstitucional a norma em causa, uma vez que " a nossa lei fundamental, no nº 2 do artigo 32º, determina que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, em consonância com o nº 2 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em que se prescreve que toda a pessoa acusada de uma infracção se presume inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada". O Tribunal Constitucional, por seu turno, julgou a norma como não sendo inconstitucional, e para efeitos de interpretação do normativo constitucional recorreu ao disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que dispõe que " toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público", dispositivo este que, por força do artigo 16º, nº 2, da Constituição portuguesa, constitui " elemento adjuvante de interpretação, e mesmo de integração, do princípio expresso no artigo 32º, nº 2, da lei básica " [70].
Ainda neste mesmo sentido, podem referir-se como acolhendo a tese da natureza dos instrumentos internacionais de protecção e garantia dos Direitos do Homem como meros elementos adjuvantes da interpretação e integração de preceitos constitucionais e legais, os Acórdãos nº 99/88 e 149/88 Tribunal Constitucional.[71]
No primeiro dos arestos estava em causa a norma do Código Civil português [72] que regula a caducidade do direito de acção de investigação da paternidade, que a recorrente entendia violar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (sem indicação de qualquer norma específica), bem como o disposto no artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O Tribunal entendeu que não cabia apreciar a questão da conformidade da norma impugnada face aos aludidos instrumentos internacionais quer porque tal controlo estava excluído enquanto tal da esfera de competência do Tribunal quer porque, vistas as coisas na perspectiva material, o parâmetro constitucional invocado, o princípio da igualdade ínsito no artigo 13º da Constituição da República, se afigurava como suficiente para resolver a questão colocada ao Tribunal, pois que o sentido útil do preceito constitucional consumia por inteiro a regra de não-discriminação constante do artigo 14º da Convenção Europeia. [73]
No segundo aresto, estava também em causa a invocação da violação do princípio da igualdade, imputada à norma do Código Penal português [74] que determina que a suspensão da execução da pena de multa só pode ser decretada a quem não tenha possibilidade de a pagar , tendo o recorrente invocado a violação do artigo 2º, nº 1, da Declaração Universal e do artigo 2º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Do mesmo modo o Tribunal afastou estes preceitos do "bloco de constitucionalidade" enquanto tais e decidiu a questão apenas à luz do artigo 13º da Constituição [75].
Mais recentemente o Tribunal proferiu um aresto que se pode considerar tributário da mesma linha de orientação jurisprudencial, o Acórdão º 222/90 [76], onde a recorrente propugnava para que fosse julgada inconstitucional a norma do Código de Processo Civil [77] que permite o conhecimento pelo juiz, no despacho saneador, de excepções, uma vez que entendia que o disposto nos artigos 211º e 20º, nºs 1 e 2, da Constituição, interpretados e integrados à luz do artigo l0º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (e do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, "cujo carácter constitucional invocou"), impõem que em processo cível (tal como em processo penal) um processo não possa ser julgado pelo Tribunal sem a precedência de uma audiência de julgamento, pública e equitativa, sustentando, pois, ter havido no caso violação do princípio do contraditório em processo civil. O Tribunal colocou, mais uma vez, a questão de saber se cabia na sua esfera de competência "o controlo da conformidade de normas internas com princípios jurídico- internacionais em matéria de direitos fundamentais (ou direitos do homem) recebidas in foro domestico por força da própria Constituição ou seja, a questão de saber se ainda tais princípios jurídico internacionais podem e devem ser tomados como parâmetros directos para a emissão de um juízo de (in)constitucionalidade", de que dependia a valoração do artigo 6º da Convenção como parâmetro do aludido juízo, mas eximiu-se de novo a responder, uma vez que considerou que " o preceito em apreço da Convenção Europeia é, afinal, coincidente, no seu sentido e alcance (e inclusive no seu teor verbal), com o artigo 10º da Declaração Universal", cuja consideração, enquanto padrão orientador e integrador dos pertinentes preceitos constitucionais, já é admissível para efeitos de formulação de um juízo de constitucionalidade, por força do disposto no artigo 16º da Constituição.
Assim, apreciando os preceitos constitucionais invocados pelo recorrente, iluminados pelo artigo 10º da D.U.D.H., o Tribunal não julgou inconstitucional o aludido preceito do Código de Processo Civil, por entender que nem o texto constitucional, nem a Declaração Universal postulam a necessidade de, em todos os casos, a decisão final de um processo judicial ser precedida de uma audiência de julgamento, por- quanto esta conclusão não fere quer o princípio do "acesso a um tribunal" quer o princípio do "julgamento equitativo e público", sublinhando-se que a tese contrária não poderia deixar de ser entendida como revestindo-se de um carácter "manifestamente excessivo". [78]
Registe-se ainda que o Tribunal sublinha que tal conclusão se mostra conforme com a jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, que já teve ocasião de decidir, com referência ao artigo 6º, nº 1, da Convenção, que "sempre que o carácter e comportamento pessoal da parte não sejam elementos que contribuam de forma directa na formação da opinião do tribunal o processo inteiramente escrito pode satisfazer às exigências desse preceito" (decisão de 24 de setembro de 1963, no Annuaire de la Convention Européenne des droits deli' H omme , VI, 521, apud Pinheiro Farinha, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada, pág. 31).Finalmente, refira-se que o Tribunal Constitucional, nos arestos que proferiu quanto à conformidade constitucional do disposto no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa decorrente do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 1934 [79], nos quais estava em causa o princípio da existência de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto em processo criminal, deduzível do disposto no nº1, do artigo 32º, da Constituição [80], socorreu-se, como elementos interpretativos e integradores do aludido preceito constitucional, quer da Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11º) quer da Convenção Europeia (artigo 6º, nº 2), quer do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 14º, nºs 2 e 3) .Conforme se escreve no Acórdão nº 401/91, "o cotejo destes textos de direito internacional, se marca o sentido de uma evolução na óptica do que ora nos interessa apurar , não deixa também de sublinhar que nem os dois primeiros (a Declaração Universal e a Convenção Europeia), nem a própria Constituição da República, consagram expressamente, entre as garantias de defesa, o duplo grau de jurisdição. Já o Pacto Internacional, de mais recente elaboração, reconhece claramente o direito ao recurso, ao dispor, no nº 5 do seu artigo 14º, que "qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei". Um tal entendimento mais exigente das garantias de defesa dos arguidos tem encontrado acolhimento quer na doutrina quer na jurisprudência, em termos tais que bem se pode ter por assente que o direito ao recurso tem cabimento no âmbito das " garantias de defesa" consagradas no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, se não mesmo, e desde logo, por força do " direito de acesso aos tribunais " constante do artigo 20º da nossa lei fundamental. "
Pelo que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do complexo normativo representado pela aludida norma do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição do assento do Supremo Tribunal de Justiça, e que vedava aos tribunais da relação reapreciar a matéria de facto nos processos crime julgados pelos tribunais colectivos de primeira instancia.
Um caso particular face a esta linha de orientação jurisprudencial constitui, sem dúvida, o Acórdão nº 219/89 já citado, na parte em que apreciou a conformidade constitucional do artigo 365º do Código de Processo Penal de 1929, do artigo 59º da Lei nº82/77, de 6 de dezembro e do artigo 8º do Decreto-Lei nº 269/78, de 1 de dezembro.Estava em causa um processo onde os arguidos eram pronunciados por um crime de "organização terrorista" [81], em que o juiz de instrução que proferiu o correspondente despacho de pronúncia foi igualmente o juiz presidente do tribunal colectivo que procedeu ao julgamento. Os recorrentes entendiam que as normas que prescrevem a autoria da pronúncia pelo juiz do julgamento eram materialmente inconstitucionais, por violação do disposto no nº 5, do artigo 32º, da Constituição [82] e ilegais, por violação do disposto no artigo 6º nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na análise que fez, o Tribunal (em secção) cotejou as normas impugnadas quer com o artigo 32º, nº 5, da Constituição, quer com o disposto no artigo 6º, nº 1, da C.E.D.H., tendo equacionado, em tese, duas perspectivas fundamentais quanto à solução da questão de fundo.
Por um lado, o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado, não resultaria violado pelos aludidos preceitos legais que apontam para que o tribunal de pronúncia seja também o do julgamento (julgamento em tribunal singular) ou para que o juiz da pronúncia venha a participar do julgamento (julgamento em tribunal colectivo ou com intervenção de júri), se o despacho de pronúncia tiver apenas uma dimensão garantística, ou seja, se a pronúncia não exceder significativamente a acusação, limitando-se, por isso, a deferir o pedido de acusação não indo para além dele.
Por outro, haveria violação do principio do acusatório se o despacho de pronúncia fosse além da acusação ("despacho de pronúncia com dimensão acusatória"), designadamente através da descrição de novos procedimentos do acusado, correspondentes a elementos essenciais do crime por que foi acusado ou integradores de um tipo penal diverso. Neste caso, havendo violação do princípio do acusatório insito no nº 5 do artigo 32º da Constituição, haveria também violação da garantia de imparcialidade constante do artigo 6º, nº 1, da C.E.D.H., o que prefigura um vício de inconstitucionalidade, por desrespeito do princípio da superioridade hierárquica das normas convencionais internacionais, decorrente do artigo 8º, nº 2, da Constituição, bem como do princípio pacta sunt servanda, acolhido no artigo 8º, nº 1 da lei fundamental portuguesa.
Sem prejuízo de equacionar a questão nestes termos, o Tribunal acabou por entender que, no caso, o despacho de pronúncia tinha mera vocação garantística, pelo que na aplicação das normas em causa ao processo não detectou qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade por violação de convenção internacional.[83]
3.3. Utilização da norma internacional referente aos Direitos do Homem como fonte de inspiração.
Conforme resulta do que já atrás se deixou exposto, a relevância das normas de direito internacional convencional enquanto fontes inspiradoras das soluções normativas de direito interno pode ser perspectivada em diferentes planos, a que ora aludiremos apenas em síntese.
Desde logo, a própria Constituição de 1976 recolheu em múltiplos dos seus normativos, no momento constituinte da sua formulação, o contributo desses textos de direito internacional, a ponto de adoptar, quanto à Declaração Universal, a solução do artigo 16º nº 2, cometendo-lhe expressamente uma função orientadora quanto à interpretação e à integração dos preceitos constitucionais e legais atinentes à matéria dos direitos fundamentais (à que acresce a projecção específica do princípio da "cláusula aberta"). Neste contexto pode falar-se de uma obrigação constitucional de recurso à D.U.D.H. com o sentido, o alcance e as dificuldades atrás assinaladas.
Paralelamente, nada na Constituição portuguesa impede que o juiz constitucional [84] faça aplicação directa de regras ou princípios de convenções internacionais de que Portugal seja parte para efeitos de conformação das suas decisões. Só que, embora com as excepções também já assinaladas, o Tribunal Constitucional não tem integrado as normas das aludidas convenções internacionais no "bloco de constitucionalidade" de forma directa e autónoma, antes chamando-as à colação por referência a princípios e regras constitucionais e enquanto elementos adjuvantes de interpretação e integração, o que deixa em aberto a definição da sua específica posição no quadro das fontes normativas. A este circunstancialismo não será decerto alheio o facto, também já referido, de a Constituição portuguesa acolher um extenso catálogo de direitos fundamentais que ou coincide com o elenco dos direitos constantes dessas convenções internacionais ou mesmo, em certos domínios, o ultrapassa. [85]
Deste quadro resulta que frequentemente o Tribunal Constitucional faz expressa menção de normas internacionais, em especial da Declaração Universal, na fundamentação das suas decisões, em obediência ao preceito do artigo 16º, nº 2, da Constituição e, embora de forma menos frequente, chame à colação a jurisprudência formulada pelos órgãos jurisdicionais de controlo e garantia desses instrumentos de direito internacional, em especial da Comissão dos Direitos do Homem no âmbito da Convenção Europeia.
Referência especial merece a questão da vigência na ordem interna do direito das Comunidades Europeias, como ao longo do presente texto já por diversas vezes deixamos entrever .
Com efeito, Portugal passou a ser membro de pleno direito das Comunidades Europeias em 1 de janeiro de 1986, encontrando-se, desde então, vinculado ao ordenamento jurídico comunitário por força do Tratado de Adesão. Tendo em vista essa adesão, a revisão constitucional de 1982 aditou, ao artigo 8º da Constituição, um nº 3 que dispunha (na redacção da primeira revisão constitucional) que "as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos". Na revisão constitucional de 1989 eliminou-se o inciso" expressamente ", no essencial para contemplar o caso das directivas de efeito directo, uma vez que este específico efeito não se poderia ter por compreendido no âmbito de estatuição dos tratados constitutivos das Comunidades.
O sentido e alcance deste preceito, quando cotejado com o disposto no nº 2 do mesmo normativo, tem suscitado diversas posições doutrinárias que, sendo convergentes quanto ao reconhecimento do "efeito directo" do ordenamento comunitário, já o não são quanto à questão do "primado do direito comunitário". [86]
Conforme já se referiu, os Tratados das Comunidades (e o próprio Tratado de Adesão) não foram sujeitos, até ao momento, a qualquer tipo de controlo de constitucionalidade, pelo que verdadeiramente o Tribunal Constitucional nunca foi confrontado com a questão da posição hierárquica do Direito Comunitário na ordem interna. Sem embargo, alguns arestos posteriores a 1986 acabam por abordar, directa ou indirectamente, temas atinentes ao ordenamento jurídico comunitário.
Foi o caso do Acórdão nº 184/89 [87], onde o Tribunal se pronunciou sobre as disposições de direito interno tendentes a dar execução a um regulamento comunitário - Regulamento de Aplicação ao Território Nacional do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), anexo à Resolução do Conselho de Ministros nº 44/86, publicada no Diário da República, I Série, de 5 de junho de 1986 (referente ao Regulamento do Conselho de Ministros da C.E.E. nº 1787/84, de 19 de junho de 1984, publicado no Jornal Oficial nº 169) -. Neste caso, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do Regulamento interno com força obrigatória geral, por entender que a aprovação das disposições de direito interno de execução das normas comunitárias deve reger-se pelas normas constitucionais portuguesas relativas à competência dos órgãos e à forma dos actos normativos, o que não havia sucedido no caso. O Tribunal não formulou expressamente, neste aresto, qualquer juízo valorativo quanto à natureza específica do direito comunitário nem quanto ao seu lugar na ordem jurídica interna.[88]
Posteriormente, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 163/90 [89], foi confrontado com um recurso interposto de uma decisão do Tribunal da Relação do Porto onde os recorrentes invocaram a inconstitucionalidade do disposto no artigo 678º, nº1, do Código de Processo Civil, que dispõe que não cabe recurso nos processos em que o valor da causa não é superior à alçada do tribunal de que se recorre. Considerando que a Constituição portuguesa consagra, designadamente no nº 1 do seu artigo 20º, um "direito a um duplo grau de jurisdição", direito esse que igualmente consubstancia um princípio comum de direito comunitário decorrente do artigo 168º- A do Tratado C.E.E., os recorrentes solicitaram ao Tribunal Constitucional que este procedesse a um "reenvio prejudicial", nos termos do artigo 177º do mesmo Tratado, para apurar se o Tribunal de Justiça das Comunidades entendia que do referido artigo 168º- A se poderia retirar um tal princípio geral de duplo grau de jurisdição para efeitos de protecção de direitos fundamentais e restrito a matérias de direito.
Neste aresto o Tribunal analisou com pormenor o mecanismo do "reenvio prejudicial", entendido como "instrumento ao serviço do primado ou da primazia da ordem jurídica comunitária " , quer quanto à sua função quer quanto às condições do seu processamento, e embora colocando em dúvida que estivesse em causa uma verdadeira e própria questão de interpretação de um normativo comunitário [90], decidiu não promover o pretendido "reenvio prejudicial" por ser manifesto que a questão de interpretação de uma norma comunitária suscitada pelos recorrentes não era pertinente para a resolução do litígio em apreço. Do Acórdão a que nos vimos reportando não resulta, contudo; nenhuma afirmação ineludível quanto à questão das relações entre o direito interno e o direito comunitário, mas alguns autores, comentando-o, sublinham que "les principes généraux auquels il a souscrit, ainsi que la façon claire et nette dont il en a tiré les conséquences qui s'imposaient en l’espèce permettent de prévoir que le Tribunal Constitucional portugais ne s ' éloignera pas des grands principes dégagés par la Cour de Justice a propos de la question des rapports entre le droit communautaire et le droit constitutionnel national" [91]. Mas por enquanto esta conclusão, conforme resulta do seu texto, constitui sobretudo uma previsão.
Ainda num domínio relacionado com o Direito Comunitário, registe-se que o Tribunal Constitucional, em dois arestos [92], entendeu estar preenchido o requisito constitucional quanto ao sentido de uma autorização legislativa conferida pela Assembleia da República ao Governo pela remissão para um regulamento comunitário que deveria constituir fonte orientadora da normação interna sobre direitos niveladores de carne de bovino importada.
3.4. Preocupações de autonomia do juiz constitucional.
O quadro acabado de descrever, nas suas diversas vertentes, põe em evidência que o juiz constitucional português, até ao presente momento, tem procurado encontrar no ordenamento constitucional as soluções para as questões de constitucionalidade atinentes aos Direitos do Homem, de tal forma que a invocação das pertinentes convenções internacionais não desempenha um papel central na ratio decidendi dos casos apreciados, mas apenas elemento adjuvante de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais internos. Sem embargo, esta metodologia, que regista as excepções assinaladas e que levou mesmo uma das Secções do Tribunal (a 1ª) a afirmar expressamente o princípio da primazia do direito convencional internacional sobre o direito interno de origem legal, se pode ser tida como expressão de uma certa "reserva de autonomia "do juiz constitucional português, traduz uma atitude que deve ser entendida quer à luz da influência dos textos internacionais sobre a formulação dos próprios preceitos constitucionais portugueses, quer à luz do especial papel que a Constituição expressamente reconhece à Declaração Universal dos Direitos do Homem.
IV - Apreciação pelos orgãos internacionais de controlo da actividade do juíz constitucional
4.1. Condições em que pode ocorrer um tal controlo.
Conforme já se teve ocasião de dizer, o ordenamento constitucional português não prevê a figura da "queixa constitucional" (Verfassungsbeschwerde), isto é, a possibilidade de os particulares demandarem directamente o Tribunal Constitucional, para efeitos da tutela dos seus direitos fundamentais com fundamento na violação de uma norma constitucional. E embora algumas vozes preconizem a introdução de tal figura em futura revisão constitucional [93], pode-se dizer que, as condições legalmente facultadas às partes para abrirem a via do controlo de constitucionalidade em sede de fiscalização, concreta têm correspondido a uma eficaz tutela dos 'Direitos do Homem na generalidade dos casos.
Com efeito, como resulta do disposto nos artigos 280º da Constituição e 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, as partes podem, no decurso de um processo judicial, suscitar a inconstitucionalidade de normas que venham ou possam vir a ser aplicadas pelo juiz da causa, provocando a apreciação dessa questão pelo próprio tribunal do processo principal, e desta forma preenchendo um dos pressupostos de ulterior interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez esgotados os recursos ordinários que no caso caibam.
O controlo do Tribunal Constitucional é, assim, um “'controlo terminal", restrito à questão de constitucionalidade, que opera depois de esgotado o poder jurisdicional dos demais tribunais e, em caso de proceder o pedido, a decisão do Tribunal traduz-se num comando de reforma pelo tribunal recorrido da decisão por este proferida em conformidade com o juízo de (in)constitucionalidade emitido pelo mais alto órgão de administração da justiça em sede jurídico-constitucional.
Em função do volume de casos decididos neste tipo de recursos [94] e do crescente número de processos entrados, bem pode dizer-se que o sistema de fiscalização concreta em Portugal não parece apresentar obstáculos nem dificuldades de monta à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos [95]. Circunstância que contrasta com o limitado número de casos em que os cidadãos portugueses recorrem às instâncias internacionais de tutela dos Direitos do Homem [96], sem prejuízo da assinalável frequência com que, nestes casos, o fundamento invocado seja precisamente o do atraso na administração da justiça [97].
Finalmente, refira-se que "aos particulares é reconhecido ainda um específico "direito de queixa" junto do Provedor de Justiça, que pode versar sobre uma questão de constitucionalidade, sendo, pois, de admitir que o Provedor, caso reconheça procedência à questão em causa, venha a accionar o mecanismo previsto na alínea d), do nº 2, do artigo 281º, da Constituição, tendente ao controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade de normas jurídicas.
Conhecida como é a jurisprudência tanto da Comissão como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quanto às condições de admissibilidade da queixa individual prevista no artigo 25º da Convenção Europeia, é em função das circunstâncias concretas de cada caso que se pode aferir se foi ou não efectiva- mente respeitado o princípio da exaustão dos meios internos de tutela.
Abordando a questão do recurso para o Tribunal Constitucional como integrando os meios internos sem cuja exaustão não cabe a abertura da via de acesso às instâncias internacionais de controlo, FAUSTO DE QUADROS [98], afirma que " se é verdade que o acesso do cidadão aos tribunais constitucionais é considerado, quer na prática da Comissão, quer na jurisprudência do Tribunal, um meio teoricamente a exaurir, não o é quando esse acesso não se encontra na total disponibilidade do interessado", como será o caso do sistema português. Sobre o assunto, JOÃO RAPOSO [99] refere, por seu turno, que " a Comissão, afastando-se de certa jurisprudência internacional que restringia o âmbito de aplicação da regra da prévia exaustão dos meios internos aos recursos ordinários, privilegiou o aspecto da eficácia do procedimento a adoptar , não fazendo, por isso, distinção entre recursos ordinários e extraordinários ", ou seja, " têm que ser exauridos todos os recursos internos previstos por lei, desde que, em condições normais, permitam ao interessado obter a reparação do direito lesado".
Atentos os específicos condicionalismos do acesso dos particulares à justiça constitucional em Portugal, e tendo ainda em linha de conta que o recurso para o Tribunal Constitucional é um recurso restrito à questão de constitucionalidade, não custa, pois, compreender que não se deva ter por exigível, em regra, a interposição deste recurso para efeitos de acesso às instâncias de controlo internacional das convenções sobre protecção e garantia dos Direitos do Homem. A comprová-lo basta recordar que, dos seis casos em que houve lugar a condenação do Estado português pelo Tribunal "Europeu dos Direitos do Homem, apenas um foi previamente objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.[100]
4.2. Casos em que a actuação do juiz constitucional foi posta em causa perante os órgãos internacionais de controlo.
Neste particular, em função das características próprias do sistema de controlo da constitucionalidade em Portugal e atento até o limitado número de casos em que decisões de instâncias judiciárias nacionais foram objecto de apreciação pelos órgãos internacionais de controlo, bem se poderá dizer que até ao momento o juiz constitucional português não foi posto em causa por decisões daqueles órgãos internacionais.
Na realidade, das seis condenações verificadas no Tribunal Europeu até 1990, apenas uma se reporta a um caso que foi apreciado pelo Tribunal Constitucional, o caso Baraona.
Neste estava em causa uma acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública: o lesado pretendia uma indemnização pelos prejuízos materiais e morais decorrentes de um mandato ilegal de captura que o forçou a exilar-se e a abandonar os seus bens. A acção fora intentada em 30 de julho de 1981 e ainda não havia sido decidida à data em que o Tribunal Europeu proferiu a sua decisão (8 de julho de 1987), que, por isso, considerou ter havido violação do disposto no nº 1, do artigo 6º, da Convenção Europeia, e consequentemente condenou o Estado português a indemnizar o queixoso.
Com efeito, tendo o recorrente interposto a acção em causa na Auditoria Administrativa de Lisboa, o Ministério Público, enquanto representante do Estado, obteve, para efeitos de apresentação da contestação, uma prorrogação por três meses deferida na véspera do termo do prazo legal de contestação. No decurso desta prorrogação, o Ministério Público solicitou nova prorrogação por mais três meses e em 26 de abril de 1982, cerca de nove meses depois da citação, requereu uma prorrogação extraordinária por trinta dias, que renovou em 8 de junho de 1982 por mais trinta dias, tendo ainda obtido nova prorrogação extraordinária de trinta dias em 21 de julho de 1982.
Sem embargo, posteriormente e na sequência de alguns incidentes processuais, o juiz viria a mandar desentranhar as alegações do Ministério Público por intempestividade, facto que levou o autor a reclamar da especificação elaborada pelo juiz porquanto entendia que, uma vez desentranhada a contestação do Ministério Público, a esta peça processual deveriam ser levados, como provados, os factos alegados pelo autor, por falta de contestação, reclamação essa que foi desatendida pelo juiz da causa. Depois de recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo, que não concedeu provimento ao recurso, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo em vista ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 485º, alínea b ), do Código de Processo Civil, por violação do principio da igualdade das partes no processo, em virtude de a cominação legal de ter por confessados os factos alegados pelo autor e não contestados pelo réu não proceder quando este seja uma pessoa colectiva (no caso o Estado).
O Tribunal Constitucional, embora recordando que " não cabe a este Tribunal curar das vicissitudes processuais de que as sucessivas prorrogações de prazo, concedidas ao Ministério Público, para contestar, os autos tão flagrantemente dão conta ", limitou-se a apreciar a questão de constitucionalidade suscitada, acabando por concluir que a norma em causa não violava o princípio da igualdade processual das partes em virtude de " no caso que nos ocupa, a única situação de igualdade entre o autor e o réu na acção reside no facto de ambos serem parte na causa. São-no, porém, em posição diferente, assumindo essa diferença extraordinário relevo. E que um deles, o autor, pode estar, por si só, em juízo; o outro, o réu (neste caso o Estado ), não pode estar , por si só, em juízo, tendo de valer-se de um representante legal para o efeito. A qualquer pessoa colectiva, como o Estado, que tenha posição de réu numa acção judicial, como nesta acção aconteceu, se não contestar , não será aplicada a cominação da confissão dos factos alegados, como já se disse, pelo autor ."
O Tribunal Europeu, por seu turno, entendeu que as sucessivas prorrogações concedidas ao Ministério Público para contestar prolongaram indevidamente a tramitação do processo por dezasseis meses, e que o facto de a lei portuguesa permitir essas prorrogações sucessivas não exclui a responsabilidade do Estado, que deve adaptar a sua legislação às exigências da Convenção, razão pela qual, nem a complexidade do caso, nem a conduta processual do recorrente influíram decisivamente na duração do processo, mas para tal relevou apenas a conduta do Estado português [101].
Desta súmula resulta que a questão de constitucionalidade apreciada pelo Tribunal Constitucional não esteve no centro da decisão do Tribunal Europeu porquanto, para os efeitos de condenação à luz do artigo 6º da Convenção, não relevou a solução legal quanto à inaplicabilidade ao Estado do mecanismo da cominação da confissão decorrente da não contestação, mas sim o atraso na administração da justiça decorrente das prorrogações concedidas ao Ministério Público no tribunal de primeira instância.
Neste momento encontra-se pendente de apreciação pela Comissão uma queixa individual sobre a coincidência entre o juiz que profere o despacho de pronúncia e o juiz que preside ao julgamento em tribunal colectivo, situação sobre a qual recaiu, como já se referiu, o Acórdão nº 219/89 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou no sentido de não haver no caso uma inconstitucionalidade em virtude de o despacho de pronúncia apenas ter uma função garantística, já que se manteve dentro dos limites da acusação. [102]
Conclusão
Traçada esta panorâmica àcerca
dos mecanismos de protecção constitucional e de protecção
internacional dos Direitos do Homem podemos chegar à conclusão
de que os sistemas" de protecção em causa, no âmbito
do ordenamento jurídico português, não actuam de forma independente
entre si. O grau de "aproximação" ou de "complementaridade"
varia em função da específica natureza dos instrumentos
internacionais em presença, sendo mais íntima a relação
e maior a atracção entre o ordenamento constitucional português
e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, por força
de uma explícita imposição constitucional.
Mas este "sistema de vasos comunicantes " entre protecção na ordem interna e protecção internacional dos Direitos do Homem esteve também presente no momento da elaboração da própria Constituição portuguesa, a ponto de ela contemplar um elenco de direitos que praticamente recobre integralmente o catálogo de Direitos do Homem consagrado nas convenções internacionais em causa, bem como um regime quanto às restrições dos direitos fundamentais ( artigo 18º da Constituição) que se pode ter por mais exigente do que aquele que resulta daqueles instrumentos de direito internacional.
Estas circunstâncias explicam porque é que, sendo tais mecanismos de garantia dos Direitos do Homem simultaneamente cumulativos e sucessivos entre si, a justiça constitucional não tenha sentido necessidade, até ao momento e na generalidade dos casos, de tomar os princípios e regras das convenções internacionais como parâmetros autónomos de um juízo de inconstitucionalidade ( ou de ilegalidade em sentido amplo ), preferindo socorrer-se das aludidas regras e princípios como elementos adjuvantes de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais atinentes aos Direitos do Homem.
Neste quadro, embora se possam conceber mecanismos de protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos na ordem interna de acesso mais fácil e directo do que aquele que a Constituição portuguesa consagra (v .g. a queixa constitucional”), não é menos verdade que o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade vigente em Portugal tem provado, quer pela frequência com que é accionado no decurso de processos judiciais, quer pela escassez (e uma certa propensão monotemática) dos recursos interpostos junto das instâncias internacionais de controlo que tenham efectivamente a ver com decisões de constitucionalidade em sentido próprio.[103] Atendendo à complexidade dos requisitos de admissibilidade dos recursos, como, por exemplo, os exigidos pela Comissão e pelo Tribunal Europeus, não se pode efectivamente afirmar que o acesso a estas instâncias seja mais facilmente accionável que os mecanismos nacionais, com as limitações referidas.
Em face do que importa reconhecer que, embora seja escasso o número de casos onde existe uma certa relação de contiguidade entre as decisões do Tribunal Constitucional. português e as das instâncias internacionais de controlo das pertinentes convenções, os dois sistemas apresentam uma lógica interna que aponta para uma assinalável convergência interpretativa quanto ao fundo das questões em apreciação, pelo que já hoje há, e decerto continuará a haver, um amplo campo de coincidência que contribuirá para a formação de uma consciência democrática comum aos países que se reclamam de uma visão humanista dos direitos fundamentais.
ANEXO I
Tabela de correspondências
Artigos da Declaração Universal | Artigos da Constituição |
1º |
1º e 13º 13º 24º e 27º 25º 25º e 32º 26º 13º 20º e 268º 27º, 28º,29º e 30º 20º 32º 26º e 34º 44º 33º 26º 36º 62º 37º e 41º 37º 45º e 46º 48º, 49º e 50º 63º 55º e 58º 59º 59º, 63º, 64º e 68º 43º, 73º, 74º e 75º 42º e 78º 7º 18º |
Artigos da Convenção Europeia | Artigos da Constituição |
2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 11º 12º 13º 14º 17º 1º (Prot.1) 2º (Prot.1) 3º (Prot.1) 1º (Prot.4) 2º (Prot.4) 3º (Prot.4) 4º (Prot.4) 1º (Prot.6) 1º (Prot.7) 2º (Prot.7) 3º (Prot.7) 4º (Prot.7) 5º (Prot.7) |
24º 25º e 32º 25ºº 27º 20º 29º 26º e 34º 37º e 41º 37º 45º e 46º 36º 20º e 268º 13º - 62º 43º,73º, 74º, 75º, 76º e 77º 48º e 49º - 44º 33º 33º 24º 33º 32º 27º 29º 36º |
Artigos do Pacto Internacional dos direitos civis e políticos |
Artigos da Constituição |
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