Conferências Tripartidas Portugal, Espanha e Itália
Encontro dos Tribunais Constitucionais de Itália,
Espanha e Portugal
A execução das decisões do Tribunal Constitucional
pelo Legislador
Relatório do Tribunal Constitucional Português
elaborado pelos Assessores do Gabinete do Presidente
do Tribunal Constitucional, Miguel Nogueira de Brito, Joaquim Pedro Cardoso
da Costa e António de Araújo)
[Roma, 28 de maio de 2001]
1. Introdução: a complexidade do modelo de controlo da constitucionalidade no direito português
A principal característica do sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade criado pela Constituição da República Portuguesa (CR) reside na sua complexidade ou, se se preferir, na multiplicidade de modelos jurídico-constitucionais que concorrem na sua caracterização.
Assim, a Constituição consagra o controlo difuso, concreto e incidental dos actos normativos, na linha do sistema estabelecido, em termos inovadores na Europa, pela Constituição republicana de 1911, a qual, por sua vez, através da influência que sobre ela exerceu a Constituição republicana brasileira de 1891, reflectia a inspiração do modelo da judicial review. A competência para fiscalizar a constitucionalidade das normas é assim reconhecida a todos os tribunais, sejam eles judiciais, administrativos ou fiscais, como decorre do disposto no artigo 204º da Constituição. A estes compete, seja por impugnação das partes, seja oficiosamente, julgar e decidir a questão da inconstitucionalidade das normas aplicáveis ao caso concreto submetido a decisão judicial.
Ao lado do controlo difuso e concreto, a Constituição portuguesa consagra ainda um controlo concentrado e abstracto de normas, denotando a influência da concepção kelseniana da justiça constitucional.
Aliás, no caso português, o controlo abstracto pode ser feito, a todo tempo, depois de as normas serem plenamente válidas e eficazes na ordem jurídica – controlo sucessivo – mas também antes de os diplomas entrarem em vigor – controlo preventivo (cfr. artigos 281º e 278º da CR). Revela-se aqui a influência de um terceiro paradigma jurídico-constitucional, o controlo a priori de constitucionalidade levado a cabo pelo Conseil Constitutionnel francês.
Por último, a Constituição portuguesa consagra, desde a versão originária, uma fiscalização de inconstitucionalidade por omissão (cfr. artigo 283º da CR), nisso se afastando do comum das constituições europeias. Está prevista exclusivamente a fiscalização por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais (artigo 283º, n.º 1).
2. Os efeitos típicos das decisões
do Tribunal Constitucional
2.1 As decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva3. A execução das decisões do Tribunal Constitucional
Para além de decisões de natureza processual (não conhecimento do pedido por extemporaneidade, por exemplo), o Tribunal Constitucional pode proferir um de dois tipos de decisão, em sede de fiscalização preventiva: pronunciar-se pela inconstitucionalidade ou não se pronunciar pela inconstitucionalidade da totalidade ou de parte das normas submetidas a apreciação:– no caso de o Tribunal se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante de qualquer decreto ou acordo internacional, o diploma deve ser obrigatoriamente vetado pelo Presidente da República.
– se o Tribunal não se pronunciar pela inconstitucionalidade, esta decisão não faz caso julgado, podendo em processo de fiscalização abstracta sucessiva vir a ser declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral [1].
O texto normativo, no caso de veto por inconstitucionalidade, não pode ser promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado haja expurgado a norma julgada inconstitucional ou, quando for caso disso, “o confirme por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria dos deputados em efectividade de funções” (artigo 279º, n.º 2, CR). O Tribunal Constitucional já aceitou que também os diplomas regionais sejam susceptíveis de confirmação (cfr. o Acórdão n.º 151/93).
No caso de confirmação do diploma, o Presidente da República (ou o Ministro da República) não é obrigado a promulgar (ou a assinar) o decreto. Situação diversa ocorre na confirmação do diploma vetado politicamente pelo Presidente da República, ou pelo Ministro da República, casos em que é obrigatória a promulgação ou assinatura (cfr. artigos 136º, n.º 2 e 3, e 233º, n.º 3, CR).
Se, porém, o órgão autor do diploma onde se achava a norma objecto de pronúncia de inconstitucionalidade a expurgar ou reformular o diploma, poderá o “Presidente da República ou o Ministro da República, conforme os casos, requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas” (artigo 279º, n.º 3, da CR) [2]. Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante de tratado, o Presidente da República só pode ratificá-lo – embora não seja obrigado a fazê-lo, uma vez que a ratificação é um acto livre do Presidente – se a Assembleia da República o vier a aprovar por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (artigo 279º, n.º 4, da CR).
Se o Tribunal Constitucional não se pronunciar pela inconstitucionalidade do diploma, deverão o Presidente da República ou o Ministro da República promulgar ou assinar os decretos em causa, se não exercerem o direito de veto político [3].
2.2 As decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta sucessiva
No que respeita às decisões finais do Tribunal em sede de fiscalização abstracta sucessiva, podem as mesmas ser de acolhimento da tese da inconstitucionalidade ou da ilegalidade (decisões positivas), declarando a inconstitucionalidade ou ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma ou normas que constituem o objecto do pedido, ou de rejeição da inconstitucionalidade ou da ilegalidade (decisões negativas).Publicada a decisão de declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) com força obrigatória geral na I Série do jornal oficial (cfr. artigos 122º, n.º 1, alínea g), da CR e 3º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional - LTC) a mesma produz efeitos, em regra, desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela eventualmente haja revogado (artigo 282º, n.º 1, da CR). A regra geral é, pois, a da invalidade ab initio ou ex tunc (nulidade), embora fiquem ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal quando a norma respeitar a direito sancionatório público (matéria penal, disciplinar, ou de ilícito administrativo, ou seja, “ilícito de mera ordenação social”) e for de conteúdo menos favorável ao arguido (artigo 282º, n.º 3, da CR).
O Tribunal pode ainda fixar os efeitos da inconstitucionalidade (ou ilegalidade) com um alcance mais restrito do que o previsto nas regras gerais dos n.ºs 1 e 2 do artigo 282º da CR, quando a segurança pública, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem (cfr. artigo 282º, n.º 4).
A importância da norma do artigo 281º, n.º 4, da CR consiste em permitir ao Tribunal Constitucional a «manipulação» dos efeitos das sentenças de declaração de inconstitucionalidade, abrindo-lhe a possibilidade de exercer poderes tendencialmente normativos [4]. Deste modo, articulando os efeitos previstos no n.ºs 1 e 2 do artigo 282º com os “efeitos mais restritos” referidos no n.º 4, pode o Tribunal determinar que uma sua decisão de inconstitucionalidade produza apenas efeitos pro futuro ou ex nunc e não implique a repristinação da norma ou normas revogadas pela norma declarada inconstitucional.
As decisões que não declaram a inconstitucionalidade ou a ilegalidade (decisões negativas) não fazem caso julgado, podendo a questão ser reposta no futuro [5].
2.3 As decisões do Tribunal em sede de fiscalização concreta
As decisões proferidas nos recursos de fiscalização concreta não têm força obrigatória geral, nem eficácia erga omnes. Valem apenas para as partes do recurso e para terceiros no processo a quem possam aproveitar (artigo 74º, n.ºs 1, 2 e 3, da LTC). De facto, a decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada.No caso de o recurso merecer provimento total ou parcial, o Tribunal Constitucional revoga a decisão recorrida (sistema cassatório), devendo o tribunal recorrido reformar a decisão – ou mandá-la reformar a um tribunal de hierarquia inferior - em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) – artigo 80º, n.º 2, da LTC.
O artigo 80º, n.º 3, da LTC prevê a possibilidade de o próprio Tribunal Constitucional fixar uma interpretação da norma aplicada pelo tribunal recorrido ou daquela a que este recusou aplicação, de forma a evitar que haja inconstitucionalidade (ou ilegalidade). Essa interpretação conforme à Constituição vincula o tribunal recorrido.
2.4 As decisões do Tribunal em sede de fiscalização por omissão
O Tribunal pode proferir decisões positivas, de verificação de inconstitucionalidade por omissão, ou decisões negativas, de não verificação de inconstitucionalidade por omissão. No primeiro caso, o Tribunal deve dar conhecimento da omissão ao órgão legislativo competente (cfr. artigo 283º, n.º 2).A declaração de inconstitucionalidade por omissão não possui nenhuma eficácia jurídica directa, não podendo o Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na criação do regime legal em falta.
Nos pontos anteriores deste relatório foram expostos, apenas nos seus traços gerais, os tipos de controlo da constitucionalidade previstos no direito constitucional português e a diversidade dos efeitos das decisões do Tribunal no âmbito de cada um deles. O objectivo de tal exposição consiste em evidenciar a diversidade de problemas que a execução das decisões do Tribunal coloca ao legislador.
A este propósito, torna-se possível estabelecer uma regra de proporcionalidade directa entre os casos em as decisões do Tribunal estão dotadas da máxima eficácia jurídica, como acontece com a fiscalização abstracta sucessiva e a fiscalização concreta, e a complexidade dos problemas que a execução dessas decisões envolve. É, com efeito, natural que os problemas da execução das decisões do Tribunal Constitucional se suscitem sobretudo quando existam efeitos jurídicos definitivos dessas mesmas decisões no âmbito do tipo de controlo a que respeitam relativamente às normas objecto de tal controlo. Já no âmbito da fiscalização preventiva, em que não obstante a decisão do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade, o texto normativo submetido à sua apreciação pode vir a ser, respectivamente, promulgado, ratificado ou assinado, nos termos atrás expostos, a execução pelo legislador da decisão do Tribunal é essencialmente uma questão política ? ainda que, sublinhe-se, nunca o Parlamento haja confirmado um diploma objecto de pronúncia de inconstitucionalidade por parte do Tribunal. O significado político da decisão do Tribunal Constitucional é ainda mais evidente no âmbito da fiscalização por omissão, podendo mesmo aquela ser interpretada como um apelo do Tribunal aos órgãos legiferantes [6].
A questão da execução das decisões do Tribunal Constitucional como problema essencialmente jurídico é, pois, uma questão suscitada no âmbito da fiscalização abstracta sucessiva e no âmbito da fiscalização concreta.
O tema proposto, isto é, a execução das decisões do Tribunal Constitucional pelo legislador, conduz à exclusão do tratamento da questão da execução das decisões proferidas em sede de fiscalização concreta.
No domínio da fiscalização abstracta sucessiva, o modelo teórico que lhe subjaz é, como se sabe, o do «legislador negativo». O Tribunal Constitucional, quando declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, actua supostamente como um «legislador negativo», eliminando do ordenamento jurídico as normas inconstitucionalizadas, sem poder dar ao legislador directivas sobre o modo como há-de legislar. Este modelo do «legislador negativo» visava justamente, no pensamento de Kelsen, permitir aos tribunais constitucionais erradicarem do ordenamento jurídico as normas inconstitucionais, sem necessitarem da intervenção de outros órgãos, constituindo por essa razão a melhor garantia da reparação imediata da inconstitucionalidade pelos referidos tribunais [7].
O modelo do «legislador negativo» pressupõe, na sua pureza, o desenvolvimento das relações entre Constituição e lei de acordo com um rígido sistema binário: se a lei é declarada inconstitucional, deve ser expulsa do ordenamento jurídico; se é declarada não inconstitucional, a sua força jurídica permanece intocada [8].
Ora, a jurisprudência dos vários tribunais constitucionais europeus tem demonstrado a insuficiência do modelo do «legislador negativo», e do sistema binário que lhe subjaz, para caracterizar a sua actividade, como o demonstra a crescente proliferação de decisões intermédias. Essa insuficiência decorre, desde logo, do facto de o modelo do «legislador negativo» (tal como o pensamento de Kelsen, seu criador) não conviver facilmente com a crescente importância que adquirem as normas constitucionais com estrutura de princípios como parâmetro de controlo das normas submetidas à apreciação dos tribunais constitucionais.
Antes, porém, de se proceder à abordagem desse tema na perspectiva da fiscalização abstracta sucessiva, convirá fazer uma sucinta referência ao modo como o legislador tem encarado as decisões proferidas pelo Tribunal no âmbito da fiscalização preventiva e da fiscalização por omissão.
4. A execução
pelo legislador das decisões do Tribunal Constitucional proferidas em
sede de fiscalização preventiva e de fiscalização
por omissão
Como atrás se referiu, não obstante uma decisão do Tribunal
Constitucional que se pronuncie pela inconstitucionalidade de uma norma submetida
à sua apreciação no domínio da fiscalização
abstracta preventiva, tal norma pode vir a ser objecto de promulgação,
ratificação ou assinatura, conforme os casos.
Mas, na prática (numa perspectiva de law in action, que não de law in books), nunca a Assembleia da República utilizou o poder previsto na parte final do n.º 2 do artigo 279º da CR. Por outras palavras, não se conhecem situações em que, tendo-se o Tribunal Constitucional pronunciado pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto ou convenção internacional e tendo o Presidente da República vetado o diploma e devolvido o mesmo à Assembleia da República, haja o mesmo sido confirmado por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções [9].
Em regra, pois, emergem as situações em que o Tribunal Constitucional se pronunciou pela inconstitucionalidade de normas em sede de fiscalização preventiva e a doutrina por si firmada veio a ser considerada posteriormente pelo legislador.
Assim, através do Acórdão n.º 107/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, 1988, pp. 7 e ss.), o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade de diversas normas constantes de um decreto da Assembleia da República, relativo à revisão do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho, do contrato de trabalho a termo e do regime processual da suspensão e redução da prestação do trabalho.
Ora, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de fevereiro, que veio posteriormente a aprovar o regime jurídico de cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, pode ler-se o seguinte: “A ponderação dos contributos recebidos durante a discussão pública e as balizas decorrentes da Constituição, da lei de autorização legislativa e do Acórdão n.º 107/88 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 21 de junho de 1988, conduziram à reformulação de diversos preceitos do projecto posto à discussão pública, com destaque para o respeitante ao conteúdo do controlo judicial da justa causa para despedimento individual, ao montante das importâncias a pagar ao trabalhador relativamente ao período posterior ao despedimento declarado ilícito e ao processo disciplinar dos membros da comissão de trabalhadores ou representantes sindicais nas pequenas empresas” (sublinhado acrescentado).
O que acaba de ser dito permite concluir, desde logo, que as decisões do Tribunal Constitucional proferidas no domínio da fiscalização abstracta preventiva são acatadas pelo legislador. Esta consideração é reforçada pela consciência da relevância jurídica própria de uma decisão do Tribunal Constitucional que se pronuncie pela inconstitucionalidade de uma norma em sede de fiscalização preventiva, mesmo que essa norma venha a entrar em vigor. Tal relevância assenta na possibilidade de o Tribunal Constitucional poder vir a considerar de novo, em controlo sucessivo abstracto ou concreto, a norma como inconstitucional (cfr. Acórdão n.º 85/85, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6, pp. 245 e ss.). Por outro lado, pode entender-se que o juízo de inconstitucionalidade é pressuposto de recurso obrigatório do Ministério Público para efeitos do artigo 280º, n.º 5, da CR, o que significa que a aplicação de uma norma relativamente à qual o Tribunal se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade em sede de fiscalização preventiva dará, com grande probabilidade, azo à sua reapreciação pelo Tribunal em sede de fiscalização concreta [10].
No que toca às decisões do Tribunal proferidas no âmbito de processos de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, verifica-se que o legislador tende a concertar a sua actividade legislativa constitucionalmente devida com a intervenção do Tribunal Constitucional.
Assim:
a) Através do Acórdão n.º 276/89 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II Série, n.º 133, de 12 de junho de 1989), deu-se por não verificada a omissão de medidas legislativas necessárias para tornar exequível o artigo 120º, n.º 3, da CR (correspondente ao artigo 117º após a revisão de 1997), por ter sido entretanto publicada a Lei n.º 34/87, de 16 de julho. A mencionada norma constitucional dispunha o seguinte: “A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato”.
O processo legislativo foi desencadeado no início de 1987, com a apresentação dos projectos de lei do Partido Socialista e do Partido Renovador Democrático, tendo o Processo n.º 23/87, que culminou no mencionado Acórdão, tido origem num pedido apresentado pelo Provedor de Justiça no Tribunal Constitucional em 3 de fevereiro de 1987.
A apresentação do processo n.º 23/87, com a consequente notificação do Presidente da Assembleia da República, tiveram naturalmente repercussão no processo legislativo de que veio a resultar a Lei n.º 34/87, tendo-se assim o legislador antecipado à decisão do Tribunal Constitucional.
b) Através do Acórdão n.º 182/89 (in Diário da República, I Série, n.º 51, de 2 de março de 1989), o Tribunal Constitucional decidiu dar “por verificado o não cumprimento da Constituição por omissão da medida legislativa prevista no n.º 4 do seu artigo 35º, necessária para tornar exequível a garantia constante do n.º 2 do mesmo artigo”.
Com efeito, apesar das iniciativas legislativas levadas a cabo entre 1979 e 1987, referidas no Acórdão do Tribunal Constitucional, nenhum dos projectos ou propostas de lei se converteu em lei, o que apenas veio a acontecer com a Lei n.º 10/91, de 29 de abril, a Lei de Protecção de Dados Pessoais face à Informática, a qual criou a Comissão Nacional de Dados Pessoais Informatizados e define os que deve entender-se por “dados pessoais”.
Na discussão dos projectos e propostas de lei de que veio a resultar a Lei n.º 10/91 alude-se ao Acórdão do Tribunal Constitucional mencionado, tendo sido referido que “o Tribunal Constitucional veio exprimir perante a Assembleia da República que sem uma lei mediadora que definisse o ‘conceito de dados pessoais para efeitos de registo informático’ e sem saber quais são esses dados pessoais proibidos não era, como não é, possível proibir com rigor o acesso a eles”.
c) No Acórdão n.º 36/90 (in Diário da República, II Série, n.º 152, de 4 de julho de 1990), o Tribunal Constitucional decidiu não dar por verificada a omissão da medida legislativa prevista no artigo 241º, n.º 3, da CR (correspondente, com nova redacção, ao artigo 240º, após a revisão de 1997), dando notícia do processo legislativo decorrido na primeira sessão legislativa (1987-1988) da V Legislatura da Assembleia da República, no âmbito do foi votada a aprovação na generalidade de 3 projectos de lei apresentados pelo Partido Socialista, Partido Democrático Social e Centro Democrático Social, os quais baixaram à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
No Acórdão citado pode ler-se o seguinte: “Ora, se pode duvidar-se de que a apresentação de projecto ou proposta de lei tenha, só por si, a virtualidade de afastar a existência de omissão para efeito de declaração de inconstitucionalidade, a aprovação, embora só na generalidade desse projecto ou proposta já deverá considerar-se, em regra, suficiente para tal efeito”.
Do processo legislativo mencionado veio a resultar a Lei n.º 49/90, de 24 de agosto, sobre consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local.
d) Através do Acórdão n.º 638/95 (in Diário da República, II Série, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995), o Tribunal Constitucional decidiu “não ter por verificada a omissão das medidas legislativas necessárias à exequibilidade da norma do artigo 52º, n.º 3, da CR”, por entretanto ter sido publicado a Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, sobre o direito de participação procedimental e de acção popular.
Também aqui o legislador não terá sido alheio ao facto de se encontrar pendente um pedido, apresentado em 8 de outubro de 1993 pelo Provedor de Justiça em processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, tendo por objecto a norma do n.º 3 do artigo 52º da CR.
Com base nos quatro casos sumariados, certa doutrina já concluiu que, por um lado, o legislador, uma vez emitido pelo Tribunal Constitucional um juízo de inconstitucionalidade por omissão legislativa, apresta-se a dar-lhe cumprimento, e edita a norma ou normas jurídicas em falta; por outro lado, o legislador ciente da existência de pedidos de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, apressa-se a iniciar ou a completar o processo legislativo em causa, antecipando-se até ao juízo do Tribunal [11].
Todavia, para além de uma relação de simples contemporaneidade entre a intervenção do Tribunal e a actuação do legislador, não é possível estabelecer qualquer relação de causalidade entre ambas, atendendo precisamente à ausência de eficácia jurídica directa das decisões do Tribunal neste âmbito. Poder-se-á mesmo admitir que a verificação da relação de contemporaneidade mencionada assenta na “moderação” ou no self-restraint que os órgãos constitucionais com legitimidade para requerer a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão têm demonstrado no uso de tal faculdade.
5. A execução pelo legislador das
decisões do Tribunal em sede de fiscalização abstracta
sucessiva
Como acaba de se ver, é fácil dizer o que significa para
o legislador executar as decisões do Tribunal Constitucional proferidas
em processos de fiscalização preventiva e de fiscalização
por omissão: no primeiro caso significa não confirmar a norma,
nos casos em que o possa fazer; no segundo, significa emitir as normas destinadas
a dar cumprimento ao disposto na Constituição.
Mas o que significa executar as decisões do Tribunal no domínio da fiscalização abstracta sucessiva? Em que medida essas decisões são auto-exequíveis (self-executing) e em que medida a respectiva execução carece da intervenção do legislador?
A resposta a estas interrogações impõe que se retome aqui a análise dos efeitos típicos das decisões do Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização abstracta sucessiva. Como atrás se referiu, as decisões do Tribunal Constitucional que declaram a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral revestem-se de: (1) um efeito invalidatório, que consiste em eliminar retroactivamente da ordem jurídica a norma inconstitucional, desde o momento da entrada em vigor desta última, e (2) um efeito aditivo, que consiste na repristinação das norma ou normas revogadas pela norma declarada inconstitucional [12].
Na medida em que os efeitos típicos de uma declaração de inconstitucionalidade se produzem automaticamente, ope constitutionis, as decisões do Tribunal com esse âmbito são sempre, com esse sentido, auto-exequíveis.
Coloca-se, no entanto, ainda a questão de saber se a estes efeitos típicos se junta ainda aquele que se poderia designar pelo efeito preclusivo das decisões de inconstitucionalidade e que consistiria na imposição ao legislador do dever de, no exercício subsequente da actividade legislativa, não reproduzir a norma declarada inconstitucional, se desse modo a norma incorrer no mesmo tipo de inconstitucionalidade que foi declarada.
A simples formulação deste eventual efeito preclusivo permite, desde logo, distingui-lo qualitativamente dos efeitos invalidatório e repristinatório (ou aditivo), consagrados no artigos no artigo 282º, n.º1, da CR. Através destes últimos, a declaração de inconstitucionalidade afecta unicamente, mas de modo imediato, a concreta aplicação da norma inconstitucional; a admissão daquele implica discutir em que medida o legislador se encontra vinculado pela declaração de inconstitucionalidade.
Os parâmetros com base nos quais se deverá discutir a extensão de um efeito preclusivo das declarações de inconstitucionalidade, com o conteúdo atrás referido, consistem na discussão dos vícios de inconstitucionalidade de uma eventual reprodução pelo legislador de uma norma anteriormente declarada inconstitucional e na medida da vinculação do Tribunal Constitucional pela sua anterior decisão se, naquela hipótese, for chamado novamente a intervir [13].
Seja como for que se encare essa questão, e ainda que se limitem os efeitos da declaração de inconstitucionalidade à concreta aplicação da norma inconstitucional, essa declaração envolve sempre, pelo menos, um efeito preclusivo negativo: ceteris paribus, o Tribunal, confrontado com norma que reproduza o mesmo tipo de inconstitucionalidade que já antes havia declarado, tornará a pronunciar-se no mesmo sentido. Como resulta do que acaba de ser dito, o conteúdo concreto do efeito preclusivo depende, desde logo, do tipo de inconstitucionalidade que seja declarado:
– se se tratar de um caso de inconstitucionalidade formal ou orgânica, respeitante à forma de exteriorização do acto normativo, ao procedimento que o antecede ou à competência para a sua prática, a norma é repetível quanto ao conteúdo;
– pelo contrário, perante uma inconstitucionalidade material, respeitante ao conteúdo do acto normativo, a repetição da norma poderá envolver nova declaração de inconstitucionalidade.
Podemos, por último, encarar o carácter self-executing das decisões do Tribunal, já não na perspectiva da produção automática dos efeitos típicos previstos no artigo 281º, n.ºs 1 2, da CR, ou sequer na perspectiva da vinculação do legislador por essas decisões, mas na perspectiva da posição do legislador subsequente à declaração de inconstitucionalidade.
Nesta última perspectiva, podemos distinguir três situações:
1ª casos em que a decisão do Tribunal faz acompanhar a censura da norma do exercício de poderes normativos que tornam inútil a intervenção subsequente do legislador.
2ª por outro lado, e num outro extremo, são também numerosos os casos em que as decisões do Tribunal pressupõem a colaboração activa do legislador.
3ª por último, existem casos em que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não contende, em si mesma, com a intervenção legislativa na regulamentação ou modulação dos efeitos por ela produzidos automaticamente. É à análise destes três tipos de casos que vai agora proceder-se.
5.1 Começando pelo último tipo de casos apontado, alguma doutrina entende, como já se disse, que a vinculação do legislador às declarações de inconstitucionalidade (ou ilegalidade) implica para aquele a proibição de neutralizar ou contrariar tais declarações através de convalidação retroactiva, por acto legislativo, de actos administrativos praticados com base numa norma declarada inconstitucional sem restrição de efeitos, nos termos previstos no artigo 282º, n.º 4, da CR [14].
Esta afirmação coloca o problema de saber em que medida uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral é compatível com uma intervenção legislativa na modulação dos efeitos produzidos ope constitutionis por essa declaração.
O problema foi abordado no Acórdão n.º 142/85, de 30 de julho de 1985 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6, pp. 81 e ss.).
Tal Acórdão foi proferido no âmbito de um processo de fiscalização abstracta sucessiva desencadeado por um pedido do Provedor de Justiça, formulado ao abrigo do artigo 281º da CR e 51º da LTC, em que se requeria a declaração da inconstitucionalidade orgânica e material das normas do Decreto-Lei n.º 78/83, de 9 de fevereiro, respeitante ao regime de colocação na disponibilidade dos funcionários do serviço diplomático, que alterou os artigos 37º e 38º do Decreto-Lei n.º 47.331, de 23 de novembro de 1966.
Com especial interesse para a situação agora em análise, o artigo 2º, n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 78/83 dispunha o seguinte: “No prazo de 30 dias a contar da data da publicação do presente diploma, os funcionários que à data da publicação da Resolução do Conselho da Revolução n.º 161/82, de 2 de setembro, se encontravam nas situações de disponibilidade simples ou em serviço podem solicitar a sua reintegração no serviço diplomático, indo ocupar as vagas existentes no momento da reintegração na respectiva categoria ou, se elas não existirem, os lugares que para o efeito serão aumentados ao quadro e se extinguirão à medida que vagarem. Decorrido aquele prazo, os funcionários que não tenham solicitado a reintegração permanecerão na situação de disponibilidade simples ou em serviço em que se encontravam”.
Em face desta norma, entendeu o Provedor de Justiça suscitar o vício resultante de a exigência, nela contida, de ser requerida a reintegração no serviço diplomático, pressupor a manutenção em vigor do regime jurídico constante do artigo 37º do aludido Decreto-Lei n.º 47.331, ao abrigo do qual podiam ser colocados na disponibilidade os funcionários do serviço diplomático, para além do momento em que o mesmo foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral por força da Resolução do Conselho da Revolução n.º 161/82, de 2 de setembro, dessa forma se violando o princípio da eficácia ex tunc da declaração abstracta sucessiva de inconstitucionalidade, hoje constante do artigo 282º, n.º 1, da CR.
No Acórdão referido consagrou-se o entendimento segundo o qual não é lícito ao legislador paralisar a eficácia ex tunc de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, ou, por outras palavras, definir especificamente de modo mais restrito, em relação ao previsto na Constituição, os efeitos de declaração de inconstitucionalidade de determinada norma. Mas, ao mesmo tempo, não se excluiu, em geral, “a possibilidade de qualquer intervenção legislativa na regulamentação ou modulação dos efeitos produzidos por uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral” e, em especial, a “legitimidade de intervenções legislativas destinadas a convalidar retroactivamente uma disciplina normativa julgada inconstitucional por simples vício de incompetência ou de forma”.
Nesta sequência, o Tribunal Constitucional entendeu que a circunstância de a norma do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/83 condicionar a reintegração dos funcionários a um requerimento do interessado não afectava o seu direito à reintegração, em que se traduziam os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 47.331 operada pela Resolução do Conselho da Revolução n.º 161/82.
Para além de se afirmar que o disposto no artigo 2º do Decreto-Lei n.º 78/83 não é contraditório dos efeitos que cumpria retirar da Resolução do Conselho da Revolução n.º 161/82, afirmou-se no Acórdão n.º 142/85 que a norma do referido artigo 2º, “além de vir regulamentar a concretização de tais efeitos, veio justamente viabilizá-la (em especial ao determinar a criação dos lugares necessários à reintegração dos funcionários, no caso de não bastarem para tanto as vagas existentes). De facto, dada a rigidez legal do quadro do funcionalismo, por um lado, e o específico regime de colocação de funcionários na carreira diplomática, por outro, aquela reintegração depararia seguramente, a não haver sido editado o preceito em apreço, com as maiores dificuldades: é mesmo duvidoso que fosse possível efectivá-la unicamente pelo recurso aos princípios, e nomeadamente à teoria dos «actos consequentes» - isto, dando já de barato a enorme perturbação que um tal caminho por certo acarretaria, em particular no tocante à situação de outros funcionários. Importava aqui, na verdade, uma intervenção do legislador, como aquela que se traduziu na disposição em análise: o caso, em suma, era daqueles em que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma requeria, para sua execução, uma intervenção desse tipo”.
5.2 Na parte final da passagem do Acórdão n.º 142/85 que acaba de ser reproduzida surge já referido o segundo grupo de casos cuja abordagem foi atrás proposta. Trata-se daquelas situações em que os efeitos da decisão do Tribunal não apenas convivem com uma intervenção do legislador, mas antes a pressupõem.
Esta necessidade de intervenção foi reconhecida, por exemplo, pelo Acórdão n.º 154/86 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 7, tomo I, pp. 185 e ss.). Este Acórdão declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 42/84, de 3 de fevereiro, na parte em que determinou a integração nas empresas públicas ou nacionalizadas dos funcionários e agentes do quadro geral de adidos juntos das quais se encontravam requisitados sem o seu assentimento. Tal como se refere no Acórdão, a declaração de inconstitucionalidade da norma em causa determina a reposição, com efeitos retroactivos, da situação existente à data da integração dos adidos nas empresas públicas em que se encontravam requisitados. No Acórdão colocava-se a questão de se poder argumentar não ser justo fazer regressar à condição de funcionário públicos aqueles adidos que efectivamente não o desejam e que preferem a integração nas empresas públicas em que se encontravam requisitados. A esta questão respondia-se com o argumento de que tais adidos poderiam recorrer à faculdade que o Decreto-Lei n.º 175/78, de 13 de julho, lhes proporcionava, ou seja, a de se fazerem integrar, por sua iniciativa, nas empresas públicas em que se encontrassem requisitados.
Ora, no Acórdão em causa discutia-se ainda se este diploma não teria sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 42/84, concluindo-se que o mesmo seria repristinado pela declaração de inconstitucionalidade contida no Acórdão. Ao mesmo tempo, no entanto, afirmava-se: “Em todo o caso, se porventura a declaração de inconstitucionalidade viesse a implicar a necessidade de qualquer providência normativa, incumbirá naturalmente ao legislador (que não ao Tribunal) adoptá-la”.
Esta decisão confirma, pois, a ideia segundo a qual algumas decisões do Tribunal postulam a intervenção do legislador por forma a que delas possam ser retiradas todas as consequências. O lado reverso do reconhecimento da necessidade desta intervenção consiste, como é bom de ver, na exclusão das chamadas “decisões apelativas” ou de “delegação”, em que o Tribunal emite ele próprio normas destinadas a viabilizar a sua declaração de inconstitucionalidade [15].
Podem, aliás, enunciar-se alguns exemplos em que esta intervenção do legislador foi efectivamente levada a cabo.
O Acórdão n.º 39/84 do Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de junho, na parte em que revogou os artigos 18º a 61º, 64º e 65º da Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, que criou o Serviço Nacional de Saúde. Esta decisão do Tribunal determinou, nos termos previstos no artigo 282º da CR, a repristinação das referidas normas da Lei n.º 56/79, designadamente a norma do artigo 65º, n.º 1, que determinava o seguinte: “O Governo elaborará, no prazo de seis meses a contar da publicação da presente lei, os decretos-leis necessários à sua execução”.
Deste modo, o efeito repristinatório da decisão do Tribunal vertida no mencionado Acórdão n.º 39/84 impunha a intervenção do legislador tendo em vista a viabilização da própria declaração de inconstitucionalidade. Aliás, alguns dos diplomas que levaram a cabo a regulamentação da Lei n.º 56/79 exprimem esta necessidade de intervenção, como acontece com os preâmbulos dos Decretos-Leis n.ºs 328/84, de 15 de outubro, e 78/85, de 26 de março.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 134/97, de 31 de maio, dá-se também conta da necessidade de intervenção do legislador para viabilizar uma decisão do Tribunal. Com efeito, pode aí ler-se o seguinte:
“O Acórdão n.º 563/96 [in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33, pp. 47 e ss.] do Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea a) do n.º 7 da Portaria n.º 162/76, de 24 de março, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Tal norma, que assim foi expurgada do ordenamento jurídico, determinava que os deficientes das Forças Armadas nas situações de reforma extraordinária ou de beneficiários de pensão de invalidez que já teriam podido usufruir do direito de opção nos termos da legislação em vigor anteriormente ao Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro, não era reconhecido o direito de poderem optar pelo ingresso no serviço activo.
Nos termos do n.º 2 do artigo 282º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos desde a data de entrada em vigor da norma violada, no caso, 25 de abril de 1976, cabendo naturalmente à Administração proceder à reconstrução da situação jurídica decorrente da aplicação da norma declarada ofensiva da lei fundamental. No caso presente, porém, a mera aplicação da regulamentação legal dos militares abrangidos, mesmo após a eliminação da norma inconstitucional, mostra-se inapta à obtenção dos efeitos que a doutrina do acórdão propugna como concordante com o princípio da igualdade, por inexistirem normas que regulem a revisão da situação hoje abrangida pelos militares interessados.
Cumpre ao Governo retirar as devidas ilações da declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional e promover a promulgação dos instrumentos jurídicos adequados e idóneos à eliminação da desigualdade constitucionalmente intolerada. E embora tais instrumentos tenham de assumir a forma de decreto-lei, uma vez que visam alterar o status legislativo vigente na matéria, a intervenção do poder legislativo em execução de um acórdão do Tribunal Constitucional não é constitucionalmente desproporcionada nem desadequada, antes constitui um corolário do respeito pelos princípio da subordinação do Estado à Constituição e à legalidade democrática.”5.3 Importa, por último, abordar aqueles casos em que a decisão do Tribunal Constitucional se reveste de um verdadeiro carácter normativo. Conforme já atrás foi referido, a CR e a LTC não prevêem a possibilidade de o Tribunal Constitucional se substituir ao legislador ou proceder à integração de lacunas decorrentes de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
A verdade, porém, é que em certos casos, não muito frequentes, o Tribunal tem proferido decisões de carácter normativo, que integram lacunas de regulamentação (decisões integrativas, acumulativas ou aditivas), em fiscalização abstracta sucessiva:
– no Acórdão n.º 103/87 (in Acórdãos, 9º vol., pp. 83 e ss.), foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma que privava os agentes militarizados da Polícia de Segurança Pública de apresentarem queixas ao Provedor de Justiça, por acções ou omissões dos poderes públicos responsáveis por essa Polícia, quando essas queixas não tivessem por objecto a violação dos seus direitos, liberdades e garantias ou prejuízo que os afectasse. Daí resultou um alargamento normativo da possibilidade de apresentação de queixas pelos agentes da PSP.
– no Acórdão n.º 12/88 (in Acórdãos, 11º vol., pp. 135 e ss.), o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, em processo de generalização ao abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 3, da CR, da norma que determinava que certas pensões por acidente de trabalho fossem actualizadas de harmonia com certas disposições legais, conforme tivessem sido fixadas antes ou depois de certa data, abrangendo essa declaração a disposição menos favorável aplicável aos beneficiários antes da data limite. Nas prática, tal decisão conduziu ao aumento de certas pensões.
– no Acórdão n.º 359/91 (in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124, p. 294), ao julgar inconstitucional o entendimento dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110º do Código Civil (perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de fixação de jurisprudência), segundo o qual o direito à transferência ao arrendamento da casa de habitação, aí previsto, não era aplicável no caso de uniões de facto, mesmo quando destas houvesse filhos menores, o Tribunal acabou por alargar um regime legal a situações não previstas na respectiva lei.
– no Acórdão n.º 143/95 (in Acórdãos, 6º vol., pp. 153 e ss.) foi requerido ao Tribunal que declarasse a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do Estatuto da Ordem dos Advogados que previa a incompatibilidade entre o exercício da profissão de advogado e a actividade de funcionário ou agente de qualquer serviço público, com excepção do exercício de funções docentes de disciplinas jurídicas. O Tribunal acabaria por declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da mesma norma na parte em que considera incompatível com o exercício da advocacia a função docente de disciplinas que não sejam de Direito, por violação do princípio da igualdade. Apesar de a decisão assumir a forma de uma declaração de inconstitucionalidade parcial, a verdade é que o seu efeito prático foi o de alargar a excepção contida na parte final da norma, que passou a abranger todos os docentes, leccionem ou não disciplinas de Direito.
Da análise da jurisprudência sumariada resulta que a utilização de decisões de carácter aditivo pelo Tribunal se tem restringido àqueles casos em que as normas submetidas à sua apreciação comportam cláusulas de excepção. É precisamente na eliminação total ou parcial destas cláusulas de excepção, e consequente expansão do regime-regra, que assenta o conteúdo integrativo ou aditivo das decisões do Tribunal. As decisões com o conteúdo que acaba de ser sintetizado têm ainda em comum, de um ponto de vista substancial, a circunstância de todas elas concretizarem o princípio da igualdade.
Nestes casos, pode dizer-se que as decisões do Tribunal são verdadeiramente auto-exequíveis, na perspectiva da posição do legislador subsequente à declaração de inconstitucionalidade, na medida em que não carecem da intervenção deste último como condição da sua viabilização. E, como tal, a Administração encontra-se vinculada pela doutrina firmada nestas decisões, não carecendo, para a sua aplicação, de qualquer interpositio legislatoris.