Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
XIIª
Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus
As relações entre os tribunais constitucionais
e as outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência,
nesta matéria, da acção das jurisdições europeias
António de Araújo, Luís Miguel
Nogueira de Brito e Joaquim Pedro Cardoso da Costa, Assessores do Gabinete do
Presidente do Tribunal Constitucional, sob a orientação do Vice-Presidente
do Tribunal, Conselheiro Luís Nunes de Almeida
[Bruxelas, maio de 2002]
O presente relatório
segue, de perto, o questionário apresentado pela entidade organizadora
(a Cour d'Arbitrage da Bélgica) e está actualizado a 15/10/2001.
Os Acórdãos do Tribunal Constitucional citados, de 1998 ou posteriores,
também se encontram publicados na página oficial do Tribunal na
Internet.
I. O juiz constitucional, as outras jurisdições e o controlo de constitucionalidade
A. A organização jurisdicional do Estado
1. O sistema judicial
1. Apresentação de modo sucinto das diferentes ordens de jurisdição e respectivas competências. Eventual existência de jurisdições de Estados federados.
Nos termos do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (CRP), existem, além do Tribunal Constitucional, as seguintes categorias de tribunais:
– Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, o que corresponde à "jurisdição comum" (cível, penal, laboral);
– Supremo Tribunal Administrativo e demais tribunais administrativos e fiscais, o que corresponde à "jurisdição administrativa e fiscal";
– Tribunal de Contas.
A CRP (artigo 209º, nº 2) consigna ainda a possibilidade de existência de:
– tribunais marítimos;
– tribunais arbitrais;
– julgados de paz.Além disso, durante a vigência do estado de guerra, determina-se a constituição de tribunais militares com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar [1].
Finalmente, sendo Portugal um Estado unitário (CRP, artigo 6º), não existe, evidentemente, a possibilidade de constituição de tribunais de Estados federados. E, no quadro actual da CRP, nem sequer as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira poderão constituir tribunais regionais.
2. O juiz constitucional
2. Qual é o lugar do juiz constitucional no ordenamento jurídico do Estado? Se faz parte do poder judicial, qual o seu estatuto no seio desse poder?
Importa salientar, desde logo, que o sistema de fiscalização da constitucionalidade consagrado pela Constituição da República Portuguesa se caracteriza por uma elevada complexidade, abrangendo diversos tipos de controlo: (a) o controlo preventivo ou a priori; (b) o controlo abstracto sucessivo ou a posteriori; (c) o controlo concreto; (d) o controlo da inconstitucionalidade por omissão.
No que respeita ao controlo concreto da constitucionalidade, definiu a CRP uma solução original de compromisso entre o modelo norte-americano de controlo difuso (judicial review of legislation) e o modelo "austríaco" de controlo concentrado (Verfassungsgerichtsbarkeit). Trata-se de um sistema que vem sendo caracterizado como "misto" ou, se se preferir, "difuso na base e concentrado no topo". "Difuso na base", porque todos os juízes de todos os tribunais portugueses possuem "acesso directo à Constituição", já que a CRP lhes proscreve a aplicação, nos feitos submetidos a julgamento, de normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (CRP, artigo 204º). "Concentrado no topo", porque das decisões dos tribunais em matéria de constitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional, que decidirá como última e definitiva instância.
Feita esta apresentação sumária, poderá dizer-se que:
– todos os juízes de todos os tribunais portugueses são, ao cabo e ao resto, "juízes constitucionais"; ou, se se preferir a afirmação do Deputado Vital Moreira no momento da criação do Tribunal Constitucional, em Portugal "os juízes não são postos fora da Constituição"[2] . Com efeito, a eles está cometido o poder-dever de procederem, em primeira linha, à fiscalização da constitucionalidade, cabendo recurso das suas decisões para o Tribunal Constitucional;
– colocado no topo da hierarquia dos tribunais - pelo menos, no que se refere ao controlo da constitucionalidade - o Tribunal Contsitucional é um órgão constitucional autónomo que ocupa uma posição a se no ordenamento judiciário português, tal como decorre da norma do artigo 209º, nº 1, da CRP, que dispõe: "Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias tribunais (...)".
– vistas as coisas de uma perspectiva organizatória, já o Tribunal escapa ao "sistema" ou "sub-sistema judiciário" (à "organização dos tribunais"), pois que antes perfila-se como um sub-sistema a se, no quadro do sistema político global: a Constituição, de facto, ao autonomizá-lo em título próprio (o Título VI) da sua Parte III (relativa à "Organização do poder político", não o trata simplesmente como uma outra ordem de jurisdição, ao lado ou em paralelo com as restantes (v.g., a jurisdição comum e a jurisdição administrativa), mas como um outro órgão de soberania, a par (ou para além) dos classicamente enunciados (o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais - todos e cada um - em geral);
– esta posição singular do Tribunal Constitucional no seio do ordenamento judiciário português não permite, de modo algum, questionar a natureza jurisdicional deste órgão: desde logo, porque a CRP o integra na enumeração das diferentes categorias de tribunais (artigo 209º); e, depois, porque o qualifica como "o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional" (artigo 221º, itálico acrescentado) [3].
B. As competências do juiz constitucional e das outras jurisdições em matéria de controlo de constitucionalidade
1. O controlo das leis e outros actos
§ 1º – A natureza do controlo
3. Quais são os actos (de direito interno e de direito internacional) controlados pelo juiz constitucional em face das normas superiores da Constituição, dos princípios de valor constitucional e, eventualmente, das normas de direito internacional?
Em Portugal, o controlo de constitucionalidade é um controlo de normas jurídicas. As normas objecto dos diferentes tipos de fiscalização de constitucionalidade podem constar de lei ou de outros actos normativos do poder público. O Tribunal tem afirmado, através de uma reiterada jurisprudência, que o controlo de constitucionalidade é um controlo de normas, não um contencioso de decisões, seja qual for a sua natureza. Em traços gerais, encontram-se sujeitas ao controlo do Tribunal Constitucional as normas constantes de:
– tratados internacionais e acordos sob forma simplificada;
– actos legislativos ou com força de lei: leis da Assembleia da República, decretos-leis do Governo e decretos legislativos regionais;
– actos de natureza regulamentar, provenientes do Governo, dos Governos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, dos órgãos das autarquias locais, de certos magistrados administrativos (caso dos governadores civis nos distritos de Portugal Continental), de certas pessoas colectivas públicas e mesmo de certas entidades não públicas, em certos casos, quando disponham de poderes normativos delegados pelas entidades públicas [4].
Para efeitos de determinação do objecto do controlo, o Tribunal utiliza um conceito muito amplo de "norma", recorrendo a um critério simultaneamente funcional e formal. Como vem referindo o Tribunal, em jurisprudência uniforme e constante, são "normas" quaisquer actos do poder público que contiverem uma "regra de conduta" para os particulares ou para a Administração, um "critério de decisão para" para esta última ou para o juiz ou, em geral, um "padrão de valoração de comportamento". Trata-se, pois, de um conceito simultaneamente formal e funcional de norma, que não abrange somente os preceitos de natureza geral e abstracta, antes inclui quaisquer normas públicas, de eficácia externa, incluindo as que tiverem carácter individual e concreto, desde que constem de acto legislativo (dado que, neste caso, o único padrão de controlo ser a própria Constituição).
Com base nesse critério, o Tribunal admitiu fiscalizar a constitucionalidade de:
– leis-medida (Massnahmengesetz ou leggi-provedimento) e leis individuais e concretas;
– tratados-contratos internacionais;
– resoluções da Assembleia da República que suspendam a vigência de decretos-leis;
– assentos do Supremo Tribunal de Justiça;
– acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça;
– normas criadas pelo (juiz) intérprete "dentro do espírito do sistema" (artigo 10º, nº 3, do Código Civil) para colmatar lacunas da lei;
– regulamentos estabelecidos por tribunais arbitrais voluntários;
– actos específicos ou sui generis, como os que fixam as regras necessárias ao funcionamento e organização da Assembleia da República, fruto de autonomia normativa interna;
Atendendo ao critério formal e funcional de norma, tem-se entendido que poderão ser ainda objecto de controlo de constitucionalidade:
– as normas constantes de estatutos de associações públicas;
– os regulamentos emitidos pelas associações públicas ou outras entidades privadas por devolução de poderes de entidades públicas (por exemplo, certos regulamentos produzidos por sociedades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de federações desportivas);
– normas consuetudinárias, na medida e nos domínios em que são admitidas como fonte de direito interno (cf. os artigos 3º, nº 1, e 348º do Código Civil);
– normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal faça parte, vigentes na ordem jurídica portuguesa por força do nº 3 do artigo 8º da CRP (questão que, sublinhe-se, não foi ainda objecto de decisão por parte do Tribunal).
Por seu turno, não podem ser objecto de controlo pelo Tribunal Constitucional:
– os actos políticos stricto sensu ("actos de governo");
– as decisões judiciais em si mesmas;
– os actos administrativos;
– os actos jurídico-privados, como os negócios jurídicos, os estatutos de associações privadas, sociedades e cooperativas ou fundações submetidas ao direito privado [5].
4. Esta competência é exclusiva? Em
caso negativo, quais são as outras jurisdições competentes
nesta matéria?
O sistema de controlo de constitucionalidade traçado pela CRP define-se do seguinte modo:
– no que se refere ao controlo preventivo, ao controlo abstracto sucessivo e ao controlo da inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal Constitucional detém a competência exclusiva em matéria de fiscalização de constitucionalidade, decidindo como única e definitiva instância;
– no que se refere ao controlo concreto, todos os tribunais poderão proceder à fiscalização da constitucionalidade, mas das suas decisões caberá recurso - que, em certos casos (CRP, artigo 280º, nºs. 3 e 5), é obrigatório para o Ministério Público - para o Tribunal Constitucional, que decidirá como última e definitiva instância.
Poderá dizer-se, pois, que, numa primeira linha, todos os tribunais portugueses são competentes em matéria de fiscalização da constitucionalidade. Mas, em termos últimos e definitivos, detém o Tribunal o exclusivo do controlo de constitucionalidade.
5. O controlo exercido pelo juiz constitucional é
um controlo preventivo ou sucessivo?
A CRP e a Lei do Tribunal Constitucional (LTC) contemplam ambas as possibilidades. Assim:
– o controlo preventivo (CRP, artigo 278º), que incide sobre normas constantes de convenções internacionais que o Estado Português vá subscrever ou de decretos a ser promulgados como leis (da Assembleia da República) ou como decretos-lei (do Governo) e ainda sobre diplomas regionais (das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira);
– o controlo sucessivo, que assume duas modalidades: (a) controlo abstracto (CRP, artigo 281º), que incide sobre todas e quaisquer normas do ordenamento jurídico português, estejam ou não em vigor; (b) o controlo concreto (CRP, artigo 280º; LTC, artigo 70º), que prevê o recurso para o Tribunal Constitucional de um conjunto diversificado de decisões dos restantes tribunais em matéria de constitucionalidade.
6. O controlo exercido pelo juiz constitucional é um controlo abstracto
e/ou um controlo concreto?
V. a resposta à questão 5.
§ 2º – O acesso ao juiz constitucional
A. Os tipos de acesso
7. Quais são os modos de acesso ao juiz constitucional? Qual o número de decisões por cada via processual?
A CRP e a LTC prevêem, como já se referiu, quatro modos de acesso ao juiz constitucional: preventivo, abstracto sucessivo, concreto e controlo da inconstitucionalidade por omissão. Os particulares apenas dispõem de acesso através da fiscalização concreta da constitucionalidade, por intermédio de recurso das decisões de outros tribunais. O controlo concreto contempla, essencialmente, duas grandes modalidades de recursos:
– os recursos das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade - CRP, artigo 280º, nº 1, alínea a);
– os recursos das decisões dos tribunais que apliquem normas arguidas de inconstitucionais pelas partes ou que o Tribunal tenha já julgado inconstitucionais - CRP, artigo 280º, nº 1, alínea b), e nº 5.
Para além destas duas modalidades, a CRP, no artigo 280º, nº 2, prevê ainda o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais:
– que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado;
– que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República;
– que recusem a aplicação de norma constante de diploma emanado de um órgão de soberania com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma;
– que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas anteriores.
Em termos estatísticos, pode dizer-se que, no ano de 2000, foram proferidos as seguintes decisões no âmbito do controlo normativo da constitucionalidade:
– Fiscalização preventiva - 1 decisão;
– Fiscalização abstracta sucessiva - 22 decisões;
– Fiscalização concreta - 778 decisões;
– Fiscalização da inconstitucionalidade por omissão - 0 decisões.
Estes números revelam o peso esmagador que
a fiscalização concreta da constitucionalidade assume no contexto
da actividade do Tribunal Constitucional. Sublinhe-se, aliás, que estes
números não divergem dos de anos anteriores, o que exprime uma
tendência estrutural da justiça constitucional portuguesa; basta
referir, a título meramente exemplificativo, que 96% do total de decisões
proferidas em sede de controlo normativo de constitucionalidade no triénio
1993-1996 respeitaram à fiscalização concreta. Globalmente
considerado, pode dizer-se que, desde a entrada em funcionamento do Tribunal
Constitucional português, ocorrida em 1983, o controlo concreto representa
grosso modo mais de 90% do total
das decisões proferidas.
B. O recurso de anulação
8. Existe um recurso directo
perante o juiz constitucional contra as leis? E contra outras normas ou actos?
A anulação de actos normativos em vigor no ordenamento jurídico
português – mais precisamente, a declaração de inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, de quaisquer normas, conduzindo à
sua eliminação do ordenamento jurídico - é alcançada
através do mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva
da constitucionalidade.
9. Quem pode introduzir esse recurso e em que prazo?
Nos termos do nº 2 do artigo 281º da CRP, podem requerer ao Tribunal essa declaração de inconstitucionalidade as seguintes entidades:
– o Presidente da República;
– o Presidente da Assembleia da República;
– o Primeiro-Ministro;
– o Provedor de Justiça;
– o Procurador-Geral da República;
– um décimo dos Deputados à Assembleia da República;
– os Ministros da República, as assembleias legislativas regionais, os presidentes das assembleias legislativas regionais ou um décimo dos deputados à respectiva assembleia legislativa regional, quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se fundar em violação do estatuto da respectiva região ou de lei geral da República.
Esclareça-se ainda – e este é um dado interessante do sistema português de controlo da constitucionalidade – que o Tribunal pode ainda apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de quaisquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos – ou seja, no âmbito do controlo concreto da inconstitucionalidade (ou de certas espécies qualificadas de ilegalidade). Há, pois, um interessante mecanismo "de passagem" da fiscalização concreta para a fiscalização abstracta da constitucionalidade – que, no entanto, não opera automaticamente, necessitando de ser desencadeado através da apresentação de um requerimento (v.g. do Ministério Público) nesse sentido. Além disso, nestes processos de "generalização" dos juízos de inconstitucionalidade, não se encontra o Tribunal vinculado às suas anteriores decisões sobre a matéria: o Tribunal pode ter julgado uma norma inconstitucional em três casos de fiscalização concreta de constitucionalidade, depois, não declarar a sua inconstitucionalidade em processo de fiscalização abstracta. Isto por uma razão muito simples: as decisões do Tribunal em sede de fiscalização concreta são, em regra, proferidas em secção, ao passo que o controlo abstracto é sempre exercido pelo plenário. Deste modo, é possível que as três decisões que fundam o pedido de "generalização" hajam sido proferidas apenas por uma das secções do Tribunal, não tendo ainda os juízes das restantes duas secções tido ocasião de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade. Intervindo o plenário, estes juízes podem considerar que a norma em apreço não é inconstitucional, formando-se então uma maioria num sentido contrário ao das anteriores decisões tiradas sede de em controlo concreto da constitucionalidade.
Refira-se, por último, que não existe
qualquer prazo para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração
de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes, podendo mesmo solicitar-se
o controlo de normas que já não se encontrem em vigor e de normas
anteriores à Constituição da República de 1976.
10. O juiz constitucional pode suspender a vigência das leis ou de outras normas ou actos?
Não. A CRP e a LTC não conferem ao Tribunal Constitucional a possibilidade de suspender a vigência dos actos normativos que estão sujeitos ao seu controlo, seja no âmbito da fiscalização concreta, seja no âmbito da fiscalização abstracta sucessiva (a questão não se coloca, obviamente, no âmbito da fiscalização preventiva).
C. O reenvio prejudicial – a excepção de inconstitucionalidade
Quem pode aceder ao juiz constitucional?
11. Que jurisdições podem aceder ao juiz constitucional? Em caso de toda e qualquer jurisdição poder colocar uma questão, atribui-se ao conceito de "jurisdição" um sentido amplo ou, pelo contrário, restritivo?
Não existe em Portugal um mecanismo de "reenvio
prejudicial" para acesso ao Tribunal Constitucional. As questões
de constitucionalidade são-lhe colocadas em via de recurso das decisões
dos tribunais, interposto pelos particulares (partes no processo) e/ou pelo
Ministério Público, não podendo o juiz suscitar ex officio
qualquer questão de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional.
O juiz pode – e, aliás, deve – suscitar e resolver ele próprio
as questões de constitucionalidade, já que, nos termos do artigo
204º da CRP, está-lhe vedado aplicar normas que infrinjam o disposto
na Constituição ou os princípios nela consignados.
No que respeita ao conceito de "jurisdição", cabe recurso
das decisões judiciais provindas de:
– qualquer tribunal público, mas já não de um qualquer outro órgão de composição de conflitos (cf. os acórdãos nºs. 211/86, 230/86 ou 389/96);
– de qualquer tribunal arbitral que julgue stricto jure, mas já não quando julgue ex aequo et bono [6].
12. Os tribunais têm a obrigação
de suscitar a questão ao Tribunal?
Como se referiu, não há, por parte dos tribunais, qualquer possibilidade de suscitarem oficiosamente questões de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional. Se, porventura, entenderam que uma norma submetida a julgamento infringe o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, deverão recusar a sua aplicação (CRP, artigo 204º). Quando a norma cuja aplicação tiver sido recusada constar de convenção, internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar, é obrigatório o recurso para o Tribunal Constitucional por parte do Ministério Público (CRP, artigo 280º, nº 3). O recurso é directo para o Tribunal Constitucional e a sua interposição implica a interrupção dos prazos para a interposição dos recursos ordinários que coubessem na respectiva ordem dos tribunais.
13. Há a possibilidade de oposição
a uma decisão de reenvio para o Tribunal Constitucional?
A resposta a esta questão fica de certo modo prejudicada pelo que se disse na resposta às questões 11. e 12. Não havendo reenvio prejudicial para o Tribunal Constitucional, não há, pois, que falar nas formas de oposição a tal reenvio. Saliente-se apenas que as partes num dado processo judicial não podem opor-se à interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Uma vez apresentado um requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a parte recorrida pode, isso sim, contestar a sua admissibilidade (v.g. em contra-alegações), por considerar, designadamente, que não se encontram preenchidos os respectivos pressupostos processuais.
14. Como se realiza o acesso ao juiz constitucional?
Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, existem, como se referiu, duas grandes modalidades de recurso:
a) – os recursos das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade - CRP, artigo 280º, nº 1, alínea a);
b) – os recursos das decisões dos tribunais que apliquem normas arguidas de inconstitucionais pelas partes ou que o Tribunal tenha já julgado inconstitucionais - CRP, artigo 280º, nº 1, alínea b), e nº 5.a) – Constituem pressupostos da primeira categoria de recursos:
– que a recusa de aplicação ocorra numa decisão judicial;
– que a recusa de aplicação tenha por objecto normas jurídicas;
– que a decisão recorrida haja efectivamente recusado a aplicação de uma norma (ou normas) com fundamento em inconstitucionalidade.
Além destes pressupostos, exige-se, como requisito formal, que o recorrente indique a alínea do nº 1 do artigo 70º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie (LTC, artigo 75º-A, nº 1).b) – Por sua vez, constituem pressupostos da segunda categoria de recursos:
– que a aplicação ocorra numa decisão judicial;
– que essa aplicação tenha por objecto normas jurídicas;
– que a decisão recorrida haja efectivamente aplicado a norma (ou normas) arguida de inconstitucional;
– que o recorrente haja suscitado a questão de constitucionalidade "durante o processo";
– que se verifique uma exaustão dos recursos ordinários (LTC, artigo 70º, nº 2);
– que o recurso possua viabilidade, ou seja, que não se configure como manifestamente infundado;
– que o recorrente seja a mesma parte que preliminarmente haja suscitado a questão de constitucionalidade (CRP, artigo 280º, nº 4; LTC, artigo 72º, nº 2);
Além destes pressupostos processuais, exige-se, como requisito formal, que o recorrente indique a alínea do nº 1 do artigo 70º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie (LTC, artigo 75º-A, nº 1) e a norma ou princípio constitucional que se considera violado, bem como a peça processual em que se suscitou a questão da inconstitucionalidade (LTC, artigo 75º-A, nº 2).
15. Os tribunais que colocam a questão pronunciam-se
sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da norma em causa?
Sim, nos termos atrás indicados (v. a resposta à questão 11.), o juiz a quo tem o poder-dever de se pronunciar e decidir, em primeira linha, a questão de constitucionalidade. Deste modo, se o juiz recusou a aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, pronuncia-se naturalmente sobre o problema da conformidade daquela norma com a Constituição. Por outro lado, se o juiz aplica uma norma, não obstante uma das partes ter sustentado que ela era inconstitucional, está igualmente a pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade. Mais ainda: se a parte lhe colocou um problema de inconstitucionalidade, o juiz está obrigado a debruçar-se sobre ele, sob pena de omissão de pronúncia, o que constitui, nos termos do Código de Processo Civil, fundamento de nulidade da decisão judicial.
Refira-se, todavia, que das decisões dos tribunais a quo em matéria de constitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional.
A filtragem
16. Existe um mecanismo de filtragem que permite ao juiz constitucional limitar o número de questões ou de acelerar o seu tratamento (rejeição, resposta rápida, questão manifestamente infundada ou semelhança com questões a que já respondeu)? Qual a proporção de questões objecto dessa filtragem?
Ao contrário do que ocorre noutros sistemas, não dispõe o Tribunal Constitucional português de uma discretionary jurisdiction que lhe permita seleccionar, de acordo com critérios de relevância substantiva, os casos que lhe são submetidos a julgamento. Não possui, nomeadamente, um instrumento similar ao writ of certiorari do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos.
Existem, ainda assim, formas de aceleração processual e, designadamente, de "filtragem" dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade. Assim, a alteração à LTC produzida em 1998 (Lei nº 13-A/98, de 26 de fevereiro) veio introduzir um novo e importante mecanismo de filtragem dos recursos de constitucionalidade: a "decisão sumária" do juiz relator, que este profere quando entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso ou que a questão é simples, designadamente por já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, podendo tal "decisão sumária" consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal (LTC, artigo 78º-A, nº 1). Existe ainda a possibilidade de o juiz relator proferir uma "decisão sumária" quando o recorrente não preste todos os elementos a que se refere o artigo 75º-A da LTC (LTC, artigo 78º-A, nº 1). Da decisão sumária do relator pode reclamar-se para a conferência, a qual é composta pelo presidente ou pelo vice-presidente, pelo relator e por outro juiz da respectiva secção, que decidirá em definitivo se existir unanimidade dos juízes que integram a conferência. Caso não haja unanimidade, a decisão caberá ao pleno da secção (LTC, artigo 78º-A, nºs 3 e 4).
Até 1998, o relator podia elaborar uma exposição
preliminar de não conhecimento do recurso (ou de simples remissão
para jurisprudência anterior), mas era sempre necessário produzir
um acórdão, proferido por todos os juízes da secção.
A partir da alteração à LTC introduzida pela Lei nº
13-A/98, de 26 de fevereiro, é possível encerrar definitivamente
um processo através de uma decisão de apenas um juiz, não
sendo necessária a intervenção dos seus pares (excepto
em caso de reclamação para a conferência, como se viu).
Em termos estatísticos, podem avançar-se os seguintes números,
relativos ao ano de 2000:
– deram entrada 690 recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade;
– foram proferidas 474 decisões sumárias;
– dessas 474 decisões sumárias, existiram 119 reclamações para a conferência;
Não se pode afirmar que as 355 decisões sumárias que não foram objecto de reclamação para a conferência permitiram encerrar, de forma definitiva, mais de metade dos 690 recursos chegados ao Tribunal Constitucional no ano de 2000. É que, evidentemente, muitas dessas decisões sumárias poderão ter sido proferidas em processos transitados do ano anterior. No entanto, o cotejo entre o número de processos entrados e o número de decisões sumárias proferidas poderá fornecer a um observador externo uma imagem aproximativa da relevância deste novo instrumento de racionalização do trabalho do Tribunal Constitucional. Além disso, é importante sublinhar a diferença entre o número de decisões sumárias não reclamadas (355 decisões) e reclamadas (119 decisões), o que mostra uma elevada percentagem de decisões que, por não terem sido objecto de reclamação para a conferência, permitiram a conclusão expedita e célere de um número bastante significativo de processos entrados no Tribunal.
A extensão do acesso ao juiz constitucional
17. Qual o sentido das considerações de inconstitucionalidade proferidas pela jurisdição a quo? O juiz constitucional deve fundar-se nessas considerações ou pode ignorá-las? O juiz constitucional pode controlar normas não integradas na questão prejudicial mas que lhe estão associadas?
Nos termos em que se encontra formulada, esta questão prende-se naturalmente com o sistema de reenvio prejudicial que, como se referiu, não é acolhido no ordenamento jurídico português.
Em face disso, deve dizer-se apenas que, nos termos do artigo 79º-C da LTC, relativo aos poderes de cognição do Tribunal, este só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado a aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada. Ou seja: o Tribunal está limitado ao controlo das normas que integram o objecto do recurso, mas não aos fundamentos invocados pelos recorrentes ou pelo juiz a quo. Assim, o juiz a quo pode entender que a norma X viola a norma ou o princípio constitucional Y e o Tribunal concluir que tal norma é inconstitucional, mas por violação da norma ou princípio constitucional Z.
18. O juiz constitucional é interpelado em
relação a todos os aspectos, quer de direito, quer de facto, do
litígio existente na jurisdição a quo?
Não. O controlo exercido pelo Tribunal Constitucional é um puro controlo de normas, que não das decisões judiciais em si mesmas consideradas. Ainda assim, deve sublinhar-se que, apesar de não existirem em Portugal institutos do tipo "queixa constitucional" (Verfassungsbeschwerde), "recurso de amparo" ou "acção constitucional de defesa" contra actos não normativos, a jurisprudência do Tribunal tem permitido, ainda que de forma lateral ou mitigada, alcançar alguns dos efeitos desses institutos, designadamente quando admite a sindicabilidade das normas numa determinada interpretação - a interpretação acolhida na decisão recorrida. Na verdade, como o Tribunal vem observando, através de uma abundante e reiterada jurisprudência, a questão de constitucionalidade tanto pode respeitar a uma parte (ou a uma parte dela) como também à interpretação ou sentido com que foi tomada no caso concreto e aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida (cf., por exemplo, os acórdãos nºs. 106/92, 151/94, 238/94, 612/94, 243/95, 342/95 ou 18/96).
Esta abertura à possibilidade de controlo de
normas numa dada interpretação
conduz, pois, o Tribunal a uma fiscalização que, sem abandonar
o "referente normativo", pode envolver uma análise dos elementos
de facto existentes no processo. Melhor dizendo: ao apreciar a constitucionalidade
de uma norma com o sentido que lhe foi imprimido pela decisão recorrida,
terá o Tribunal, muitas vezes, de proceder também a uma indagação
do quadro factual em que se situa aquela decisão.
Em todo o caso, deve reiterar-se que tal não implica, de forma alguma,
que o controlo exercido pelo Tribunal deixe de ser, como atrás se assinalou,
um controlo puramente "de direito" (ou de normas).
A pertinência da questão
19. O juiz pode rejeitar a questão com fundamento em que ela não é útil para a solução do litígio na jurisdição a quo?
A este propósito, Tribunal Constitucional tem considerado, em reiterada jurisprudência, que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental. Como se afirmou no acórdão nº 86/90, "o julgamento da questão de constitucionalidade desempenha sempre uma função instrumental, só se justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão da questão de fundo. Ou seja: o sentido do julgamento da questão da constitucionalidade há-de ser susceptível de influir na decisão da questão, pois de contrário estar-se-ia a decidir uma questão académica" (no mesmo sentido, cf., entre muitos outros, os acórdãos nºs. 114/99, 358/99, 378/99, 480/99 ou 490/99).
Por outro lado, o Tribunal vem igualmente afirmando que só deve conhecer de uma questão de constitucionalidade e pronunciar-se sobre a mesma quando esta se puder repercutir utilmente no julgamento do caso de que emergiu o recurso. Por isso, não haverá interesse processual, designadamente, se a decisão do recurso de constitucionalidade for útil apenas para prevenir futuros litígios ou para decidir esses litígios no caso de virem a eclodir (cf. o acórdão nº 272/94).
Finalmente, se o juiz a quo fez uma referência a uma questão de constitucionalidade normativa, mas tal referência não constituiu o fundamento da sua decisão, a sua ratio decidendi, antes representando um obter dictum ou um argumento ad ostentationem, não existe igualmente utilidade (ou relevanza, para usar a terminologia italiana) no conhecimento, por parte do Tribunal, daquela questão (cf., por exemplo, os acórdãos nºs. 341/87, 419/89, 14/91, 206/92 ou 379/96). De igual modo, se o juiz a quo utilizou dois fundamentos diversos para decidir determinada questão - sendo que apenas um se apoiava em motivos de constitucionalidade -, não existe utilidade no conhecimento do recurso, já que a decisão recorrida, fosse qual fosse o juízo do Tribunal, sempre se manteria a mesma, baseada justamente no outro fundamento.
A interpretação da questão
20. O juiz constitucional pode reformular a questão de forma a torná-la mais clara?
Se o requerimento de interposição do recurso não contiver todos os elementos exigidos – e que, grosso modo, se enunciaram na resposta à questão 14. - deve o juiz convidar o recorrente a indicar os dados em falta. E, perante todos esses elementos, possuirá o juiz constitucional, de forma suficientemente clara, o quadro em que deve situar-se para a decisão do processo. É-lhe vedado "reformular" a questão de constitucionalidade, no sentido em que lhe não é permitido alterar o objecto do recurso tal como fixado pelos recorrentes. Mas pode, naturalmente, delimitar o objecto do recurso – por exemplo, excluindo do âmbito de apreciação normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie por considerar que essa apreciação seria inútil (v. a resposta à questão 19).
Refira-se, por outro lado, que, como atrás
se assinalou, nos termos do artigo 79º-C da LTC, relativo aos poderes de
cognição do Tribunal, este só pode julgar inconstitucional
ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado
ou a que haja recusado a aplicação, mas pode fazê-lo com
fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais
ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada. O Tribunal
goza assim de uma ampla margem de discricionariedade no que concerne aos fundamentos
da sua decisão, mas encontra-se limitado pelo princípio do pedido,
só podendo apreciar a constitucionalidade das normas indicadas pelos
recorrentes.
A interpretação da norma controlada
21. O juiz constitucional deve respeitar a interpretação da norma tal como foi feita pelo tribunal a quo?
As coisas devem ser vistas dessa forma: se o Tribunal Constitucional aprecia um recurso de constitucionalidade que tem por objecto uma norma numa determinada interpretação (a interpretação feita pela decisão recorrida) está vinculado, no que se refere ao objecto do recurso, a essa interpretação.
Realidade diferente é a que se prende com os fundamentos da decisão, seja da decisão recorrida, seja da decisão do Tribunal. Mesmo que confirme a decisão do tribunal a quo, não está vinculado à respectiva fundamentação. Como se referiu na resposta à questão 17., o Tribunal é absolutamente livre no que respeita à determinação dos fundamentos da decisão de constitucionalidade. Nos termos do artigo 79º-C da LTC, relativo aos poderes de cognição do Tribunal, este só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado a aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada. Assim, o juiz a quo pode entender que a norma X viola a norma ou o princípio constitucional Y, mas o Tribunal concluir que tal norma é inconstitucional, mas por violação da norma ou princípio constitucional Z.
Importa ainda sublinhar que, nos termos do nº 3 do artigo 80º da LTC, no caso de o juízo de constitucionalidade sobre a norma que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada apreciação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa.
O jus superveniens
22. Qual a incidência de uma modificação legislativa da norma impugnada?
Na fiscalização concreta, as alterações legislativas não possuem qualquer incidência jurídica específica no tratamento da questão de constitucionalidade. A circunstância de a norma sub judicio se encontrar revogada não obsta ao conhecimento do recurso, pois, tendo-se a decisão recorrida baseado nessa norma, sempre haverá interesse na apreciação, por parte do Tribunal, da sua constitucionalidade.
Já no que se refere à fiscalização abstracta sucessiva, como o Tribunal pode fixar o alcance temporal das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (CRP, artigo 282º, nº 4), determinando, por exemplo, que a mesma só produza efeitos pro futuro, a ocorrência de uma alteração legislativa, caso o Tribunal viesse a utilizar esta faculdade, faz com que deixe de haver interesse no conhecimento do pedido. Com efeito, se o Tribunal considerar que, caso se pronunciasse pela inconstitucionalidade, a sua declaração não teria eficácia retroactiva (ex tunc), deixam de existir razões para conhecer da constitucionalidade de normas que já não se encontram em vigor. Para o futuro, não haveria interesse, pois a norma já não está em vigor; e para o passado também não haveria interesse, pois a declaração de inconstitucionalidade não teria eficácia retroactiva.Note-se ainda que, a propósito do princípio do pedido (LTC, artigo 51º, nº 5), o Tribunal firmou, no acórdão nº 57/95, o seguinte critério: "nos casos em que as alterações suportadas pelas normas (...) dão origem a outras normas, isto é, normas dotadas de uma diferente substância normativa, e, bem assim, nos casos em que as alterações, substanciais ou não, conduzem a que as normas passem a constar de outro preceito legal, não deve o Tribunal conhecer da compatibilidade com a Constituição das referidas normas (...) na versão actual, (...) pela necessidade de observância do princípio do pedido; (...) já não subsistem, porém, quaisquer obstáculos processuais ao conhecimento da questão da inconstitucionalidade nas hipóteses em que as alterações nas normas não forem de molde a afectar a sua substância originária e essas alterações estejam corporizadas no mesmo preceito legal; aí, porque a norma é essencialmente a mesma, é possível ao Tribunal Constitucional conhecer da sua conformidade com a Constituição". E sobre o conceito de norma apreciável, o Tribunal precisou o seguinte: "não se trata, porém, de normas abstractamente consideradas, mas de normas vasadas ou concretizadas num preceito; por outras palavras, o Tribunal Constitucional, quando aprecia a constitucionalidade de uma norma jurídica, tem de referir essa norma a um preceito concreto, que constitui o seu suporte formal; a necessidade de referência da norma objecto de fiscalização ao preceito que a incorpora resulta do princípio do pedido; este mesmo princípio impede que o Tribunal analise a questão de constitucionalidade de uma nova norma - ainda que de teor substancialmente idêntico à antiga - concretizada num preceito diferente do originário".
As partes
23. As partes perante o tribunal a quo ou terceiros (pessoas, instituições, outras jurisdições,...) podem participar (voluntária ou obrigatoriamente) no processo perante o juiz constitucional? Em caso afirmativo, sob que forma? De que modo são informados do processo perante o juiz constitucional?
Tratando-se de um recurso de constitucionalidade, as partes participam natural e necessariamente no processo perante o Tribunal Constitucional. E, nos termos do artigo 72º, nº 1, da LTC, dispõem de legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional:
– o Ministério Público;
– as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso, obedecendo, portanto, às regras do "processo-pretexto" (cível, penal, laboral, administrativo, etc.) de que emerge o recurso.
Não está prevista a intervenção de terceiros – isto é, de pessoas singulares ou colectivas que não sejam partes no "processo-pretexto" – no processo constitucional. Explicando melhor, o processo constitucional não possui, em relação às demais formas de processo existentes no direito português, qualquer especialidade.
As partes intervêm no processo, desde logo, através da apresentação do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (LTC, artigo 75º-A), que deve ser apresentado no tribunal a quo. E depois, quando sejam notificadas para isso (v.g. quando o relator entender que não é caso de proferir decisão sumária), produzindo alegações junto do Tribunal Constitucional (LTC, artigo 79º). Se, porventura, o juiz relator proferir uma decisão sumária, as partes podem apresentar reclamação para a conferência (cf. resposta à questão 16).
24. Prevê-se a intervenção de advogado? Sob que forma? Existe
um representante do Ministério Público na jurisdição
constitucional?
Nos recursos para o Tribunal Constitucional é, em regra, obrigatória a constituição de advogado (LTC, artigo 83º, nº 1). E só pode advogar perante o Tribunal Constitucional quem o puder fazer junto do Supremo Tribunal. Refira-se, todavia, que esta última exigência perdeu sentido após a publicação, em 1984, do novo Estatuto da Ordem dos Advogados, já que todos os advogados podem advogar em qualquer jurisdição, tendo desaparecido a exigência de um período mínimo de exercício da profissão (10 anos) para advogar junto do Supremo Tribunal de Justiça. Mas se, porventura, for reintroduzida uma norma a condicionar o exercício da advocacia junto do Supremo Tribunal de Justiça, os requisitos aí exigidos aplicar-se-ão ao Tribunal Constitucional.
Por outro lado, o conceito de "advogado" é um conceito jurídico preciso: trata-se daquele que, segundo as disposições do Estatuto da Ordem dos Advogados, for titular de inscrição em vigor como advogado na respectiva Ordem (cf. o acórdão nº 294/97).
Por último, deve referir-se que, nos termos do artigo 72º, nº 1, alínea a), da LTC, o Ministério Público dispõe de legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional, uma legitimidade própria e específica na defesa objectiva da ordem constitucional. Nos termos do artigo 44º da LTC, o Ministério Público é representado junto do Tribunal Constitucional pelo Procurador-Geral da República, que poderá delegar as suas funções no Vice-Procurador-Geral ou num ou mais Procuradores-Gerais-Adjuntos.
Os incidentes do processo constitucional
25. A desistência
perante a jurisdição a quo depois da decisão de reenvio
tem alguma influência sobre o desenvolvimento do processo constitucional?
Reitera-se o que se vem dizendo: não existe um mecanismo de reenvio prejudicial
da questão de constitucionalidade ao Tribunal Constitucional. Deste modo,
fica de alguma forma prejudicada a resposta a esta questão.
Ainda assim, deve dizer-se que o recurso para o Tribunal Constitucional é irrenunciável (LTC, artigo 73º), no sentido em que nenhum cidadão pode estabelecer – por exemplo, através de uma convenção de arbitragem – que irá prescindir antecipadamente da possibilidade de recorrer ao Tribunal Constitucional. Mas, como é evidente, fora dos casos de recurso obrigatório do Ministério Público (CRP, artigo 280º, nºs. 3 e 5), não existe uma obrigação de recorrer para o Tribunal Constitucional. As partes podem, desde logo, deixar passar o prazo de interposição do recurso, que é de 10 dias (LTC, artigo 75º). Ou podem, mesmo após terem apresentado requerimento de interposição de recurso, não produzir alegações, o que implica que aquele recurso seja julgado deserto. Além disso, salvo nos casos de recurso obrigatório, as partes podem desistir do recurso, nos termos gerais do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da LTC. E a possibilidade de desistência do recurso infere-se do artigo 78º-B, nº 1, da LTC, que atribui ao juiz relator competência para admitir a desistência do recurso.
d. A queixa constitucional (por exemplo, do tipo recurso de amparo, Verfassungsbeschwerde..)
O objecto da queixa constitucional
26. Qual o objecto da queixa constitucional? Contra que actos pode ser deduzida? Na sequência de uma queixa constitucional, pode o juiz constitucional examinar os elementos de facto do litígio?
Em Portugal não existe um instrumento análogo ao amparo constitucional espanhol ou à Verfassungsbeschwerde alemã, apesar de a introdução de um tal mecanismo já ter sido sugerida em numerosas ocasiões (v.g. em certos projectos de revisão constitucional apresentados pelos partidos). Ainda assim, como se referiu na resposta à questão 18., a circunstância de o Tribunal admitir o controlo de normas numa dada interpretação (a interpretação que foi dada na decisão recorrida) permite, de certo modo, alcançar algumas das virtualidades da queixa constitucional.
A admissibilidade da queixa
27. Quem pode apresentar queixa ao juiz constitucional? E de que forma?
Como se disse na resposta à questão 26, não existe em Portugal um instrumento do tipo queixa constitucional.
28. O recurso ao juiz constitucional está sujeito ao esgotamento das vias de recurso?
Sublinhando que se está a falar de recurso de constitucionalidade – e não de uma queixa constitucional –, reitera-se o que se afirmou na resposta à questão 14.:
– os recursos das decisões que recusem a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade são directos para o Tribunal Constitucional;
– os recursos de decisões que apliquem normas arguidas de inconstitucionais pelas partes num processo pressupõem a exaustão dos recursos ordinários (LTC, artigo 70º, nº 2).
No que se refere ao esgotamento dos recursos ordinários, ele visa que o Tribunal só seja chamado a reapreciar decisões que constituam a "última palavra" dentro da ordem judiciária do tribunal que as tomou, por forma a não facilitar o levantamento gratuito de questões de inconstitucionalidade e de modo a poupar a intervenção do Tribunal (cf. o acórdão nº 21/87). A este propósito, deve observar-se o seguinte:
– são equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência (LTC, artigo 70º, nº 3);
– entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual (LTC, artigo 70º, nº 4);
– não é admitido recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário obrigatório, nos termos da respectiva lei processual (LTC, artigo 70º, nº 5);
– se a decisão admitir recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, a não interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não faz precludir o direito de ulterior decisão que confirme a primeira (LTC, artigo 70º, nº 6).
A filtragem
29. Existe um processo de filtragem que permita ao juiz constitucional limitar o número de processos?
Quanto aos mecanismos de filtragem dos recursos – de que se destacou, por mais expressivo, a decisão sumária do juiz relator –, v. a resposta à questão 16.
As partes
30. O queixoso participa no processo que decorre na jurisdição constitucional? Em caso afirmativo, de que forma?
Quanto ao recurso de constitucionalidade, v. a resposta à questão 23.
31. Está previsto o patrocínio por
advogado? De que forma participa o Ministério Público?
Quanto ao recurso de constitucionalidade, v. a resposta à questão 24.
2. A regulação dos conflitos entre jurisdições
32. O juiz constitucional tem por missão delimitar as competências respectivas de outras jurisdições? Em caso afirmativo, como procede?
Não está o Tribunal Constitucional incumbido de arbitrar conflitos positivos ou negativos de competência entre os tribunais que integram a ordem judiciária portuguesa. Deve esclarecer-se, porém, que o Tribunal dispõe de competência para delimitar a sua própria competência face a outras jurisdições (Kompetenz-Kompetenz).
II. As relações entre o juiz constitucional e as outras jurisdições
A. A ligação orgânica
33. Quais são as ligações orgânicas entre o juiz constitucional e as outras jurisdições nacionais (condições de acesso, processo de nomeação, ...)?
Não existem propriamente ligações orgânicas entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais. O que acaba de ser dito é verdade ainda quando se entenda, como parece mais correcto, que o Tribunal Constitucional funciona, no que toca a matérias de natureza jurídico-constitucional, como o órgão de topo na hierarquia dos tribunais.
Na verdade, muito embora as decisões do Tribunal Constitucional proferidas em via de recurso de decisões judiciais de outros tribunais tenham, em relação a estes e quanto a matérias de natureza jurídico-constitucional, os mesmos efeitos típicos que as decisões de um tribunal superior em relação a um tribunal inferior, o Tribunal Constitucional não deixa de poder ser configurado como um tribunal especial (cfr. resposta à questão 2).
O Tribunal Constitucional é assim um tribunal que se encontra simultaneamente dentro e fora da hierarquia dos tribunais portugueses. Está dentro da hierarquia, mais precisamente no seu topo, porque uma vez que todos os tribunais têm o poder-dever de procederem à fiscalização da constitucionalidade (artigo 204º da Constituição), todos eles se acham vinculados às decisões que nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade são sempre, em última instância, proferidas pelo Tribunal Constitucional e também pelas decisões positivas de inconstitucionalidade ou ilegalidade proferidas pelo mesmo em sede de processos de fiscalização abstracta. Mas está também fora da hierarquia, quer na perspectiva da fiscalização abstracta preventiva e sucessiva, quer na perspectiva da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, quer na ainda na perspectiva de muitas outras competências que lhe são atribuídas pela Constituição, muitas das quais não revestem sequer natureza jurisdicional (cfr. artigo 223º da Constituição).
O que acaba de ser dito não significa que não exista uma ligação entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais no que respeita, por exemplo, ao processo de designação dos juízes constitucionais. Simplesmente, essa é uma ligação pessoal, não orgânica. Com efeito, não é possível adquirir a qualidade de juiz do Tribunal Constitucional através das formas normais de progressão na carreira da magistratura judicial ou por inerência de funções desempenhadas em outros tribunais. Mas nem por isso a qualidade de juiz se pode considerar indiferente na perspectiva da composição do Tribunal. Assim, nos termos do artigo 222º, n.º 1, da Constituição o Tribunal Constitucional é composto por treze juizes, sendo dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes. Ora, segundo o n.º 2 do mesmo artigo, seis de entre os juízes designados pela Assembleia da República ou cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes dos restantes tribunais e os demais de entre juristas.
B. A ligação processual
34. Existem ligações processuais entre o juiz constitucional e a jurisdição que desencadeia o processo no Tribunal Constitucional ou contra a qual é apresentada uma queixa (por exemplo, um diálogo entre juízes, a fim de precisar ou afinar a questão)? Em caso afirmativo, qual o uso que é feito desta faculdade?
A intervenção do Tribunal Constitucional não se faz, a título prejudicial, mediante o pedido formulado por um outro tribunal para que aprecie determinada questão de constitucionalidade, como acontece com o mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 234º do Tratado de Roma. Não existe assim qualquer possibilidade de “diálogo entre juízes”.
O Tribunal Constitucional apenas contacta com outras jurisdições no âmbito dos processos de fiscalização concreta. Ora, nesse âmbito, conforme já atrás se referiu, as questões de constitucionalidade são colocadas ao Tribunal Constitucional em via de recurso das decisões judiciais, interposto pelos particulares ou pelo Ministério Público, não podendo o juiz da causa suscitar oficiosamente qualquer questão de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional (v. a resposta à questão 11). Assim, o “diálogo entre juízes” é substituído, na economia do sistema português, e em obediência ao princípio do contraditório, pela possibilidade que ao juiz do Tribunal Constitucional assiste, no âmbito dos processos de fiscalização concreta, de convidar o recorrente a prestar a indicação dos elementos que devem constar do requerimento de interposição do recurso (cfr. artigo 75º-A, n.ºs 1, 2 e 5, da LTC), caso o não tenha feito, ou ainda de o convidar a aperfeiçoar as conclusões das respectivas alegações (artigo 78º-B, n.º 1, da LTC).
Uma vez que o recurso para o Tribunal Constitucional é apresentado no tribunal que tiver proferido a decisão recorrida e a este compete a apreciar a admissão do mesmo (artigo 76º da LTC), prevê-se ainda a possibilidade de o recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional do despacho que indefira o requerimento de recurso (cfr. artigo 77º da LTC). Importa aqui de um modo especial salientar que a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à questão da admissibilidade do recurso (cfr. artigo 77º, n.º 4, da LTC).
C. A ligação funcional
§ 1º - O controlo e os seus efeitos
35. As decisões do juiz constitucional constituem sempre um precedente vinculativo para as outras jurisdições?
No que respeita a esta questão, cumpre desde logo salientar que as decisões do Tribunal Constitucional não constituem precedente vinculativo para as restantes jurisdições, o que se conforma com o facto de não vigorar na ordem jurídica portuguesa um sistema de precedentes vinculativos.
De qualquer modo, se não existe qualquer regra de precedente vinculativo nas relações entre o juiz constitucional e as restantes jurisdições, nem por isso deixam de estar consagrados no direito constitucional português mecanismos tendentes a assegurar, no âmbito dos processos de fiscalização concreta, uma uniformização de jurisprudência quanto às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelos vários tribunais e pelo próprio Tribunal Constitucional.
Assim, no âmbito dos processos de fiscalização concreta, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse que é obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tribunais: (i) que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional; (ii) que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pela Comissão Constitucional [7], nos precisos termos em que seja requerida a sua apreciação ao Tribunal Constitucional; (iii) que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional. Importa ainda salientar que neste último caso, o recurso é restrito às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida, enquanto nos demais casos os recursos são restritos à questão da inconstitucionalidade suscitada no processo [cfr. artigos 280º, n.º 5, da CR, e 70º, n.º 1, alíneas g), h) e i), 71º e 72º, n.º 3, da LTC].
Cabe ainda recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar (cfr. artigo 280º, n.º 3, da CR e artigo 72º, n.º 3, da LTC).
Para além destes mecanismos de uniformização da jurisprudência constitucional no seu todo, existe também um mecanismo que visa a uniformização da jurisprudência no interior do próprio Tribunal Constitucional. Neste contexto, cabe recurso (obrigatório para o Ministério Público, quando intervier no processo como recorrente ou recorrido) para o plenário do Tribunal Constitucional das decisões das secções do mesmo Tribunal em que este, por qualquer das suas secções, julgue a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma (cfr. artigo 79º-D, n.º 1, da LTC).
Por último, cabe ainda referir que o Tribunal pode apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, ou seja, no âmbito do controlo concreto da inconstitucionalidade (cfr. resposta à questão 9).
A existência de mecanismos de uniformização de jurisprudência, associada ao facto de todos os tribunais portugueses serem “juízes constitucionais”, como atrás foi referido (cfr. a resposta à questão 2), permite assim a caracterização de todas as decisões do Tribunal Constitucional como “precedentes persuasivos” em relação às restantes jurisdições [8].
36. Quais são os modos de controlo do juiz
constitucional (anulação, rejeição, declaração
de constitucionalidade, declaração de inconstitucionalidade, decisões
interpretativas, reservas de interpretação, anulação
de uma decisão jurisdicional, constat de lacune, constat de validité
limitée, ...)? Distinga eventualmente de acordo com as diferentes vias
processuais (o recurso de anulação, o reenvio prejudicial, a queixa
constitucional).
Conforme já atrás foi referido (cfr. respostas às questões 2 e 7), a CRP e a LTC prevêem quatro modos de acesso ao juiz constitucional que correspondem a outras tantas vias processuais consagradas no direito do contencioso constitucional português: o processo de fiscalização preventiva, o processo de fiscalização abstracta sucessiva, o processo de fiscalização concreta e o processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (cfr. resposta às questões 2 e 7). Importa, por isso, indicar quais os modos de controlo ou tipos de decisões susceptíveis de serem proferidos pelo Tribunal em cada uma dessas vias processuais.
(i) As decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva
Para além de decisões de natureza processual (não conhecimento do pedido por extemporaneidade, por exemplo), o Tribunal Constitucional pode proferir um de dois tipos de decisão, em sede de fiscalização preventiva: pronunciar-se pela inconstitucionalidade ou não se pronunciar pela inconstitucionalidade da totalidade ou de parte das normas submetidas a apreciação:
– no caso de o Tribunal se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante de qualquer decreto ou acordo internacional, o diploma deve ser obrigatoriamente vetado pelo Presidente da República.
– se o Tribunal não se pronunciar pela inconstitucionalidade, esta decisão não faz caso julgado, podendo em processo de fiscalização abstracta sucessiva vir a ser declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral [9].O texto normativo, no caso de veto por inconstitucionalidade, não pode ser promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado haja expurgado a norma julgada inconstitucional ou, quando for caso disso, “o confirme por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria dos deputados em efectividade de funções” (artigo 279º, n.º 2, CR). O Tribunal Constitucional já aceitou que também os diplomas regionais sejam susceptíveis de confirmação pela respectiva assembleia legislativa (cfr. o Acórdão n.º 151/93).
No caso de confirmação do diploma, o Presidente da República (ou o Ministro da República) não é obrigado a promulgar (ou a assinar) o decreto. Situação diversa ocorre na confirmação do diploma vetado politicamente pelo Presidente da República, ou pelo Ministro da República, casos em que é obrigatória a promulgação ou assinatura (cfr. artigos 136º, n.º 2 e 3, e 233º, n.º 3, CR).
Se o órgão autor do diploma onde se achava a norma objecto de pronúncia de inconstitucionalidade reformular o diploma, poderá o “Presidente da República ou o Ministro da República, conforme os casos, requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas” (artigo 279º, n.º 3, da CR) [10].
Se o Tribunal Constitucional não se pronunciar pela inconstitucionalidade do diploma, deverão o Presidente da República ou o Ministro da República promulgar ou assinar os decretos em causa, se não exercerem o direito de veto político [11].
(ii) As decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta sucessiva
No que respeita às decisões finais do Tribunal em sede de fiscalização abstracta sucessiva, podem as mesmas ser de acolhimento da tese da inconstitucionalidade (decisões positivas), declarando a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma ou normas que constituem o objecto do pedido, ou de rejeição da inconstitucionalidade (decisões negativas).
Publicada a decisão de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral na I Série do jornal oficial [cfr. artigos 122º, n.º 1, alínea g), da CR e 3º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional - LTC] a mesma produz efeitos, em regra, desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela eventualmente haja revogado (artigo 282º, n.º 1, da CR). A regra geral é, pois, a da invalidade ab initio ou ex tunc (nulidade), embora fiquem ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal quando a norma respeitar a direito sancionatório público (matéria penal, disciplinar, ou de ilícito administrativo, ou seja, “ilícito de mera ordenação social”) e for de conteúdo menos favorável ao arguido (artigo 282º, n.º 3, da CR).
O Tribunal pode ainda fixar os efeitos da inconstitucionalidade (ou ilegalidade) com um alcance mais restrito do que o previsto nas regras gerais dos n.ºs 1 e 2 do artigo 282º da CR, quando a segurança pública, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem (cfr. artigo 282º, n.º 4).
A importância da norma do artigo 281º, n.º 4, da CR consiste em permitir ao Tribunal Constitucional o condicionamento ou a conformação (a «manipulação») dos efeitos das sentenças de declaração de inconstitucionalidade, abrindo-lhe a possibilidade de exercer poderes tendencialmente normativos [12]. Deste modo, articulando os efeitos previstos no n.ºs 1 e 2 do artigo 282º com os “efeitos mais restritos” referidos no n.º 4, pode o Tribunal determinar que uma sua decisão de inconstitucionalidade produza apenas efeitos pro futuro ou ex nunc e não implique a repristinação da norma ou normas revogadas pela norma declarada inconstitucional.
As decisões que não declaram a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (decisões negativas) não fazem caso julgado, podendo a questão ser reposta no futuro [13].(iii) As decisões do Tribunal em sede de fiscalização concreta
As decisões proferidas nos recursos de fiscalização concreta não têm força obrigatória geral, nem eficácia erga omnes. Valem apenas para as partes do recurso e para terceiros no processo a quem possam aproveitar (artigo 74º, n.ºs 1, 2 e 3, da LTC). De facto, a decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada.
No caso de o recurso merecer provimento total ou parcial, o Tribunal Constitucional revoga a decisão recorrida (sistema cassatório), devendo o tribunal recorrido reformar a decisão da questão principal – ou mandá-la reformar a um tribunal de hierarquia inferior – em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) – artigo 80º, n.º 2, da LTC.
O artigo 80º, n.º 3, da LTC prevê a possibilidade de o próprio Tribunal Constitucional fixar uma interpretação da norma aplicada pelo tribunal recorrido ou daquela a que este recusou aplicação, de forma a evitar que haja inconstitucionalidade (ou ilegalidade). Essa interpretação conforme à Constituição vincula o tribunal recorrido.
(iv) As decisões do Tribunal em sede de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
O Tribunal pode proferir decisões positivas, de verificação de inconstitucionalidade por omissão, ou decisões negativas, de não verificação de inconstitucionalidade por omissão. No primeiro caso, o Tribunal deve dar conhecimento da omissão ao órgão legislativo competente (cfr. artigo 283º, n.º 2).
Como resulta do atrás exposto, em cada um dos tipos de controlo da constitucionalidade, ou vias processuais, admitidos na Constituição portuguesa podem ser tomadas, nos correspondentes processos de fiscalização, decisões de mérito positivas ou negativas.
Assim:– na fiscalização preventiva de constitucionalidade, o Tribunal pode pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas (imperfeitas) que lhe forem submetidas, ou não se pronunciar pela inconstitucionalidade (artigo 279º, n.º 1, da CR);
– na fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, o Tribunal pode declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma ou normas objecto do pedido, ou não declarar essa inconstitucionalidade (artigos 281º e 282º da CR);
– na fiscalização concreta de constitucionalidade, o Tribunal pode julgar a(s) norma(s) objecto do recurso inconstitucional(ais), ou não julgar a(s) mesma(s) norma(s) inconstitucional(ais) (artigos 280º da CR e 80º da LTC);
– na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal verifica a existência de uma inconstitucionalidade por omissão ou não verifica tal existência (artigos 283º, n.º 2, da CR e 68º da LTC).
Todavia, para além destas decisões extremas, positivas ou negativas, existem ainda decisões cujo conteúdo é, por assim dizer, intermédio entre as decisões de inconstitucionalidade e as de não inconstitucionalidade. Neste contexto, podem apontar-se as decisões interpretativas, as decisões de inconstitucionalidade parcial, as decisões apelativas, as decisões de simples apreciação e as decisões integrativas ou aditivas e substitutivas. Nem todas elas são, todavia, admitidas no direito constitucional português.
(i) Decisões interpretativas
No caso do direito português, o Tribunal Constitucional tem proferido decisões de natureza interpretativa, baseando-se a sua prática jurisprudencial no n.º 3 do artigo 80º da LTC.
Embora se configurem como decisões intermédias entre as de constitucionalidade e as de não inconstitucionalidade, as decisões interpretativas acabam por assumir sempre uma dessas formas extremas no âmbito da fiscalização concreta, como nota Luís Nunes de Almeida [14].
Assim, em sede de fiscalização concreta, o Tribunal tanto tem proferido decisões interpretativas sob a forma de decisões de inconstitucionalidade, como sob a forma de decisões de não inconstitucionalidade. E tem igualmente afirmado que para fazer interpretação conforme à Constituição, lhe compete determinar quais as interpretações que invalidam a norma e quais as que lhe garantem subsistência válida no ordenamento jurídico, julgando, expressa ou implicitamente, algumas interpretações inconstitucionais e outras não inconstitucionais [15].
Nos processos de fiscalização abstracta, o Tribunal não se confronta de forma imediata com uma interpretação da norma anteriormente efectuada por outro tribunal (cfr., no entanto, a resposta à questão 39). Por isso, é muitas vezes difícil determinar exactamente quando se está perante uma decisão propriamente interpretativa, na medida em que o Tribunal procede sempre, necessariamente, a uma prévia interpretação da norma, para lhe fixar o sentido e alcance, antes de averiguar a sua conformidade com a Constituição.
Em vários casos o Tribunal tem hesitado entre proferir uma decisão interpretativa ou declarar uma inconstitucionalidade parcial, pendendo normalmente para este último tipo de decisões, o que porventura se explica “mais por razões de ordem pragmática do que por qualquer motivação de ordem teórica: é que, com efeito, só as declarações de inconstitucionalidade dispõem de força obrigatória geral” [16]. Todavia, verificam-se também casos em que o Tribunal não hesita em proferir uma decisão interpretativa em sede de fiscalização abstracta sucessiva, fixando uma interpretação da norma conforme à Constituição como base de uma decisão negativa de inconstitucionalidade (ver Acórdão n.º 517/99 [17]). Em tais casos, a decisão interpretativa adoptada no controlo abstracto, mesmo assumindo a forma de uma decisão de não inconstitucionalidade, permitirá às partes num recurso de inconstitucionalidade questionar a interpretação de outra jurisdição contrária àquela que foi adoptada pelo Tribunal Constitucional e assim obter uma decisão positiva de inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta.
(ii) Decisões de inconstitucionalidade parcial
Como em face do direito constitucional português o objecto de fiscalização da constitucionalidade são as normas e não os preceitos ou diplomas que as contêm, é possível configurar uma decisão de inconstitucionalidade parcial que não afecte a totalidade da norma, mas incida apenas sobre um seu segmento.
Aliás, o Tribunal pode declarar ou julgar a inconstitucionalidade de parte ou secção ideal da norma, pode ainda declarar ou julgar a inconstitucionalidade de uma norma na parte em que nela se estabelece uma certa previsão ou estatuição, caso em que se fala de inconstitucionalidade parcial horizontal, ou pode declarar ou julgar a inconstitucionalidade de uma norma enquanto aplicável ou na medida em que seja aplicável a certas situações ou categorias, falando-se nesta hipótese em inconstitucionalidade parcial vertical.
Finalmente, pode a decisão de inconstitucionalidade ser parcial no que toca à aplicação da norma em certo período de tempo (inconstitucionalidade ratione temporis). Assim, no Acórdão n.º 148/94 [18] (sobre a Lei das Propinas do Ensino Universitário Público, Lei n.º 20/92, de 14 de agosto) foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 6º, n.º 2, desse diploma, “na parte em que, conjugado com o artigo 16º, n.º 2, da mesma lei permite que, para os anos lectivos de 1993-1994, 1994-1995 e seguintes, a percentagem para a determinação do montante das propinas seja fixada acima de 25%”.
(iii) Decisões apelativas
Não se afigura constitucionalmente admissível que o Tribunal profira decisões apelativas, ou de delegação, ou construtivas. Na doutrina fala-se ainda, em sentido próximo, de decisões injuntivas ou directivas. Através destas sentenças, o Tribunal decide no sentido da não inconstitucionalidade, embora diagnosticando a existência de uma inconstitucionalidade relativamente à qual opta apenas por convidar o legislador, em certo prazo, a revogar ou alterar a norma suspeita.
Também no âmbito da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão se afigura problemática a admissibilidade de decisões intermédias em que o Tribunal não verifique a existência actual da inconstitucionalidade por omissão, mas reconheça que a mesma se encontra em vias de existir. Como adverte Luís Nunes de Almeida, tal possibilidade pressuporia resposta afirmativa à questão de saber se existe uma competência do Tribunal para apreciar a questão do tempo ou da oportunidade das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais [19].
(iv) Decisões de simples apreciação ou mero reconhecimento
Não parece igualmente admissível que o Tribunal Constitucional possa proferir decisões de simples apreciação ou mero reconhecimento de inconstitucionalidade, sem daí retirar as consequências previstas na Constituição e na LTC. Apenas no que toca à fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, a decisão final do Tribunal traduz-se num mero reconhecimento da existência ou inexistência da omissão legislativa (artigo 283º, n.º 2, da CR).
Assim, no que diz respeito à fiscalização abstracta sucessiva, o artigo 282º admite apenas a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, mas não a supressão total desses efeitos.
No que toca à fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional tem de confirmar ou revogar a decisão do tribunal recorrido, quando conhece do objecto do recurso, não podendo, em regra, limitar-se a reconhecer a existência da inconstitucionalidade, mas sem daí retirar as necessárias consequências. Note-se que se o Tribunal Constitucional entender que a sua decisão seria inútil quanto ao objecto do recurso, extingue este, fazendo apelo à natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (por exemplo, se estiver em discussão a constitucionalidade de uma norma penal incriminadora, a superveniência de uma amnistia que extinga a responsabilidade criminal do recorrente ou do recorrido implica, em regra, a extinção do recurso por inutilidade superveniente, não se chegando a uma decisão final de simples reconhecimento de inconstitucionalidade).
(v) Decisões integrativas ou aditivas e substitutivas
A CR e a LTC não prevêem a possibilidade de o Tribunal Constitucional se substituir ao legislador ou proceder à integração de lacunas decorrentes de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
A verdade, porém, é que em certos casos, não muito frequentes, o Tribunal tem proferido decisões de carácter normativo, que integram lacunas de regulamentação (decisões integrativas, acumulativas ou aditivas), em fiscalização abstracta sucessiva.No Acórdão n.º 103/87 [20], foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma que privava os agentes militarizados da Polícia de Segurança Pública de apresentarem queixas ao Provedor de Justiça, por acções ou omissões dos poderes públicos responsáveis por essa Polícia, quando essas queixas não tivessem por objecto a violação dos seus direitos, liberdades e garantias ou prejuízo que os afectasse. Daí resultou um alargamento normativo da possibilidade de apresentação de queixas pelos agentes da PSP.
No Acórdão n.º 12/88 [21], o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, em processo de generalização ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 3, da CR, da norma que determinava que certas pensões por acidente de trabalho fossem actualizadas de harmonia com certas disposições legais, conforme tivessem sido fixadas antes ou depois de certa data, abrangendo essa declaração a disposição menos favorável aplicável aos beneficiários antes da data limite. Na prática, tal decisão conduziu ao aumento de certas pensões.
No Acórdão n.º 359/91 [22], ao julgar inconstitucional o entendimento dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110º do Código Civil (perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de fixação de jurisprudência), segundo o qual o direito à transferência ao arrendamento da casa de habitação, aí previsto, não era aplicável no caso de uniões de facto, mesmo quando destas houvesse filhos menores, o Tribunal acabou por alargar um regime legal a situações não previstas na respectiva lei.
No Acórdão n.º 143/95 [23], foi requerido ao Tribunal que declarasse a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do Estatuto da Ordem dos Advogados que previa a incompatibilidade entre o exercício da profissão de advogado e a actividade de funcionário ou agente de qualquer serviço público, com excepção do exercício de funções docentes de disciplinas jurídicas. O Tribunal acabaria por declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da mesma norma na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito, por violação do princípio da igualdade. Apesar de a decisão assumir a forma de uma declaração de inconstitucionalidade parcial, a verdade é que o seu efeito prático foi o de alargar a excepção contida na parte final da norma, que passou a abranger todos os docentes, leccionem ou não disciplinas de Direito.
Da análise da jurisprudência sumariada resulta que a utilização de decisões de carácter aditivo pelo Tribunal se tem restringido àqueles casos em que as normas submetidas à sua apreciação comportam cláusulas de excepção. É precisamente na eliminação total ou parcial destas cláusulas de excepção, e consequente expansão do regime-regra, que assenta o conteúdo integrativo ou aditivo das decisões do Tribunal. As decisões com o conteúdo que acaba de ser sintetizado têm ainda em comum, de um ponto de vista substancial, a circunstância de todas elas concretizarem o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR.
37. Quais são os efeitos jurídicos
das decisões do juiz constitucional (ex nunc, ex tunc; erga omnes, inter
partes; ...), isoladamente, sobre o processo de origem e sobre todos os outros
processos apresentados perante os juízes de direito comum, sobre outras
normas, actos administrativos – regulamentares ou individuais –
ou decisões jurisdicionais (existe, por exemplo, um processo de reexame,
...)? O juiz constitucional pode limitar ou manter os efeitos no tempo?
Como decorre da resposta à pergunta anterior, a questão dos efeitos jurídicos das decisões do Tribunal Constitucional coloca-se sobretudo no âmbito dos processos de fiscalização abstracta sucessiva e dos processos de fiscalização concreta. Com efeito, no que toca aos processos de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, a declaração de inconstitucionalidade não possui nenhuma eficácia jurídica directa, não podendo o Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na criação do regime legal em falta. Por outro lado, no que toca aos processos de fiscalização preventiva, uma vez que estes têm por objecto textos normativos ainda não vigentes, não é particularmente relevante a este propósito a problemática dos efeitos jurídicos das decisões do Tribunal. Acresce ainda, conforme atrás foi referido, que a pronúncia do Tribunal pela inconstitucionalidade de um texto normativo, em sede de fiscalização preventiva, não obsta à sua posterior confirmação, quando for o caso, e esta, por sua vez, não obsta a uma eventual posterior decisão de inconstitucionalidade em sede de fiscalização sucessiva, abstracta ou concreta.
A questão dos efeitos jurídicos das decisões do Tribunal Constitucional no âmbito dos processos de fiscalização sucessiva abstracta e concreta foi já objecto de tratamento na resposta à pergunta anterior. Importará, no entanto, aqui abordar, ainda que sumariamente, a questão de saber se o poder de limitação de efeitos previsto no n.º 4 do artigo 282º, n.º 4, da CR apenas pode ser exercido pelo Tribunal Constitucional quando haja lugar a pronúncia com eficácia erga omnes, como decorre de uma interpretação declarativa da norma em causa, ou se, pelo contrário, esse poder também pode ser exercido no âmbito da fiscalização concreta, difusa ou concentrada. Embora a opinião maioritária da doutrina nacional aponte no primeiro sentido, há quem entenda que “uma vez que não existem razões ponderosas que imponham solução contrária, nada impede o recurso à limitação de efeitos no âmbito da fiscalização concreta (difusa ou concentrada)” [24]. Não parecem, no entanto, existir razões ponderosas que conduzam a um afastamento da opinião dominante, que tem também sido sufragada pelo Tribunal Constitucional: por um lado, não é claro em que medida a solução que consistiria em admitir o recurso à limitação de efeitos no domínio da fiscalização concreta se afigura como vantajosa em relação ao funcionamento do requisito do interesse processual no julgamento da questão de constitucionalidade; por outro lado, relativamente aos casos em que esteja em causa uma decisão de inconstitucionalidade de normas penais de conteúdo mais favorável ao arguido, é duvidoso se a aplicação do regime mais favorável ao arguido se tem de apoiar no recurso ao regime de limitação de efeitos previsto no artigo 282º, n.º 4, da CR, ou se, pelo contrário, aquela aplicação decorre directamente do princípio previsto nos artigos 29º, n.º 4, e 282º, n.º 3, segunda parte, da CR. Acresce ainda que a aplicação do regime de limitação de efeitos previsto no artigo 282º, n.º 4, da CR, no domínio da fiscalização concreta implicaria um acréscimo de complexidade no sistema de recursos para o Tribunal Constitucional.
38. A autoridade das decisões do juiz constitucional é sempre
respeitada? Essa autoridade encontra, por vezes, resistência por parte
das instituições ou jurisdições? As outras jurisdições
encontram dificuldades em executar as decisões do juiz constitucional?
Verifica-se um respeito generalizado das decisões do Tribunal Constitucional, quer por parte das restantes jurisdições, no caso da fiscalização concreta, quer por parte do legislador, no caso da fiscalização abstracta. Uma vez que a questão é colocada no contexto das relações entre o juiz constitucional e as restantes jurisdições, deixaremos de lado a problemática da execução das decisões do Tribunal Constitucional pelo legislador.
No que toca ao respeito pelas decisões do juiz constitucional pelas restantes jurisdições, importa desde logo distinguir dois aspectos: por um lado, a questão de saber em que medida a jurisprudência do Tribunal é aceite pelos restantes tribunais, uma vez que todos eles têm também, como atrás foi dito, competência para conhecer da constitucionalidade das normas jurídicas; por outro lado, a questão de saber em que medida, no domínio dos processos de fiscalização concreta, os restantes tribunais acatam as decisões do Tribunal Constitucional, reformando as suas decisões em conformidade com o decidido por este quanto à questão de constitucionalidade. Quanto ao primeiro aspecto, como já foi dito, as decisões do Tribunal Constitucional funcionam como “precedente persuasivo” em relação aos restantes tribunais; quanto ao segundo, como foi também salientado, as decisões do Tribunal Constitucional revestem a força de caso julgado no processo quanto à questão de constitucionalidade que nele tenha sido suscitada. Apesar de se poder afirmar, de um modo geral, que a aceitação da jurisprudência do Tribunal Constitucional e o acatamento das suas decisões pelos tribunais recorridos se tem feito sem grandes dificuldades [25], não pode deixar de se reconhecer a existência de situações em que tal não se verifica, sobretudo quando o Tribunal procede à fixação da interpretação da lei conforme à Constituição num caso concreto [26].
Existem, de qualquer modo, formas de assegurar o respeito das decisões do Tribunal Constitucional pelos restantes tribunais. Antes de mais, cabe mencionar, a este propósito, os mecanismos de uniformização da jurisprudência já atrás referidos. Além disso, no que respeita de um modo especial à questão do acatamento das decisões do Tribunal Constitucional pelo tribunal recorrido no domínio de um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, o Tribunal tem admitido recursos de constitucionalidade quando, tendo revogado a decisão do tribunal a quo e tendo-a mandado reformular em harmonia com o por si decidido quanto à questão de constitucionalidade, se venha a verificar um desrespeito daquilo que foi por si decidido quanto a esta questão. Existe, assim, a possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento em violação de caso julgado relativo a decisão por ele anteriormente proferida (neste sentido, cfr. os Acórdãos n.ºs 532/99 e 340/00 [27]).
§ 2. A interpretação efectuada pelo juiz constitucional
A. A recepção da jurisprudência das outras jurisdições pelo juiz constitucional no exercício da sua própria competência
39. O juiz constitucional considera-se vinculado pelas interpretações dadas à norma impugnada pelos tribunais de 2ª instância, pelos supremos tribunais ou outras jurisdições (teoria do direito vivente, por exemplo)? O juiz constitucional pode, não obstante, adoptar uma outra interpretação?
Em Portugal, o problema do “direito vivente”, isto é, de uma interpretação jurisprudencial prevalecente e consolidada de uma norma no âmbito de uma determinada jurisdição, elaborada pelo Tribunal Constitucional italiano como base do relacionamento entre a jurisdição constitucional e as restantes jurisdições, coloca-se de forma diferente consoante esteja em causa o controlo concreto ou o controlo abstracto.
No domínio do controlo abstracto, em que justamente não é confrontado uma norma já interpretada, o Tribunal Constitucional tende a considerar na sua actividade a interpretação, jurisprudencial ou administrativa, prevalecente na aplicação da norma, quando exista.
Já no domínio da fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional controla sempre, pela própria natureza do tipo de controlo em causa, não apenas a constitucionalidade da lei, mas a própria constitucionalidade da interpretação da lei desenvolvida pelo juiz a quo, como aliás decorre do disposto no artigo 80º, n.º 3, da LTC. Esta característica do controlo concreto não é, naturalmente, isenta de dificuldades no que toca à distinção entre interpretação da lei, controlada pelo Tribunal Constitucional, e aplicação da lei, que escapa a esse controlo. De um modo geral, pode afirmar-se que a distinção entre uma questão de interpretação da lei e uma questão de aplicação da lei não suscita grandes dificuldades em relação às normas jurídicas susceptíveis de uma aplicação subsuntiva, apoiada no modelo do silogismo judiciário; essa distinção complica-se, no entanto, quando estiver em causa a aplicação de um princípio jurídico, de uma norma de conteúdo indeterminado ou de uma cláusula geral como a boa fé [28].
De qualquer modo, é ao próprio Tribunal Constitucional que cabe decidir de modo definitivo sobre os termos da referida distinção entre interpretação e aplicação da norma. A este facto não é estranha a configuração do Tribunal Constitucional efectuada pela ordem jurídica portuguesa, não apenas como um tribunal supremo – no sentido de que das suas decisões não cabe recurso –, mas também como um supremo dos supremos (ainda que de competência específica e situado fora das várias ordens de tribunais) – no sentido em que lhe é conferida a competência para conhecer da sua própria competência, através da faculdade de decidir a final sobre a admissibilidade dos recursos para ele interpostos, mediante reclamação, como se referiu na resposta à questão 34 e da própria possibilidade de conhecer de recursos relativos ao modo como são executadas as suas decisões [29].
B. Os efeitos da interpretação do juiz constitucional e a recepção
da jurisprudência do juiz constitucional pelas outras jurisdições
no exercício da sua própria competência
40. A interpretação das normas constitucionais e das normas legislativas dada pelo juiz constitucional impõe-se às outras jurisdições? O que sucede em caso de desrespeito da interpretação do juiz constitucional?
A interpretação das normas constitucionais e das normas legislativas dada pelo juiz constitucional é obrigatória, no domínio da fiscalização concreta, para as restantes jurisdições dentro do processo no âmbito do qual tenha sido interposto um recurso para o Tribunal Constitucional – cfr. resposta à questão 36.
A interpretação das normas constitucionais e a interpretação conforme à Constituição das normas legislativas dada pelo juiz constitucional no domínio de um processo de fiscalização abstracta constitui “precedente persuasivo” (cfr. resposta à questão 35) para as restantes jurisdições. O mesmo sucede com a interpretação de uma norma constitucional ou legislativa adoptada pelo juiz constitucional no domínio de um recurso de constitucionalidade, nos processos de fiscalização concreta, em relação a outros processos em que venha a ser suscitada a mesma questão de constitucionalidade.
O desrespeito da interpretação do juiz constitucional pode dar lugar ao funcionamento dos mecanismos de uniformização da jurisprudência constitucional (cfr. resposta à questão 35). Caso esse desrespeito se verifique em relação a uma decisão do Tribunal Constitucional que revogou, no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a decisão do tribunal recorrido e mandou reformular de acordo com o por si decidido, cabe novo recurso para o Tribunal Constitucional.
41. O juiz constitucional pode declarar que uma norma não é inconstitucional
a não ser na interpretação precisa por ele adoptada? Essa
interpretação pode afastar-se daquela que é pressuposta
pelo “direito vivente”? Em caso afirmativo, que utilização
é feita de tal faculdade?
Ver resposta à questão 39.
42. Quais são os efeitos, para as outras jurisdições, de uma decisão puramente interpretativa?
Como atrás se referiu, as decisões interpretativas do Tribunal Constitucional assumem sempre a forma de decisões de inconstitucionalidade ou de não inconstitucionalidade. Essas decisões têm, no âmbito dos processos de fiscalização concreta, efeitos semelhantes aos das demais, uma vez que a interpretação fixada pelo Tribunal Constitucional vincula o tribunal recorrido (cfr. respostas às questões 36 e 39).
Problema mais complexo é o de saber em que medida é vinculativa para as restantes jurisdições uma decisão interpretativa em sede de fiscalização abstracta sucessiva que assuma a forma de uma decisão negativa de inconstitucionalidade. Nestes casos, a questão só poderá, em princípio, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional caso seja suscitada por uma das partes num processo concreto ulterior.
III. A interferência das jurisdições europeias
A. O juiz constitucional e as outras jurisdições face à
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e à jurisprudência
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
43. O juiz constitucional está vinculado à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem? Em caso negativo, essa jurisprudência influencia a acção do juiz constitucional?
Ao contrário do que se passa nas relações entre o juiz constitucional e o juiz comunitário (cfr., infra, questões 46 e ss.), as questões que se colocam relativamente às relações entre o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e o Tribunal Constitucional não levantam um problema de «delimitação» ou de «fronteira» entre a competência dos tribunais internos e a de uma instância judiciária supranacional, mas antes um problema de «concorrência» necessária entre estas duas jurisdições, no domínio da protecção dos direitos fundamentais das pessoas. A questão central que se poderá colocar é a da eventual divergência entre as jurisprudências respectivas, ou então a da sua influência recíproca.
O juiz constitucional - nele se incluindo também, como já vimos, o juiz ordinário - não está vinculado à jurisprudência do TEDH, excepto na medida em que uma decisão deste, nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) [30], tenha que ser acatada pelo Estado português e portanto também pelo seu juiz constitucional. No entanto, como não está previsto nenhum mecanismo processual de revisão de decisão jurisdicional interna (incluindo a do Tribunal Constitucional) transitada em julgado que o TEDH considere violadora da CEDH, o significado prático dessa vinculação dilui-se significativamente. Nesses casos, a única consequência da decisão do TEDH será a da atribuição à parte lesada de uma reparação razoável, nos termos do artigo 41º da CEDH [31].
No entanto, a jurisprudência do TEDH é frequentemente tida em conta pelo juiz constitucional (o qual, não raras vezes, também tem em conta a jurisprudência constitucional comparada [32]), como um importante elemento auxiliar de interpretação.
A Constituição portuguesa compreende um catálogo de direitos fundamentais extremamente desenvolvido e detalhado, porventura mais exaustivo que os instrumentos internacionais de protecção dos Direitos do Homem. Nestas circunstâncias, não é de admirar que uma tal Constituição não seja daquelas que mais precisem de clarificação e integração das suas disposições e princípios fundamentais, nomeadamente através do recurso à CEDH. Todavia, não faltam na jurisprudência do Tribunal Constitucional português casos onde este tenha tido em conta a Convenção, e a doutrina estabelecida pelas suas instâncias de controlo, na interpretação das normas constitucionais cuja aplicação lhe incumbe directamente.
Trata-se, frequentemente, de casos respeitantes às garantias processuais - seja no domínio do processo civil, seja, sobretudo, no domínio do processo penal - situando-se assim no domínio de aplicação do artigo 6º da CEDH (direito a um «julgamento equitativo» e princípios daí decorrentes). Nesses casos, o Tribunal Constitucional afirmou e sublinhou, desde logo, que, apesar de a Constituição não enunciar expressamente, sob esta fórmula, o direito a um «processo equitativo» - note-se, no entanto, que a partir da última revisão da Constituição (1997) o artigo 20º, nº 4, já faz essa referência expressa -, um tal direito estava implicitamente contido no princípio, consagrado no artigo 20º, da «garantia de acesso ao direito e aos tribunais» (v., p. ex., os acórdãos nºs 529/94, 223/95 e 352/98 [33]). O Tribunal Constitucional procedeu, assim, a um desenvolvimento do princípio constitucional na linha da CEDH.
Mas não ficou por aí, já que, nalguns destes casos, podemos mesmo constatar, em acréscimo, o apelo a precedentes da jurisprudência da Comissão ou do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, invocados em apoio da solução a que chegou: v., p. ex., o acórdão nº 222/90 [34], ou, mais recentemente, os acórdãos nºs 547/98 [35] - onde o Tribunal Constitucional invocou o caso Kamasinski (Acórdão do TEDH de 19/12/89) em apoio do julgamento de não inconstitucionalidade do preceito do Código de Processo Penal português que não exige a entrega de uma tradução escrita da acusação ao arguido estrangeiro, satisfazendo-se com a outorga de um prazo razoável para o conhecimento do conteúdo duma tal peça acusatória [36] -, 517/2000 e 581/2000 - que citaram o caso Saraiva de Carvalho (Acórdão do TEDH de 22/04/94) em reforço dos julgamentos de não inconstitucionalidade que fizeram [37].
O exemplo provavelmente mais flagrante daquilo que se pode considerar uma convergência - entre a jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de direitos fundamentais, na sua orientação geral, com a das instâncias especificamente encarregadas de velar pela salvaguarda destes direitos no quadro europeu - encontra-se, porém, nos recentíssimos acórdãos nºs 345/99 e 412/2000 [38], onde o Tribunal Constitucional se apoiou expressamente na decisão do TEDH no caso Lobo Machado [39], de 20/02/96, para, embora com votos de vencido, julgar inconstitucional (por violação do direito a um processo equitativo - cfr. agora o art. 20º, nº 4, CRP) a norma que previa a presença exclusiva e a possibilidade de intervenção do representante do Ministério Público nas sessões de julgamento do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administrativo. Naquela primeira decisão o Tribunal Constitucional afirmou expressamente: "em face das razões invocadas pelos órgãos jurisdicionais da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição, há que rever a jurisprudência anterior à revisão constitucional de 1997". A referida norma acaba, aliás, de ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 157/2001 [40]. E acrescente-se que o TEDH também acaba, embora com votos dissidentes, de reconfirmar a sua jurisprudência, no caso Kress, de 07/06/2001, considerando violadora do artigo 6º, nº 1, da CEDH a presença do Comissaire du Gouvernement nas sessões do Conseil d'État francês (mas já não a não notificação ao recorrente das conclusões daquele).
Refira-se ainda que a jurisprudência do TEDH também encontra algum eco junto das decisões dos outros tribunais portugueses [41].
Quanto à questão da aplicabilidade do artigo 6º, nº 1, da CEDH aos procedimentos perante as jurisdições constitucionais, saliente-se que ela nunca foi apreciada pelo TEDH num caso que envolvesse o Tribunal Constitucional português (embora o Governo português já tenha sustentado junto do TEDH essa não aplicabilidade [42]). Na verdade, até agora, apesar de serem frequentes as queixas para o TEDH baseadas nos atrasos da justiça portuguesa [43], essas queixas não se fundamentaram nunca especificamente em atrasos do Tribunal Constitucional [44]. Mas já houve recursos para o TEDH na sequência de decisões do Tribunal Constitucional (cfr., infra, questão 45).
44. O juiz (ordinário) pode fundar a sua decisão numa disposição
da Convenção Europeia, desta forma afastando, eventualmente, a
acção do juiz constitucional?
Será muito difícil que isso possa acontecer: na verdade, ou o juiz a quo aplica (considerando que não viola a CEDH) uma norma que alguém arguiu de violadora da CEDH ou não aplica uma norma por considerar que viola a CEDH. Em ambos os casos, haverá sempre a possibilidade de recurso para o TC, nos termos acima analisados.Na verdade, no primeiro caso, esse recurso fundar-se-á nos artigos 280º, nºs 1, b), e 4, da CRP e 70º, nº 1, b), da LTC [45]:
- seja porque a arguição de violação de direito consagrado na CEDH é acompanhada de arguição de inconstitucionalidade (o que será o mais provável), sendo indiferente o silêncio do juiz a quo quanto a esta última questão, pois a aplicação de norma (expressamente acusada de inconstitucionalidade) pressupõe um julgamento de constitucionalidade;
- seja, mesmo no silêncio sobre a Constituição portuguesa, pelo facto de o direito constante da CEDH constar também, com enorme probabilidade (cfr., supra, questão 43), do catálogo de direitos fundamentais da CRP, podendo considerar-se, porventura, implicitamente preenchido o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, que recai sobre quem pretende recorrer para o Tribunal Constitucional das decisões negativas de inconstitucionalidade.
No segundo caso, mesmo que o juiz não se pronuncie acerca da compatibilidade da norma com a Constituição, esse recurso (obrigatório, aliás, para o Ministério Público, nos termos, consoante os casos, dos artigos 280º, nº 3, CRP, se a norma "desaplicada" constar de convenção internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar, ou 72º, nºs 3 e 4, da LTC) basear-se-á:
- ou nos artigos 280º, nº 1, a), da CRP e 70º, nº 1, a), da LTC, na medida em que o juízo de violação de direito constante da CEDH coenvolver implícita e necessariamente um juízo de inconstitucionalidade, pelo facto de a CRP conter norma ou princípio idêntico ao da CEDH (o que, atendendo à extensão e densidade do catálogo constitucional português de direitos fundamentais - Parte I da CRP -, será o mais provável);
- ou, na hipótese (rara) contrária, no artigo 70º, nº 1, i), da LTC, que prevê o recurso para o Tribunal Constitucional contra as decisões de tribunais "que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional"; note-se que, nesta hipótese, o Tribunal Constitucional só conhecerá, no entanto, das "questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida" (cfr. artigo 71º, nº 2, da LTC), o que, de acordo com a doutrina [46], abrange apenas a questão da posição que a Constituição atribui às convenções internacionais no quadro da ordem jurídica portuguesa e as questões de saber se a convenção está em vigor na ordem jurídica internacional e se vincula o Estado português - mas já não inclui a questão de saber se a convenção em causa é ou não contrariada pela concreta norma legal [47].
Seja como for, a intervenção do Tribunal Constitucional não poderá ser afastada na esmagadora maioria dos casos [48] (não se conhecendo, aliás, exemplos de situações do tipo das descritas), e não o poderá ser, de forma alguma, nos casos mais relevantes. O que não é surpreendente, tendo em conta o papel decisivo na defesa dos direitos fundamentais que é atribuído pela Constituição ao Tribunal Constitucional. Numa perspectiva mais extrema - envolvendo um passo que o Tribunal Constitucional nunca deu - este seria, em todos os casos, competente, a partir de uma concepção material dos direitos fundamentais, no âmbito da qual se reconheceria que a CEDH faz parte do bloco de constitucionalidade, pelo que a questão da sua violação pelo direito interno português seria sempre uma "questão constitucional".
A questão, mais genérica, de saber se o juiz constitucional pode fundar a sua decisão, exclusivamente, na CEDH - isto é, para lá dos casos de coincidência entre as normas desta e as normas constitucionais -, prende-se, justamente, com a possibilidade de reconhecimento, no quadro da Constituição portuguesa, de uma verdadeira natureza constitucional à CEDH.
A este propósito, é conveniente relembrar o disposto no artigo 16º, nº 1, da CRP: "os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional". A esta declaração segue-se, no nº 2 do mesmo artigo, a afirmação de que "os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem".
O significado deste artigo 16º tem sido frequentemente sublinhado: ele revela a «abertura» do correspondente catálogo de direitos e a concepção ou caracterização «material» dos direitos fundamentais (enquanto direitos que são a expressão ou a própria exigência da dignidade da pessoa humana).
Uma vez que a Constituição estende o catálogo dos direitos fundamentais aos consagrados nas convenções sobre a matéria que fazem parte da ordem jurídica portuguesa, decorrerá daí que essas convenções recebam um estatuto de fonte «privilegiada» (em comparação com as convenções internacionais em geral, recebidas na ordem interna, nos termos do artigo 8º, nº 2, CRP), de tal forma que deva ser reconhecida ao Tribunal Constitucional uma competência «plena», para as aplicar? Ou seja: a CEDH integrará o «bloco de constitucionalidade», no sentido de que o Tribunal Constitucional a ela possa e deva recorrer enquanto critério autónomo e directo para o julgamento de constitucionalidade das normas legais internas?
Esta questão não deixou de ser considerada pelo Tribunal Constitucional [49], mas este não deu, até agora, o passo decisivo no sentido do reconhecimento de um valor «autónomo» da CEDH, enquanto critério para o julgamento de constitucionalidade [50] (valor de fonte «directa» das suas decisões) - se bem que, por outro lado, também não tenha excluído expressamente uma tal possibilidade, guardando antes, sobretudo na jurisprudência mais recente, um silêncio prudente sobre a questão (tendo-se mesmo já afirmado que existe "un subtil changement dans notre jurisrudence, parce que, de plus en plus, elle évite de dire, d´une façon claire, que la Convention européenne n´ est pas un étalon de contrôle direct" [51]). E mais: como vimos acima, o Tribunal Constitucional nunca deixou de reconhecer à CEDH um importante papel de fonte «fonte auxiliar» na interpretação, clarificação e mesmo no desenvolvimento do conteúdo dos preceitos e princípios constitucionais respeitantes aos direitos fundamentais.
45. É necessário aceder ao juiz constitucional
antes de se poder recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (esgotamento
das vias de recurso internas)?
À questão de saber se o recurso para o Tribunal Constitucional
integra as vias de recurso internas cujo esgotamento constitui um pressuposto
de admissibilidade das queixas ao TEDH (nos termos do artigo 35º, nº
1, da CEDH) tem a generalidade da doutrina dado uma resposta negativa [52].
E a jurisprudência das instâncias de controlo da CEDH confirma este
entendimento: a maioria das queixas apresentadas contra Portugal ao TEDH, e
por este apreciadas, não foi objecto de apreciação anterior
no TC.
Este entendimento não surpreende: como vimos, não está em Portugal consagrado um instrumento do tipo da "queixa constitucional" e o recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional é restrito à questão de constitucionalidade, pelo que a justiça constitucional significa em Portugal, essencialmente, uma fiscalização da constitucionalidade de normas. Não faria assim sentido a exigência, como regra, da interposição daquele recurso para efeitos de acesso ao TEDH, pois a queixa ao TEDH por violação de direito consagrado na CEDH pode perfeitamente basear-se em comportamentos do Estado português que não se traduzam na emissão de normas, mas antes em actos administrativos ou sentenças judiciais. Como exemplo recente, pense-se no caso Salgueiro da Silva Mouta: aí, em acórdão de 21/12/99, o TEDH apreciou (tendo concluído pela violação do artigo 8º, combinado com o artigo 14º, da CEDH) uma queixa contra Portugal baseada no facto de o Tribunal da Relação de Lisboa ter atribuído o poder paternal do filho do requerente à sua ex-mulher, em vez de a ele próprio, fundando-se exclusivamente no facto de o requerente ser homossexual. Neste caso, o que foi apreciado pelo TEDH foi apenas um critério jurisprudencial seguido por aquele Tribunal da Relação, e não qualquer norma que pudesse ter sido antes submetida a julgamento de constitucionalidade no TC. O também recente caso Almeida Garrett, Mascarenhas Falcão e outros é ilustrativo a outro propósito: por acórdão de 11/01/2000, o TEDH, reconhecendo ter havido violação do artigo 1º du Protocolo n° 1 à CEDH, apreciou uma queixa baseada no atraso no pagamento de indemnizações por expropriações no âmbito da reforma agrária; tinha havido anteriormente um recurso para o TC, mas este tinha decidido (Acórdão nº 283/95) no sentido da sua inadmissibilidade por, justamente, não ter sido suscitada nenhuma questão de constitucionalidade de normas.
Não se pode assim dizer que as decisões do TEDH nos casos em que Portugal seja parte significam um controlo directo por parte do TEDH das decisões do TC.
Isto não quer dizer que não haja casos decididos pelo TEDH em que tenha havido, sobre o mérito, uma pronúncia anterior pelo TC. Foi, por exemplo, o que aconteceu no citado caso Saraiva de Carvalho, em que o TEDH, concluindo que não tinha havido violação do artigo 6º da CEDH, apreciou uma queixa sobre a coincidência entre o juiz autor do despacho de pronúncia e o juiz que preside ao julgamento em tribunal colectivo. Sobre o mesmo caso tinha recaído o Acórdão nº 219/89 do TC, que se tinha pronunciado pela não inconstitucionalidade (da norma que permitia essa coincidência) em virtude de o despacho de pronúncia, mantendo-se nos limites da acusação, ter apenas uma função garantística.
E foi também o que aconteceu no recente caso Lopes Gomes da Silva (Acórdão de 28/09/2000), onde o TEDH concluiu que a condenação, por crime de abuso de liberdade de imprensa, do director de um jornal diário (autor de um editorial muito crítico sobre um potencial candidato partidário a umas eleições autárquicas) configurava uma violação do direito à liberdade de expressão, constante do artigo 10º da CEDH [53]. No mesmo caso, o Tribunal Constitucional (Acórdão nº 113/97 [54]) - sublinhando que tanto a Constituição como o artigo 10º da CEDH prevêm certos limites ao exercício da liberdade de expressão - não tinha julgado inconstitucional a norma do art. 164, nº 1, do Código Penal (crime de difamação), na interpretação que admite o dolo eventual como elemento subjectivo suficiente para preenchimento do tipo, quando o agente haja actuado no exercício da liberdade de expressão, de informação e de imprensa.
É sabido que a intervenção das duas instâncias, nacional e europeia, de protecção de direitos fundamentais não se coloca exactamente no mesmo plano, já que, em Portugal, o Tribunal Constitucional - não existindo, como vimos, um mecanismo do tipo da "queixa constitucional" - está limitado à apreciação da constitucionalidade de normas, não podendo assim controlar a constitucionalidade da sua "aplicação" nem, senão muito limitadamente (na medida em que também lhe cabe o controlo da constitucionalidade da "interpretação" das normas que os outros tribunais fazem - cfr., supra, questão 39), dos critérios jurisprudenciais usados nos espaços de discricionariedade judicial deixados pelo legislador. E mesmo este último caso mostra que a questão a decidir pelo Tribunal Constitucional e pelo TEDH não era exactamente a mesma. Mas, seja como for, ele também revela que a convergência jurisprudencial, acima mencionada, na interpretação dos direitos fundamentais consagrados simultaneamente na Constituição portuguesa e na CEDH, ou dos seus limites, não é, mesmo actualmente, isenta de excepções [55].
B. O juiz constitucional e as outras jurisdições face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
46. O juiz constitucional está vinculado à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias? Em caso negativo, essa jurisprudência influencia a acção do juiz constitucional?
Nos termos do Tratado da União Europeia, os juízes nacionais - todos eles e, portanto, também o Tribunal Constitucional (na medida em que este, para a apreciação das questões que lhe compete julgar, tenha de proceder à interpretação de normas de direito comunitário) - estão vinculados à interpretação do direito comunitário levada a cabo pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) e são também "juízes comunitários", no sentido em que lhes cabe também velar pela salvaguarda do primado do direito comunitário, interpretado de acordo com aquela jurisprudência. Isto é mais nítido quando lançam mão de um reenvio prejudicial, que dá lugar a uma decisão do TJCE que vincula directamente o tribunal que a suscitou, e no caso em que foi suscitado; mas também é verdade para todos os casos idênticos, e para todos os tribunais, e mesmo que a interpretação do direito comunitário tenha resultado de um pedido de reenvio prejudicial apresentado por um tribunal de outro Estado.
Quanto à influência do TJCE: não se pode dizer que seja muito comum a referência à jurisprudência do TJCE nas decisões do Tribunal Constitucional. Podemos no entanto referir, como exemplos recentes, os Acórdãos (acima citados) nºs 412/2000 [onde o Tribunal analisou (como caso paralelo ao da presença do Ministério Público nas sessões do Supremo Tribunal Administrativo) o estatuto do Advogado-Geral junto do TJCE, e a forma como o TJCE apreciou esse estatuto, no Despacho de 04/02/2000 (Processo C-17/98), que determinou ser inadmissível a apresentação de observações escritas pelas partes, em resposta às conclusões do Advogado-Geral] e 187/2001, que não declarou a inconstitucionalidade das normas que reservam a propriedade das farmácias aos farmacêuticos [e onde foi citada a jurisprudência do TJCE sobre o princípio da proporcionalidade como limite à actividade legislativa - nomeadamente os Acórdãos de 13/11/90 (proc. C-331/98), de 12/11/96 (proc. C-84/94, caso "tempo de trabalho") e de 13/05/97 (proc. C-233/94, caso "garantia de depósitos") - e, em especial, a afirmação do TJCE (constante desta última decisão) segundo a qual o Tribunal de Justiça, quando a situação é economicamente complexa, não pode, ao julgar a conformidade com o princípio da proporcionalidade, "substituir a apreciação do legislador comunitário pela sua própria apreciação; de resto, só pode censurar a opção normativa do legislador se esta for manifestamente errada ou se os inconvenientes daí resultantes para certos agentes económicos forem desproporcionados em relação às vantagens que apresenta"] [56].
Também a jurisprudência especifica sobre matérias atinentes ao direito comunitário não é muito abundante. Para além dos Acórdãos referidos adiante, refira-se apenas o Acórdão nº 184/89 [57], no qual o Tribunal reconheceu o «efeito directo» dos Regulamentos do Conselho e, sobretudo, afirmou o princípio (coincidente com a doutrina estabelecida pelo TJCE) segundo o qual compete ao direito constitucional interno determinar as modalidades de «execução» desses mesmos regulamentos (ou seja, o órgão competente e a forma adequada ou necessária).
47. O juiz constitucional já efectuou algum
reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,
ou poderá fazê-lo? No caso de não aplicação
de disposições internas incompatíveis com o direito comunitário,
qual é o papel do juiz constitucional e das outras jurisdições?
A) Como se sabe, o artigo artigo 234º do Tratado da União estabelece que o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação desse Tratado e a validade e interpretação dos actos adoptados pelas Instituições da Comunidade ou pelo Banco Central Europeu. O reenvio prejudicial aí previsto é um instrumento ao serviço do primado ou da primazia da ordem jurídica comunitária, pois, como afirmou o Tribunal Constitucional, "permitir ao juiz nacional que interpretasse sozinho as normas de direito comunitário conduziria, a prazo mais ou menos longo, a permitir que se rompesse a unidade do direito comunitário, colocando no lugar da 'regra comum' um conjunto de regras deformadas pelas práticas jurisdicionais nacionais ... Com o reenvio prejudicial, o que se pretende é conseguir uma interpretação uniforme do direito comunitário em toda a Comunidade" [58].
Mas o juiz nacional dispõe de competência plena para aplicar o direito comunitário ao caso concreto submetido a julgamento. Para aplicar correctamente as disposições do Tratado ou dos actos normativos emanados das instituições comunitárias, se tiver dúvidas sobre a interpretação desse direito, enquadráveis em alguma das alíneas previstas naquele artigo 234º, é que poderá, suscitada oportunamente a questão, submetê-la ao Tribunal de Justiça.
O Tribunal Constitucional nunca efectuou um pedido de «reenvio prejudicial» para o TJCE. Contudo, o Tribunal já afirmou claramente a sua disponibilidade em fazer uso deste instrumento: no Acórdão nº 163/90 [59] reconheceu que a obrigação de «reenvio prejudicial» para o TJCE da correspondente «questão prévia» vale igualmente para ele, logo que se ponha uma questão de interpretação (ou de validade) e, consequentemente, de eficácia de uma norma de direito comunitário [60]. Note-se também que, no Acórdão nº 606/94, o Tribunal afirmou claramente que os pressupostos de admissibilidade de um recurso de constitucionalidade são inteiramente distintos, e em nada dependem, dos do reenvio prejudicial [61].
Haverá uma obrigatoriedade de apresentação ao TJCE de "reenvio prejudicial"? Claro que, nos termos do artigo 234º do Tratado da União, há um dever de reenvio, que recai sobre os tribunais nacionais que decidam em última instância, quando a questão a resolver dependa da interpretação do direito comunitário (ou seja, o tribunal nacional que decide em última instância tem o dever de reenviar ao TJCE a questão prejudicial suscitada, a menos que constate que essa questão não é pertinente: e é sempre ele o juiz dessa pertinência [62]).
Pode, no entanto, colocar-se a questão - abordada infra -, que se prende com a possível obrigação [63], que recairá principalmente sobre o Tribunal Constitucional, de proceder ao reenvio prejudicial para o TJCE da questão da interpretação e validade de norma de direito comunitário, sempre que esta esteja em risco de ser julgada inconstitucional pela jurisdição nacional (e admitindo a legitimidade desse julgamento).
B) A segunda questão (o papel do juiz constitucional e das outras jurisdições no controlo da compatibilidade das normas internas com o direito comunitário) é uma das duas questões decisivas na matéria das relações entre o direito interno e o direito comunitário: a outra prende-se com a possibilidade de controlo da constitucionalidade das normas comunitárias [64].Ambas as questões se podem colocar, claro está, em dois planos distintos, embora ligados entre si: o primeiro prende-se com a relação entre as normas de direito «substantivo» comunitárias e internas; o segundo, com a articulação entre os mecanismos de controlo jurisdicional comunitário e os instrumentos de garantia jurisdicional internos (nomeadamente os que passam pela intervenção do Tribunal Constitucional, órgão criado pela Constituição para a sua própria salvaguarda, e para tanto dotado por ela de uma legitimidade privilegiada). Trata-se, em ambos os planos, de harmonizar ou compatibilizar duas ordens jurídicas distintas (com distintos órgãos jurisdicionais supremos), cuja interpenetração "desafia a concepção hierárquica do direito" [65].
Na economia do presente relatório, interessa-nos essencialmente este segundo plano ("institucional"). Quanto ao modo como a questão "substancial" das relações entre o direito comunitário e o direito interno, maxime o direito interno constitucional, é abordada em Portugal, e, em especial, pela sua jurisprudência constitucional, dir-se-á apenas o seguinte.
A consideração da questão pelo lado do direito constitucional português (que ultrapasse uma abordagem unicamente "comunitarista", baseada na reafirmação do «efeito directo» das normas de direito comunitário nas ordem jurídicas internas dos Estados-membros e da «primazia» do direito comunitário sobre o direito nacional, incluindo neste o próprio direito constitucional - ponto que continua em aberto, e cuja discussão é cada vez mais actual) revela-nos "uma visão claramente favorável à cooperação jurídica internacional, afastando-se de uma posição estreitamente nacionalista e apontando para soluções que tornem fácil a vigência na ordem interna dos compromissos internacionais assumidos pelos Estado português" [66]. O que é confirmado na aceitação sem problemas, por parte da doutrina e jurisprudência [67] portuguesas, do «princípio da primazia» do direito comunitário sobre o direito interno ordinário (mesmo posterior), com base, no que toca ao direito comunitário derivado, no disposto no artigo 8º, nº 3, CRP, e, no que toca ao direito comunitário primário, no artigo 8º, nº 2, CRP (o qual, segundo a doutrina maioritária e a jurisprudência do Tribunal Constitucional, consagra implicitamente o princípio da superioridade hierárquica do direito convencional recebido sobre o direito interno de fonte legal).
Quanto à questão "institucional", diga-se, desde logo, que em Portugal a realização do primado do direito comunitário não está reservada de forma alguma ao Tribunal Constitucional, nem está subtraída à competência dos tribunais comuns. Todos os tribunais portugueses - incluindo o Tribunal Constitucional - também são, assim, tribunais "comunitários" (a quem cabe defender o primado do direito comunitário, com submissão à interpretação desse direito feita pelo TJCE). Na verdade, em Portugal - vimo-lo acima -, o Tribunal Constitucional só intervém, na fiscalização concreta da constitucionalidade, em sede de recurso contra decisões dos outros tribunais, pelo que, mesmo que o problema da incompatibilidade de uma norma interna com uma norma de direito comunitário devesse ser qualificado como uma "questão de constitucionalidade" [68], isso nunca impediria - nem dispensaria - o tribunal comum português, chamado a apreciar a questão, de a decidir e de tornar efectiva, sendo esse o caso, a primazia da norma ou princípio comunitário [69].
Assim, apurada a competência dos tribunais comuns para poder - e dever - aplicar o direito comunitário e defender a sua primazia (se necessário, deixando para tanto de aplicar o direito ordinário interno), o problema que se põe em Portugal prende-se com a possibilidade ou não de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional contra as decisões dos tribunais comuns (seja qual for o seu sentido) nessa matéria. Na verdade, se a incompatibilidade entre o direito interno e o direito comunitário for também qualificada como «inconstitucionalidade», a primazia do direito comunitário sobre o direito interno ordinário será assegurada em última instância pelo Tribunal Constitucional; caso contrário, a responsabilidade pela sua efectivação ficará exclusivamente nas mãos da jurisdição «comum».
O Tribunal Constitucional abordou recentemente a questão, nos Acórdãos nºs 326/98 e 621/98 [70]: no primeiro, o Tribunal não conheceu da questão da conformidade de norma legal interna com Directiva, e da consequente questão da violação do art. 8º, nº 3, CRP, tendo afirmado que "as questões de constitucionalidade que, ex vi do artº 70º, nº 1, alínea b), da LTC, incumbe a este Tribunal conhecer, são justamente aquelas em que determinada norma, cuja inconstitucionalidade foi questionada, viola, directamente ou, se se quiser, imediatamente, norma ou princípio constante da Lei Fundamental, não abrangendo, por isso, as situações em que tal violação decorre de modo indirecto, o que o mesmo é dizer, as situações em que a violação se coloca por via de uma prévia violação de um preceito constante de lei infraconstitucional". Aqui, limitou-se [71] assim o Tribunal a transpor a argumentação há muito por si usada (ao princípio, apenas por uma das suas secções) na questão «paralela» de saber se a incompatibilidade de uma norma de direito interno com o direito internacional convencional se traduz ou não numa «inconstitucionalidade», chegando ao mesmo resultado (ou seja, a uma resposta negativa) pelo mesmo fundamento (a recusa de uma noção de inconstitucionalidade «indirecta», resultante apenas da inobservância da hierarquia de normas estabelecida ou pressuposta pela Constituição) [72].
Mas no Acórdão nº 621/98, em questão em tudo semelhante, já foi mais longe. Rejeitando a qualificação da incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário como uma situação de «inconstitucionalidade» que ao Tribunal Constitucional caiba apreciar, alargou a sua argumentação às seguintes considerações [73]: "diferentemente (ou para além) do que sucede na recepção interna do direito internacional convencional em geral, a recepção do direito comunitário envolve (ou envolveu) também a dos mecanismos institucionais que visam especificamente garantir a sua aplicação; ora, compreendendo a ordem jurídica comunitária - recebida nesses termos 'compreensivos' e globais pelo direito português, logo por via de uma cláusula da própria Constituição - uma instância jurisdicional precipuamente vocacionada para a sua mesma tutela (e não só no plano das relações interestaduais ou intergovernamentais), e concentrando ela nessa instância a competência para velar pela aplicação uniforme e pela prevalência das suas normas, seria algo incongruente que se fizesse intervir para o mesmo efeito, e no plano interno, uma outra instância do mesmo ou semelhante tipo (como seria o Tribunal Constitucional)" [74].
Parece ser esta a solução que melhor permite harmonizar as competências do Tribunal Constitucional e do TJCE (mesmo que ela traga consigo a consequência de impedir que o Tribunal Constitucional - se quiser ser coerente - possa, em fiscalização abstracta da constitucionalidade, declarar com força obrigatória geral a ineficácia de uma norma de direito interno contrária ao direito comunitário e, consequentemente, eliminar essa norma do ordenamento jurídico [75]).
Diga-se ainda que o disposto no artigo 70º, nº 1, i), da LTC - segundo o qual cabe recurso (que é, aliás, obrigatório para o Ministério Público - cfr. artigo 72º, nºs 3 e 4, LTC) para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais "que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional" [76] - não se deverá considerar aplicável aos casos de contrariedade de norma comunitária derivada por norma de direito interno legal (atendendo à referida necessidade de compatibilização das intervenções do Tribunal Constitucional e do TJCE, conjugado com o facto de esses casos se situarem claramente fora do âmbito literal do preceito), mas o mesmo já não se poderá dizer com tanta certeza quando a norma "violada" constar do direito comunitário primário (pois aí parece impor-se a letra da lei). Note-se que estes dois específicos problemas nunca foram abordados pelo Tribunal (pois os recursos que teve que apreciar, e em que se suscitavam questões próximas, foram sempre fundados noutras alíneas do artigo 70º, nº 1, LTC).
Quanto à segunda das questões decisivas em matéria de relações entre o TJCE e o Tribunal Constitucional (possibilidade de controlo da constitucionalidade de normas comunitárias), diga-se desde já que a Constituição portuguesa não estabelece nenhuma diferenciação ou restrição (com excepção da fiscalização preventiva) quanto às normas sujeitas ao controlo da constitucionalidade, que abrange, assim, todas as normas aplicáveis no quadro da ordem jurídica portuguesa, incluindo, segundo a maioria dos constitucionalistas portugueses, as normas de direito internacional convencional (aí compreendidas as do direito comunitário primário) e as do direito comunitário derivado.
O Tribunal Constitucional nunca se pronunciou sobre a possibilidade de exercer esta sua competência, nem as jurisdições ordinárias tiveram que tomar posição sobre o problema da eventual inconstitucionalidade de norma de direito comunitário.
A questão tem de ser deixada em aberto, impondo-se no entanto fazer-se referência ao enquadramento da questão proposto por José Manuel Cardoso da Costa [77]: salientando-se a importância, para uma ponderação da questão mais consentânea com as opções político-constitucionais envolvidas no processo de integração europeia, dos contributos que se podem retirar do artigo 7º, nº 6, CRP (nomeadamente, a consideração de que a «adesão» do Estado português à União Europeia implica o reconhecimento e a aceitação da arquitectura institucional correspondente, aí compreendida uma instância jurisdicional concebida para garantir que uma tal comunidade se perfile ou se apresente como "comunidade de direito"), e alertando-se contra a pobreza da análise da questão com base apenas nas normas constitucionais de onde se retiraria aquela competência "total" da jurisdição constitucional, sugere-se, por um lado, que o controlo da constitucionalidade das normas de direito comunitário seja restringido à averiguação da compatibilidade dessas normas com os princípios inspiradores e estruturais fundamentais da Constituição (a salvaguarda da competência do Tribunal Constitucional como guardião do «núcleo essencial» da Constituição seria quase totalmente compatibilizável com a afirmação do princípio de aplicação uniforme do direito comunitário em todo o espaço europeu); e, por outro lado, que o Tribunal Constitucional nunca avance para uma decisão de inconstitucionalidade de normas de direito comunitário sem antes submeter a questão prejudicial da sua interpretação e/ou da sua validade ao TJCE, através do "reenvio prejudicial": só no caso de ser impossível chegar a um resultado (compatibilizador das duas ordens jurídicas) satisfatório, é que o Tribunal Constitucional deveria fazer apelo, como ultima ratio, ao seu poder-dever de guardião daquele "núcleo essencial" (que não se restringiria à matéria de direitos fundamentais, e para cuja densificação seria importante o artigo 288º da CRP - que estabelece os limites materiais de revisão constitucional) [78].
48. A jurisdição interna pode escolher entre o "acesso" ao juiz constitucional e ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias?
Note-se que o relacionamento entre o juiz ordinário português e o TJCE é diferente do que se estabelece entre aquele e o Tribunal Constitucional. Enquanto que no primeiro caso as questões podem ser apresentadas pelo juiz nacional ao TJCE (e, como vimos, em última análise a decisão de apresentação do reenvio prejudicial é desse juiz), no segundo caso, são as partes que podem recorrer para o Tribunal Constitucional de decisões do juiz ordinário em que este aplica norma arguida de inconstitucional ou não aplica norma que considera inconstitucional. Assim, o juiz ordinário, em rigor, não pode "escolher" entre o Tribunal Constitucional e o TJCE, ao contrário do que aconteceria (e do que porventura acontece, nos países com esse sistema) se o nosso sistema fosse, também na fiscalização concreta da constitucionalidade, o da questão prejudicial: então sim, seria aparentemente lícito ao juiz ordinário - perante, por exemplo, uma suposta incompatiblidade entre uma norma de direito comunitário derivado e a Constituição - escolher entre colocar ao Tribunal Constitucional a questão de saber se a Constituição permite tal norma, ou perguntar ao TJCE se a correcta e única interpretação dessa norma é aquela que é acusada de brigar com a Constituição (ou se não há outra interpretação possível) - com a possível consequência de não ser indiferente, nem política nem juridicamente, saber quem tinha a primeira intervenção na matéria (pela influência que a sua decisão fatalmente teria na apreciação que o outro tribunal porventura viesse a fazer).
Entre nós, porém, as coisas não se passam assim: são as partes que acedem ao juiz constitucional, não podendo assim o juiz ordinário afastar esse acesso (desde que as partes apresentem o recurso ao Tribunal Constitucional respeitando os respectivos pressupostos, nomeadamente os relativos à competência do Tribunal, nos termos atrás analisados).
No entanto, também se pode dar o caso de uma norma interna ser acusada, simultaneamente, de inconstitucionalidade e de violação do direito comunitário. Num caso desses, já o juiz ordinário poderia "escolher" entre provocar uma intervenção imediata do TJCE ou não. Naquela hipótese, o juiz sobrestaria na decisão, suscitando ao TJCE a questão prejudicial sobre a compatibilidade dessa norma com o direito comunitário e, dessa forma, talvez afastando a possibilidade de intervenção do Tribunal Constitucional, se o TJCE confirmasse aquela violação, pois daí resultaria a obrigação do juiz ordinário não aplicar a norma de direito interno, decisão não passível de recurso para o Tribunal Constitucional (por não se tratar de recusa de aplicação fundada em inconstitucionalidade e, simultaneamente, porque não faria sentido que o Tribunal Constitucional - obrigado a respeitar a divisão de tarefas entre os Estados-membros e a União Europeia, nos termos do Tratados da União e do artigo 7º, nº 6, CRP - sindicasse o juízo sobre a compatibilidade da norma com o direito comunitário, já feito pelo órgão competente para o efeito, o TJCE) [79], Na segunda hipótese, considerando mais importante a questão de constitucionalidade, o juiz provocaria antes uma quase certa intervenção do Tribunal Constitucional ao desaplicar por inconstitucionalidade a norma interna (no caso de esta ser uma norma legal, o recurso que então se abriria para o Tribunal Constitucional seria, como já vimos, de interposição obrigatória para o Ministério Público).
Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
XIIª Conferênciados Tribunais
Constitucionais Europeus
As relações entre os tribunais constitucionais
e as outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência,
nesta matéria, da acção das jurisdições europeias
Relatório do Tribunal Constitucional Português
Relatório elaborado pelos Assessores do Gabinete do Presidente do Tribunal
Constitucional, António de Araújo, Luís Miguel Nogueira
de Brito e Joaquim Pedro Cardoso da Costa, sob a orientação do
Vice-Presidente do Tribunal, Conselheiro Luís Nunes de Almeida
O presente relatório segue, de perto, o questionário
apresentado pela entidade organizadora (a Cour d'Arbitrage da Bélgica)
e está actualizado a 15/10/2001. Os Acórdãos do Tribunal
Constitucional citados, de 1998 ou posteriores, também se encontram publicados
na página oficial do Tribunal na Internet
[Bruxelas, maio de 2002]
[1] Com a excepção apontada no texto, os tribunais militares foram extintos com a revisão constitucional de 1997, permanecendo no entanto em funções, provisoriamente, nos termos do artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro.
[2] Cfr. Diário da Assembleia da República, II S, de 27-III-1982, p. 1330.
[3] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 1992, pp. 18 e ss.
[4] Cfr. António de Araújo e Joaquim Pedro Cardoso da Costa, III Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha - Relatório Português, separata do Boletim do Ministério da Justiça, nº 493, Lisboa, 2000, pp. 36 e ss.
[5] Cfr. António de Araújo e Joaquim Pedro Cardoso da Costa, III Conferência..., cit., p. 39.
[6] Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, p. 1015; Armindo Ribeiro Mendes, I Conferência da Justiça Constitucional da Ibero-América, Portugal e Espanha. Relatório Português, separata do Boletim de Documentação e Direito Comparado, nº 71/72, 1997, p. 743.
[7] Durante o período constitucional transitório (1976-1982), ou seja, antes da criação do Tribunal, a fiscalização concreta da constitucionalidade cabia, em última linha, à Comissão Constitucional, órgão que funcionava junto do Conselho da Revolução.
[8] Quanto a este conceito, cfr. Richard Bronaugh, "Persuasive Precedent", in Laurence Goldstein (ed.), Precedent in Law, Clarendon Press, Oxford, 1987, pp. 217 e ss..
[9] Tais situações têm sucedido, embora raramente: ver os Acórdãos n.º 187/88, n.º 256/90, n.º 473/92 e n.º 225/95, in, respectivamente, Acórdãos, 12º vol., pp. 55 e ss.; Acórdãos, 16º vol., pp. 7 e ss.; Diário da República, I Série-A, n.º 18, de 22 de janeiro de 1993; Acórdãos, 31º vol., pp. 37 e ss.
[10] Tal situação já ocorreu: cfr., por exemplo, os Acórdãos n.º 456/93 e 334/94, in Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 9 de setembro de 1993, e II Série, n.º 200 – suplemento, de 30 de agosto de 1994
[11] Exemplos de veto político que se seguiram a pronúncias de não inconstitucionalidade em fiscalização preventiva ocorreram relativamente aos diplomas apreciados nos Acórdãos n.ºs 1/91 e 13/95, in, respectivamente, Acórdãos, 18º vol., pp. 7, e Diário da República, II Série, n.º 34, de 9 de fevereiro de 1995.
[12] Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1999, p. 952.
[13] Foi o que aconteceu com a questão da propriedade das farmácias e com as indemnizações por nacionalizações e expropriações, em que, não obstante os Acórdãos n.ºs 76/85 e 39/88, publicados, respectivamente, in Acórdãos, 5º vol., pp. 71 e ss., e 11º vol., pp. 233 e ss., não se terem pronunciado pela inconstitucionalidade de certas normas, foram apresentados novos pedidos de apreciação abstracta de constitucionalidade das mesmas, tendo sido, em ambos os casos, confirmadas as anteriores decisões do Tribunal, no primeiro caso, pelo Acórdão nº 187/2001 (Diário da República, IIª s., 26/06/2001), e, no segundo, pelo Acórdão n.º 452/95, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., pp. 135 e ss.
[14] Cfr. "A Justiça Constitucional no Quadro das Funções do Estado", in Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Inconstitucionalidade de Normas, VII Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus, Lisboa, 1987, pp. 123-124.
[15] Cfr. Luís Nunes de Almeida, ob. e loc. cit..
[16] Cfr. Luís Nunes de Almeida, ob. cit., p. 125.
[17] Diário da República, IIª s., de 11/11/99.
[18] Diário da República, Iª s.-A, de 03/05/94.
[20] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9º, pp. 83 e ss..
[21] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pp. 135 e ss..
[22] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 19º, pp. 189 e ss..
[23] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6º, pp. 153 e ss..
[24] Cfr. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, Os Autores, os Efeitos e o Conteúdo da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, p. 863.
[25] Cfr. António Rocha Marques, "O Tribunal Constitucional e os outros Tribunais: A Execução das Decisões do Tribunal Constitucional", in AA. VV., Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, p. 470.
[26] A este propósito, referindo um caso em que os tribunais comuns se recusaram repetidamente a acatar a interpretação da lei adoptada pelo Tribunal Constitucional, o que acabou por motivar a interposição de cinco recursos para o Tribunal Constitucional sobre a mesma questão, cfr. Luís Nunes de Ameida, "La compétence d' appel du Tribunal Constitutionnel du Portugal sur les décisions des cours ordinaires", in Conférence internationale - Rélations entre les cours constitutionnelles et les autres juridictions (Sarajevo, les 18 et 19 mars 2000), Sarajevo, 2001, pp. 63-64.
[27] Diário da República, IIª s., de 27/03/2000 e 09/11/2000, respectivamente.
[28] Cfr., a este propósito, "Entretien avec M. José Manuel Cardoso da Costa" (in Cahiers du Conseil Constitutionnel, n.º 10, 2001, p. 41) e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 205/99, 655/99 e 383/00 (publicados nos mesmos Cahiers..., pp. 46 e ss., 50 e ss. e 55 e ss., respectivamente).
[29] fr. Miguel Galvão Teles, "A Competência da Competência do Tribunal Constitucional", in AA. VV., Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional (Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional), Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 120.
[30] A adesão de Portugal à CEDH - através da Lei nº 65/78, de 13/10 - produziu efeitos a partir de 09/11/78, e incluiu, desde o início, a aceitação da competência da Comissão assim como da do Tribunal dos Direitos do Homem. Em contrapartida, Portugal formulou oito reservas à Convenção, das quais, no entanto, seis já foram retiradas, através da Lei nº 12/87, de 07/04.
[31] Cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem - Anotada, 2ª ed., Coimbra Editora, 1999, p. 308.
[32] Sirva como exemplo o recente e já citado Acórdão nº 187/2001, sobre a questão da propriedade das farmácias.
[33] Publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 29 e vol. 30, e no Diário da República, IIª s., de 14/07/98.
[34] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 16.
[35] Diário da República, IIª s., 15/03/99.
[36] No Acórdão nº 632/99, que tratou de temática semelhante, também se fez apelo à decisão de 09/12/91 da Comissão Europeia dos Direitos do Homem (segundo a qual a CEDH "não garante expressamente o direito de ser informado, numa língua que o réu compreenda, da natureza e da razão de uma acção cível", limitando-se a prevê-lo em matéria penal - artigo 6º § 3) para fundamentar o julgamento de não inconstitucionalidade de certos preceitos do Código do Processo Civil que permitem que a citação, em país estrangeiro (signatário da Convenção de Haia de 15/11/65), de uma sociedade com sede nesse país, através de carta registada com aviso de recepção, seja feita em língua portuguesa. O Tribunal entendeu que, "ponderado o valor da utilização da língua portuguesa nos actos judiciais, a citação, sem tradução na língua do país onde aquela é feita, ou numa das veiculares da Convenção de Haia, não compromete o direito do citado a um processo equitativo; ... tendo como padrão um citando com diligência e zelo minimamente exigíveis, será de todo inaceitável que, recebida uma carta com aviso de recepção, a parte não procure saber o sentido da comunicação e, sem mais, a remeta para um arquivo".
[37] No primeiro, estava em causa o confronto entre o preceito do Código do Processo Civil que prevê que o juiz possa "convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada" com, entre outros, os princípios da imparcialidade dos tribunais e do processo equitativo; e, no segundo, tinham certos preceitos do Código de Processo Penal (os que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, mesmo nos casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior, ou a pessoa do seu presidente) sido acusados de, entre outros, violarem o direito a um processo equitativo.
[38] Diário da República, IIª s., 17/02/2000 e 21/11/2000.
[39] Tendo também sido discutidas outras decisões das jurisdições europeias, em especial os casos Borgers, de 30/10/91 e Van Orshoven, de 25/06/97.
[40] Diário da República, Iª s., 10/05/2001.
[41] Ireneu Cabral Barreto, A Convenção ..., cit., p. 52, refere, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/96 e 07/11/96 (Boletim do Ministério da Justiça, nºs 454, p. 507 e 461, p. 54), sobre a presença do arguido preso preventivamente na audiência de julgamento no Supremo Tribunal de Justiça e sobre expulsão de estrangeiros, respectivamente.
[42] Com efeito, no caso Ruiz-Mateos v. Espanha, de 23/06/93, o Governo português e o Governo alemão apresentaram observações escritas. Portugal sustentou, nomeadamente, que um procedimento perante um Tribunal Constitucional não devia entrar em linha de conta no cálculo do período a examinar (para efeitos de determinação de uma violação do direito a uma justiça em "prazo razoável"), e que - em razão da sua natureza, da sua estrutura e das suas competências - os Tribunais Constitucionais escapam ao império do artigo 6º, nº 1, da CEDH.
[43] Principalmente nos últimos anos. É de notar que, se até 1998 Portugal só tinha sido parte em 17 processos decididos pelo TEDH, esse número cresceu exponencialmente a partir daí, sendo já muito significativo o número de condenações que Portugal sofreu no TEDH, resultantes de queixas por violação do direito a uma justiça em "prazo razoável", constante do artigo 6º da CEDH: nos anos de 1999 a 2001 o TEDH decidiu 53 processos em que Portugal era parte, e, desses, os 49 processos em que a queixa se baseava em atrasos da justiça (12 em 1999, 18 em 2000 e 19 em 2001, até 15 de outubro) terminaram todos ou com um acordo amigável ou com a condenação de Portugal - de uma forma ou de outra, sempre com o pagamento de uma indemnização ao queixoso -, destacando-se destes últimos o caso Oliveira Modesto e outros, decidido em 08/06/2000, em que Portugal foi condenado a pagar a considerável quantia de 109.800.000$00 a 122 requerentes, que eram empregados de uma mesma empresa falida de Aveiro - 900.000$00 a cada um.
[44] Ao contrário do que já sucedeu, por exemplo, quanto ao Tribunal Constitucional alemão (cfr. os casos Pammel, Probstmeier, ambos de 01/07/97, e Klein, de 27/07/2000, nos quais o TEDH concluiu ter havido violação do direito a uma justiça em "prazo razoável", constante do artigo 6º, nº 1, da CEDH, e os casos Süßmann, de 16/09/96, e Gast and Popp, de 25/02/2000, onde se concluiu - apesar da reafirmação da aplicabilidade do referido artigo 6º, nº 1, aos procedimentos perante os Tribunais Constitucionais - não ter havido, nos casos em concreto, violação da Convenção). Sobre essa polémica jurisprudência do TEDH (cfr. ainda, além do caso Ruiz-Mateos, os casos Krcmár e outros v. República Checa, de 03/03/2000, Trickovic v. Eslovénia, de 12/06/2001, e Rodríguez Valín v. Espanha e Diaz Aparicio v. Espanha, ambos de 11/10/2001; ver também, no entanto, o caso Pierre-Bloch v. França, de 21/10/97, onde o TEDH considerou não aplicável o artigo 6º, nº 1, da CEDH - por não estar em causa nenhum direito "de carácter civil" nem nenhuma "acusação em matéria penal" - a um procedimento perante o Conseil Constitutionnel, no qual este órgão determinou, por irregularidades em matéria de contas eleitorais e financiamento partidário, a perda de mandato de um deputado e a sua inelegibilidade pelo período de um ano) afirmou recentemente Konrad Kruis (antigo juiz do Tribunal Constitucional alemão), de forma muito crítica: "The relationship between the European Court of Human Rights and the Federal Constitutional Court is harmonic. The only point of discussion could be found in the opinion of the European Court that an individual complaint to the Federal Constitutional Court forms part of the domestic legal remedies. In my opinion it is desirable that Strasbourg abandons this point of view. That way, the European Court would become more effective. The procedure of the complaint of unconstitutionality could then be understood as an extraordinary legal remedy which in the same way as the individual complaint to the Court in Strasbourg does not fall under the time-guarantee of Article 6 ECHR. The Federal Constitutional Court would in this way be liberated from the pressure that it experiences due to the possible reproach of too long procedures; this problem frequently arises with difficult questions of fundamental importance. Insofar, the same applies for the Federal Constitutional Court as for the Court in Strasbourg; it is not really known for quick functioning either. In view of the different sources of law, it is inconsistent to consider the complaint of unconstitutionality - being an extraordinary legal remedy - as a part of the ordinary domestic legal remedies. As the European Convention only has the status of ordinary law in Germany, i.e. sorting under the constitutional law, the Federal Constitutional Court does not control whether or not it is respected by the lower courts; that just falls within the jurisdiction of Strasbourg" ["Relations between the European Court of Human Rights and the (German) Federal Constitutional Court", in Conférence internationale - Rélations entre les cours constitutionnelles et les autres juridictions (Sarajevo, les 18 et 19 mars 2000), Sarajevo, 2001, pp. 134-135].
[45] Ou então, se se tratar de norma que o próprio Tribunal Constitucional já haja julgado inconstitucional, nos artigos 280º, nº 5, da CRP e 70º, nº 1, g), da LTC (sendo indiferente o facto de o juiz a quo apenas se referir à CEDH e não se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade ou sobre a decisão de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional). Neste caso, aliás, o recurso é obrigatório para o Ministério Público.
[46] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, cit., nota 27, pp. 26-27, e "Entretien...", cit., p. 41.
[47] Assim, nesta hipótese rara, diríamos que o juiz ordinário não poderia afastar a intervenção do juiz constitucional, mas esta intervenção já não abrangeria a análise da contrariedade da CEDH pela lei.
[48] Restarão apenas, ao que parece, os casos raríssimos de "desaplicação" pelo juiz ordinário de norma regulamentar por violação de direito fundamental, constante da CEDH, que não encontre correspondência no amplíssimo catálogo de direitos fundamentais da CRP.
[49] Dos mais recentes, cfr., por exemplo, os Acórdãos, acima citados, nºs 352/98 (onde se pode ler: "se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num sentido de aplicação directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não olvidar que, se dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais já se retirarem, em todas as sua vertentes ... os alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo, pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das coisas, destituído de sentido") e em especial, mostrando de forma clara a «contenção» do Tribunal, 223/95 [onde se afirma: "à semelhança do que este Tribunal já teve ocasião de afirmar a propósito de outros princípios jurídico-internacionais ... também agora se dirá que, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (recte, no seu artigo 6º), nada se diz que se não contenha já na Constituição da República Portuguesa (maxime, no seu artigo 20º); por isso, o direito a um julgamento equitativo e o princípio da igualdade de armas, que se extraiem daquele artigo 6º, serão aqui tomados em consideração apenas enquanto elementos coadjuvantes da clarificação do sentido e alcance da garantia da protecção jurídica e da via judiciária, consagrada no artigo 20º da Constituição, e não como "padrão autónomo" de um juízo de constitucionalidade; o Tribunal, como já antes sucedera ... continua a não precisar de decidir aqui se, em matéria direitos fundamentais, o controlo de constitucionalidade abrange (ou não) a apreciação da conformidade das normas internas com princípios jurídico-internacionais recebidos in foro domestico"]. Da jurisprudência mais antiga ver, por exemplo, os Acórdãos nºs 222/90 (acima citado), 14/84 e 99/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 2 e 11). São deste último as seguintes afirmações: "fica de antemão excluído que na resposta à questão sub judice caiba afinal considerar as citadas Declaração [Universal dos Direitos do Homem] e Convenção [Europeia dos Direitos do Homem] autonomamente, isto é, independentemente dos princípios e normas constitucionais que para tanto venham a julgar-se relevantes; ... quer isto dizer, por outro lado, que é antes à luz dos referidos princípios e normas constitucionais que haverá de resolver-se a questão em apreço; e no contexto deles, quando muito, é que poderiam levar-se em conta os instrumentos internacionais invocados, enquanto elementos coadjuvantes da clarificação do sentido e alcance de tais normas e princípios; isso, porém, seria coisa diversa de tomá-los como padrões autónomos de um juízo de constitucionalidade, mas seria, sem dúvida, um procedimento não só seguramente admissível, como até recomendável, face à indicação consignada no artigo 16º da Constituição".
[50] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "A hierarquia das normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos fundamentais" (relatório português à 8ª Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus - Ancara, maio/1990), in Boletim do Ministério da Justiça, nº 396 (também publicado na Revue Universelle des Droits de l'Homme, 1990, vol. 2, nº 6-8); António Vitorino, "Protecção constitucional e protecção internacional dos direitos do homem: concorrência ou complementaridade?", (relatório português à 9ª Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus - Paris, maio/1993), in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXIV, 1993, pp. 111-179 (e Conseil Constitutionnel, Paris, 1993, pp. 493 ss); e José Manuel Cardoso da Costa, "Le Tribunal constitutionnel portugais et les juridictions européennes", in Paul Mahoney, Franz Matscher, Herbert Petzold e Luzius Wildhaber, Protection des droits de l'homme: la perspective européenne. Protecting human rights: the european perspective – Mèlanges à la mémoire/Studies in memory of Rolv Ryssdal, Colónia, Berlim, Bona, Munique, Carl Heymanns Verlag KG, 2000, pp. 193-211, IIª parte.
[51] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "Entretien...", cit., p. 42.
[52] Ver, por exemplo, António Vitorino, "Protecção constitucional...", cit., p. 170.
[53] O TEDH afirmou, nomeadamente, que "os escritos do requerente, e em particular as expressões utilizadas, podiam passar por polémicos, mas não continham um ataque pessoal gratuito, porque o seu autor deu uma explicação objectiva para eles; ... neste domínio, a discussão política transborda muitas vezes para o plano pessoal: estão aí os riscos do jogo político e do livre debate de ideias, garantes de uma sociedade democrática; ... a liberdade do jornalista também compreende o recurso a uma certa dose de exagero, de provocação; ... a condenação do jornalista não representava assim um meio razoavelmente proporcionado à prossecução do fim legítimo visado tendo em conta o interesse da sociedade democrática em assegurar e manter a liberdade de imprensa".
[54] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36.
[55] Saliente-se que o referido Acórdão Lopes Gomes da Silva foi publicado recentemente na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, nº 1, Jan.-março/2001 (pp. 131-144), acompanhado de "Anotação - A informação, a honra, a crítica e a pós-modernidade (ou os equilíbrios instáveis do nosso desassossego)", de José de Faria Costa (Idem, pp. 144-155), onde o autor - que teve participação no processo como conseiller do Governo português - o comenta, nomeadamente, nos seguintes termos: "O que se critica não é a decisão em si mesma do Tribunal. O que se critica é a intolerável ausência de um critério material a justificar um tal acto. O que se critica é a manifestação de um deserto argumentativo. O que se critica é a potestas da manifestação de um poder que se não sujeita minimamente ao debate legitimador do confronto teórico-prático que a assunção de uma doutrina ou de uma ideia sempre permite. O que se critica é lançar como elemento referencial - auto-referencial, diríamos nós -, para a própria fundamentação legitimadora, o caso precedente" (cfr. p. 153).
[56] Refira-se ainda, quanto à influência do direito comunitário na jurisprudência constitucional portuguesa, o Acórdão nº 93/2000, onde o Tribunal, em sede de fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade e legalidade de referendo local, considerou não legalmente admissível a pergunta proposta aos cidadãos de certo município, tal como foi interpretada pelo Tribunal, sobre a realização ou não de "touradas" com "sorte de morte", que são proibidas pela lei portuguesa. Sobre essa proibição, o Tribunal salientou que ela não violava a Constituição portuguesa, nem era proibida pelo Tratado da União Europeia [nem pelo artigo 151º, nºs 1 e 4 (ex-artigo 128º) - sobre a diversidade cultural na Europa -, nem, pelo contrário, pelo Protocolo, anexo ao Tratado, «relativo à protecção e ao bem-estar dos animais»].
[57] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13-I.
[58] Cfr, Acórdão nº 163/90 do Tribunal Constitucional (ver infra).
[59] Publicado em Acórdãos do Tribunal Constitutional, vol. 16, e comentado por J.L.Cruz Vilaça/L.M.Pais Antunes/Nuno Piçarra "Droit constitutionnel et droit communautaire. Le cas portugais", in Rivista di Diritto Europeo, 1991, nº 2, pp. 308 e ss.. Ver também Rui Moura Ramos, "Reenvio prejudicial e relacionamento entre ordens jurídicas na construção comunitária" (in Das Comunidades à União Europeia, Coimbra, 1994, p. 233).
[60] Afirmou-se aí: "as partes podem suscitar perante o juiz nacional a questão prejudicial do reenvio, mas só o juiz pode provocar a intervenção do Tribunal das Comunidades, pois o processo de reenvio prejudicial consubstancia-se num diálogo entre o juiz nacional e o juiz comunitário, sendo assim, um processo sem partes; .... o reenvio prejudicial só se justifica quando a questão de interpretação de uma norma de direito comunitário se deva considerar pertinente: isto é, quando o caso sub judice tenha de ser decidido de acordo com aquela regra, mostrando-se necessária, para essa resolução, a opinião do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias". Nesse caso concreto, no entanto, o Tribunal Constitucional entendeu que nem sequer era suscitada uma "questão de interpretação" de uma norma de direito comunitário. Cfr. ainda os recentes Acórdãos nºs 658/99, 240/2000 e 278/2000, que, entre muitos outros semelhantes, também indeferiram pedidos de reenvio prejudicial. No primeiro caso, o pedido prendia-se com a validade, face a Regulamento comunitário, da interpretação de deteminada norma legal interna, e o Tribunal indeferiu-o por não estar em causa nenhuma questão relativa à interpretação de norma comunitária, e uma vez que, constando a norma questionada de diploma legal interno, a questão suscitada, tal como o pedido surgia delineado nos autos, não era configurável "como um problema interpretativo de actos adoptados pelas Instituições da Comunidade ou pelo Banco Central Europeu, em ordem a, subsequentemente, avaliar a compatibilidade com aqueles actos de tal norma". No segundo caso, o Tribunal não viu suscitadas quaisquer dúvidas relevantes no sentido de que houvesse desconformidade ou invalidade em determinadas normas internas tendo por referência quaisquer normas constantes do ordenamento comunitário, designadamente as do Tratado da União Europeia. E no Acórdão nº 278/2000 não estava em causa "nem a interpretação do Tratado de Amesterdão, nem a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas Instituições da Comunidade ou pelo BCE, nem, muito menos, a interpretação dos estatutos dos organismos criados por acto do Conselho, o que equivale por dizer que a matéria do presente processo não pode ser objecto de reenvio prejudicial ao abrigo do que se dispõe no artigo 234º do Tratado de Amesterdão".
[61] Acórdãos do Tribunal Constitutional, vol. 29. Tratava-se de um caso em que a recorrente tinha requerido a suspensão da instância com fundamento em que a questão a decidir nesse processo (legalidade de certas normas internas em confronto com normas de um Regulamento comunitário e normas do Tratado de Roma) já havia sido suscitada, como questão prejudicial, noutro processo pendente num Tribunal português, devendo, assim, no seu entender, sobrestar se na decisão do recurso, uma vez que, para o julgamento deste, haveria que ter em conta a decisão que o TJCE viesse a proferir em tal pedido de decisão prejudicial. O Tribunal não lhe deu razão: "a decisão que eventualmente o Tribunal de Justiça das Comunidades venha a proferir noutro qualquer processo, ainda que respeitando a um caso materialmente similar ou mesmo idêntico, pode não ser considerado prejudicial da decisão a proferir no presente processo; é que, mesmo não questionando agora a existência de um efeito erga omnes decorrente da decisão do Tribunal de Justiça, não pode deixar de se reconhecer que a decisão que este Tribunal Constitucional venha a proferir relativamente ao recurso em apreço está dependente de pressupostos relativamente aos quais a decisão do Tribunal de Justiça, qualquer que possa vir a ser, é totalmente neutra ou indiferente e por isso, não parece possível poder afirmar se sem mais uma tal relação de prejudicialidade". No mesmo processo, curiosamente, veio o Tribunal posteriormente a pronunciar-se (Acórdão nº 365/96) sobre a curiosa questão (determinante desde logo para apurar a sua competência) de saber se se pode qualificar o Tratado de Roma como "lei com valor reforçado". O Tribunal deu uma clara resposta negativa - considerando-se assim incompetente - baseado no facto de o conceito de "lei com valor refoçado" pressupor inequivocamente um acto normativo de direito interno. Note-se que o Tribunal apenas se podia pronunciar sobre esta questão, e nos exactos termos em que ela tinha sido suscitada pelo recorrente; assim, nesse caso não lhe cabia apreciar - e não o fez - a questão, em tese geral, da relação entre o direito internacional, «maxime» o direito comunitário, quer originário quer derivado, e o direito interno português.
[62] Como afirma A. Barbosa de Melo, "o juiz nacional, não só pode, como deve, sozinho, considerar a questão como impertinente para um pedido de reenvio" (Notas de Contencioso Comunitário, Coimbra, 1986, p. 130).
[63] Claramente enquadrável no «dever prudencial» de reenvio, a que se refere A. Barbosa de Melo, Notas..., cit., pp. 131 ss..
[64] Segue-se de perto José Manuel Cardoso da Costa, "O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", in Ab Uno Ad Omnes. 75 anos da Coimbra Editora (1920-1995), Coimbra Editora, 1998, pp. 1363-1380 (cuja versão francesa, actualizada, está publicada em José Manuel Cardoso da Costa, Le Tribunal constitutionnel portugais et les juridictions européennes, cit., Iª parte).
[65] Cfr. Miguel Poiares Maduro, "O "superavit" democrático europeu", in Análise Social, vol. XXXVI (nºs 158-159), Primavera-Verão/2001, pp. 119-152 (em especial "Paradoxo III - A Competência das Competências ou Quem decide quem decide?", pp. 144 e ss.), p. 144. Ver também Mattias Kummm, Who is the Final Arbiter of Constitutionality in Europe? Three Conceptions of the Relationship between the German Federal Constitutional Court and the European Court of Justice and the Fate of the European Market Order for Bananas, (Harvard Jean Monnet Chair Working Papers 10/98, in http://www.law.harvard.edu/programs/JeanMonnet/papers ).
[66] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", cit., p. 1366: são aí salientadas, para fundamentar a afirmação do texto, as opções constituconais no sentido da consagração do princípio da «recepção geral automática» das normas de direito internacional convencional in foro domestico (cfr. o artigo 8º, nº 2, CRP: "as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português"); da "importação" da regra de «efeito directo» de que benefeciam as normas de direito comunitário derivado (cfr. o artigo 8º, nº 3, CRP: "as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos"); e da autorização a Portugal para, "em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia" (artigo 7º, nº 6, CRP, norma aditada pela Revisão Constitucional de 1992, "por ocasião" da aprovação e ratificação do Tratado de Maastricht). Note-se que acaba de ser aprovada na Assembleia da República, em 4 de outubro de 2001, uma Revisão Constitucional extraordinária que contém, pelo menos, duas alterações no sentido do reforço da integração europeia: a nova redacção do nº 6 do Artigo 7º - "Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social e de um espaço de liberdade, segurança e justiça, convencionar o exercício em comum ou em cooperação dos poderes necessários à construção da União Europeia"; e o novo nº 5 do artigo 33º - "O disposto nos números anteriores [proibição de extradição para países que tenham prisão perpétua, a não ser que existam garantias de que não será aplicada tal pena] não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia".
[67] Cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/12/91 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 412).
[68] O que decorreria do facto de o primado do direito comunitário resultar, como vimos, da Constituição (passando então a contradicão entre o direito comunitário derivado e uma norma de direito interno a também ser vista como uma violação de um princípio constitucional).
[69] Cfr., a este propósito, o Acórdão do TJCE, de 27/06/90, no caso Mecanarte, o primeiro em que o TJCE teve que decidir um "reenvio prejudicial" apresentado por um tribunal português (e a respectiva "Anotação", de Nuno Piçarra, na Colectânea de Jurisprudência Comunitária, Gabinete de Direito Europeu do Ministério da Justiça, Lisboa, 1992, p. 42).
[70] Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 40 e 41.
[71] Ver, no mesmo sentido, o Acórdão nº 570/98 e, sobre uma situação ligeiramente diferente, o Acórdão nº 125/98.
[72] Cfr., por exemplo, os Acórdãos nºs 277/92, 405/93 e 354/97, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 22 e 25, e no Diário da República, IIª s., de 18/06/97.
[73] Que correspondem a uma citação directa do autor que temos vindo a acompanhar: cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", cit., p. 1371.
[74] Em sentido idêntico, ver ainda o Acórdão nº 93/2001.
[75] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", cit., p. 1372.
[76] Mas já não, note-se, das decisões dos tribunais que apliquem norma interna que as partes tenham arguido de desconforme com norma de direito internacional convencional a que Portugal esteja vinculado. Trata-se, assim, de um preceito instituído claramente numa lógica de "defesa da lei" (cfr. a recente explicação de José Manuel Cardoso da Costa: "C´est une intervention de la Cour pour défendre la loi. Décider de refuser d´appliquer la loi parce qu´elle est contraire à un traité international est une question constitutionnelle importante. Il faut donc que cette décision soit appréciée par la Cour constitutionnelle. Mais ce qu’on peut apprécier ce ne sont que les questions de droit constitutionnel et de droit international. Par exemple, dès lors que la Constitution établit la primauté du traité sur la loi, on va vérifier si le traité est en vigueur dans l´ordre juridique international et s´il oblige l´Etat portugais; mais on ne va pas examiner la question de la contrariété" - in "Entretien...", cit., p. 41).
[77] Cfr. José Manuel Cardoso da Costa, "O Tribunal Constitucional português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", cit., pp. 1374-1379.
[78] Veja-se ainda o diálogo sobre a matéria entre o autor referido e Dominique Rousseau (DR): "DR – Avez-vous un ' traitement' particulier pour le droit communautaire ? Est-ce que le Tribunal constitutionnel portugais pourrait contrôler le droit communautaire dérivé, une directive, un règlement, au regard de la Constitution ? JMCC - Je dirais que, d´ après la lettre de la Constitution, sûrement oui. C´ est possible d´ après la lettre de la constitution puisque notre compétence est une compétence, disons, universelle. Elle s´ étend à tout précepte juridique qui peut être appliqué par une Cour portugaise et qui est intégré dans l´ordre juridique portugaise. Donc, une directive transposée, ou un règlement, a un effet direct et, du moment qu´ils font partie de l´ordre juridique portugais, ils peuvent être soumis au contrôle de constitutionnalité d´ après la lettre de la Constitution. Le problème ne s’est jamais posé jusqu´à présent. ... Je vous donne mon opinion personnelle. A mon avis, la Cour constitutionnelle doit reconnaître sa compétence. DR - C´ est donc la solution allemande dite « Solange » ? JMCC – « Solange », non, pas exactement ! Ma position est un peu singulière. Ce que j´ ai proposé c´est : premièrement, la Cour constitutionnelle ne doit pas examiner l´affaire sans, au préalable, faire jouer la question préjudicielle devant la Cour de Justice européenne pour lui demander comment elle interprète la disposition communautaire en cause. Ce serait le premier pas. Deuxième pas: la Cour portugaise ne devrait aller jusqu´ au refus d´une règle communautaire qu´au cas où il y a une contradiction notoire et substantielle, vraiment essentielle avec la Constitution. C´ est la façon dont, personnellement, j’envisage le problème" (in "Entretien...", cit., pp. 41-42).
[79] Foi o que aconteceu, recentemente, com várias decisões do Supremo Tribunal Administrativo relativas a normas em matéria de emolumentos notariais, acusadas simultaneamente de violação do princípio constitucional da proporcionalidade e de violação duma Directiva comunitária: aquele tribunal suscitou a intervenção do TJCE, que confirmou a violação do direito comunitário; a questão da sua constitucionalidade não chegou assim a ser apreciada no Tribunal Constituional.