Conferências Tripartidas Portugal, Espanha e Itália
Os Tribunais Constitucionais perante a nova Constituição
Europeia (incluindo a Carta dos Direitos Fundamentais)
e a sua futura articulação
com o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
(e com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem)
A revisão dos Tratados da União Europeia
e das Comunidades Europeias e a posição futura dos Tribunais Constitucionais
dos Estados-Membros
Contributo para uma discussão
Rui Manuel Moura Ramos
[Lisboa, 27 e 28 de novembro de 2003]
1. A revisão ora em curso dos Tratados da União e das Comunidades Europeias pode vir a apresentar um carácter singularmente inovatório, a avaliar pelo que é lícito prefigurar dos termos em que esta questão actualmente se apresenta. E dentre as alterações que se perfilam algumas há que são susceptíveis de se repercutir sobre o posicionamento actual dos Tribunais Constitucionais dos Estados-Membros. É a essas modificações que não deixaremos de fazer referência (II), para só depois podermos indagar se e em que medida afectam o estatuto e perfil daquelas entidades (III). Para que essa análise possa porém ser compreendida, cremos que importa começar por, num momento prévio, analisar, o estado da arte, ou seja a posição actual dos Tribunais Constitucionais dos Estados-Membros, em face do direito e da construção comunitária (I).
I
2. Uma primeira advertência se impõe no entanto fazer, antes de abordar esta questão. Ao procurar perspectivar a posição actual dos Tribunais Constitucionais dos Estados-Membros face ao direito e à construção comunitária, há que não esquecer que se trata de um problema que é distintamente equacionado quer nos coloquemos da perspectiva da ordem jurídica comunitária quer das dos Estados-Membros, devendo acrescentar-se que a diversidade de posições é igualmente um facto – ainda que, aqui, em menor grau - quando consideramos cada uma destas em particular. Por outro lado, a vastidão dos elementos a considerar neste caso e a circunstância de serem de todos nós conhecidos impedem ou tornam desnecessário que lhes procuremos fazer uma referência detalhada que além do mais estaria para além do propósito (instrumental) com que convocamos o tema nesta intervenção, e que é o que acima ficou enunciado [1].
Seremos pois tanto quanto possível breves a este propósito. Limitando-nos porém a acrescentar que procuraremos considerar o ponto numa perspectiva que supere a divisão de enfoques que pode ocorrer quando nos colocamos numa sede estadual ou comunitária, intentando surpreender um princípio de unidade de uma ordem jurídica global na qual os ordenamentos estadual e comunitário interagem e se relacionam. Não deixará contudo de se compreender que, ainda que tendo presente tal desiderato, sublinhemos com alguma intensidade os traços que individualizam o olhar português sobre esta questão tal qual ela resulta nomeadamente da nossa jurisprudência constitucional.
3. É sabido que o primeiro problema colocado pelo surgimento das organizações comunitárias e do seu direito foi o da construção do seu relacionamento com as ordens nacionais anteriores, questão que estas encararam inicialmente de forma semelhante ao que haviam feito em circunstâncias que consideraram próximas, isto é, quando se tratava de relacionar a ordem jurídica respectiva com outras ordens jurídicas [2]. É assim que vamos encontrar nas Constituições nacionais dos Estados-Membros, com diferenças várias embora, disposições que visam garantir a recepção do direito comunitário na ordem interna e o seu lugar na hierarquia das fontes de direito conhecidas neste ordenamento [3] e que viriam a ser objecto de alterações ou acrescentamentos diversos, ao longo do processo de evolução da integração comunitária [4].
Simplesmente, este movimento seria em breve e desde cedo acompanhado de um outro, da parte do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que, num conjunto importante de decisões e prevalecendo-se da
necessidade de garantir o efeito útil e a interpretação uniforme do ordenamento comunitário, fixaria, por sua parte, utilizando nomeadamente para esse fim o mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 177º (hoje 234º) do Tratado CEE (actualmente CE) [5], o estatuto dos actos comunitários nas ordens jurídicas dos Estados-Membros e os termos da sua aplicação pelo juiz nacional [6], afirmando na circunstância os princípios do efeito directo e do primado (ou prevalência na aplicação) das regras comunitárias.
Destes desenvolvimentos resulta hoje pacífica a recepção e a eficácia nas ordens internas dos Estados-Membros do direito comunitário assim como a prevalência deste (quer na modalidade de direito originário quer na de direito derivado) sobre o direito interno ordinário, ainda que posterior, permanecendo porém em aberto, na maior parte dos sistemas jurídicos nacionais, e na medida em que sobre ela se não pronunciaram até ao presente os órgãos supremos de controlo de constitucionalidade das leis (os Tribunais Constitucionais, nos Estados em que uma tal competência é exercida num sistema concentrado ou misto), a questão do relacionamento entre o direito comunitário e o direito constitucional nacional [7] [8].
4. Mas o relacionamento entre o sistema comunitário e os sistemas nacionais dos Estados-Membros não se esgota nesta questão normativa, relativa à natureza e sentido das relações entre as regras de origem comunitária e as regras de origem nacional. Ele prolonga-se, pelo contrário numa segunda questão, esta de competência, que remete para a articulação dos mecanismos de controlo jurisdicional interno e de controlo jurisdicional comunitário, isto é, para a repartição de competências entre as jurisdições nacionais e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias [9]. Tal repartição de competência suscita-se a propósito do controlo da aplicação do direito comunitário, uma vez que este se destina a ser aplicado no território dos Estados-Membros pelas autoridades nacionais destes mesmos Estados, e que os tribunais estaduais, maxime os Tribunais Constitucionais, se encontram a este respeito investidos de competências (gerais) de controlo.
É sabido que se repartem as posições a este propósito. O Tribunal de Justiça afirma desde há muito [10] a sua competência exclusiva para determinar a invalidade das regras de direito comunitário por contrariedade com os princípios do Tratado e com as demais regras (maxime as relativas à protecção dos direitos fundamentais) que vinculam o legislador comunitário – o que coloca os tribunais dos Estados-Membros na situação de deverem recorrer ao mecanismo do reenvio prejudicial como única forma de poderem provocar a declaração de nulidade ou a desaplicação das regras comunitárias.
Se as instâncias jurisdicionais nacionais têm reconhecido sem dificuldade aquela primeira premissa, o certo é que nem todas subscrevem o corolário que dela apontámos. Assim, por exemplo o Bundesverfassungsgericht alemão não hesitou em fazer valer a sua competência para controlar as regras comunitárias à luz dos critérios de protecção dos direitos fundamentais enunciados na lei fundamental alemã [11]. É certo que esta posição seria atenuada posteriormente, na sequência da evolução da jurisprudência comunitária em matéria de protecção dos direitos fundamentais [12] e que aquele tribunal viria mais tarde a reconhecer [13] que a protecção dos direitos fundamentais estava em geral assegurada no plano comunitário de forma efectiva e adequada, pelo que, enquanto tal situação se mantivesse, “não exerceria a sua competência de decisão quanto à validade do direito comunitário derivado”. Não se trata porém de uma declaração de incompetência, ou sequer de uma renúncia à competência de exame aprofundado da legislação comunitária, uma vez que posteriormente, na decisão Brunner, de 12 de outubro de 1993 [14] , o Tribunal recordaria a sua competência (ainda que não exercida) para controlar, à face dos direitos fundamentais reconhecidos pela Grundgesetz alemã, quaisquer normas, quer do poder público alemão quer de “uma autoridade pública específica de uma organização supranacional distinta do poder dos Estados-Membros”. E nessa mesma decisão avançaria que a competência interpretativa do Tribunal de Justiça em relação aos Tratados Comunitários não inclui a sua modificação, que apenas poderia ter lugar por decisão unânime dos Estados-Membros, pelo que, a ocorrer por acto de uma instituição comunitária, se não imporia à Alemanha - e nessa verificação se exerceria a competência de controlo do Tribunal Constitucional alemão, que se estenderia igualmente às decisões do Tribunal de Justiça [15]. Só que, e regressando agora especificamente à questão da protecção dos direitos fundamentais, a intervenção do Bundesverfassungsgericht pressuporia que se pudesse demonstrar que a evolução do direito e da jurisprudência comunitária tivesse reduzido a tutela destes direitos a um standard inferior ao mínimo indispensável – é a ausência de demonstração deste pressuposto que conduziu aquele tribunal a, na falta de prova de que a protecção necessária dos direitos fundamentais se não encontra garantida de maneira geral no quadro comunitário, considerar inadmissíveis os recursos constitucionais contra actos comunitários sob pretexto de que estes violariam direitos constitucionais garantidos pela Constituição alemã [16].
Por sua parte, sem os avanços e recuos do seu homólogo alemão, também o Tribunal Constitucional português cuidou de precisar o seu entendimento relativamente ao controlo do direito comunitário derivado. A este propósito considerar-se-ia que a incompatibilidade do direito interno com o direito comunitário não é questão que se integre na competência do Tribunal Constitucional [17], não se tendo porém ainda esta instância pronunciado sobre se idêntico raciocínio deve ser seguido a respeito de uma eventual incompatibilidade de regras comunitárias com os preceitos constitucionais. Sendo certo que, a entender-se que a Constituição nacional se mantém como padrão de juridicidade último no espaço nacional – e portanto também em relação às regras do direito comunitário -, mesmo que em termos de apenas estar em causa a salvaguarda de um seu “núcleo essencial” [18] sempre estaria em aberto um potencial conflito com a actual jurisprudência do Tribunal de Justiça.
5. As considerações anteriores permitem-nos concluir que, no presente estado de coisas, em que o relacionamento entre as duas ordens jurídicas e os dois sistemas jurisdicionais (interno e comunitário) não se encontra regulado por comandos jurídicos precisos, a coexistência entre eles deve ser assegurada (como o tem sido até ao presente) através de um diálogo entre os dois intérpretes máximos da respectiva hierarquia judiciária [19]. Diálogo que deverá ter por objectivo acautelar a unidade do sistema comunitário que os Estados-Membros por todas as suas instâncias se comprometeram a fazer respeitar e que se pode exercitar designadamente através do mecanismo do reenvio prejudicial, a que alguns Tribunais Constitucionais europeus já recorreram e cuja utilização foi expressamente admitida pelo Tribunal Constitucional Português [20].
Vejamos agora quais as modificações que o processo de revisão dos Tratados presentemente em curso poderá acarretar à actual situação.
II
6. Importa sublinhar desde logo que, na ausência de outras informações relativas ao desenrolar da conferência intergovernamental, nos limitaremos a analisar alguns aspectos que decorrem da aprovação, pela Convenção Europeia, do Projecto de Tratado que institui uma Constituição para a Europa. Sem que tal envolva um qualquer juízo sobre a viabilidade de as opções aí contidas virem a ser assumidas pela Conferência Intergovernamental tomá-las-emos como simples base de reflexão atento o facto de não terem sido objecto de qualquer repúdio por parte dos Estados-Membros e de poderem de facto vir a obter a aprovação do legislador de revisão.
7. A primeira alteração a mencionar é a que respeita precisamente à proposta de elaboração de uma Constituição. Não se tratando de nada de novo no plano substancial, pois que se não pode duvidar que as organizações comunitárias se encontram há muito dotadas de uma constituição em sentido material [21], importa contudo sublinhar que a formalização da estruturação política da entidade europeia que por esta forma se obtém envolve um salto qualitativo que resulta desde logo de uma tal opção passar a ser assumida pelos órgãos representativos dos Estados-Membros [22]. Na verdade, a Constituição é uma suprema lex e a elevação dos tratados constitucionais e este patamar não deixará de ter consequências que ultrapassarão decerto o plano (não negligenciável, de resto) do simbólico.
Uma dessas consequências produzir-se-á muito provavelmente em sede de reforço da unidade do sistema jurídico da União. O escopo integrativo que é associado à existência de uma Constituição poderá ser valorizado no sentido de reforçar uma construção da União em termos mais coerentes e vertebrados, em que a resposta às questões que actualmente se colocam quanto ao relacionamento dos sistemas jurídicos existentes no seu seio tende a ser vista como decorrendo mais da interpretação e aplicação das regras da lei fundamental que duma cooperação ou diálogo entre instâncias diversas.
Será assim difícil que a maior coesão do todo deixe de implicar um reforço dos poderes dos órgãos centrais.
8. Outra nota que poderá ser interpretada em idêntico sentido é a que resulta da consagração, no artigo 10º, número 1, do Projecto, do princípio do primado do direito da União sobre os direitos dos Estados-Membros, e dos termos em que ela é feita. Na verdade, refere esta disposição que “a Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados-Membros”.
É certo que tal princípio apenas se refere à Constituição e ao direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas, o que reenvia de imediato para o princípio da atribuição, a que o artigo 9º continue a reconhecer uma função fundamental na delimitação das competências da União. Mas uma vez que o respeito de tal princípio é assegurado (de forma exclusiva, segundo a jurisprudência Foto-frost) pelo Tribunal de Justiça através do controlo da validade dos actos comunitários, dificilmente se perspectiva outra forma de conter a actuação do legislador comunitário que não passe pela construção elaborada pelo Bundesverfassungsgericht no seu acórdão Maastricht [23].
Depois saliente-se que o primado reconhecido ao direito da União (a todo o direito da União, note-se) parece ser afirmado em relação a todo o direito dos Estados-Membros, aí incluído o seu direito constitucional, uma vez que não se faz qualquer distinção a este propósito e tem sido este o sentido da posição repetidamente afirmada pelo Tribunal de Justiça desde o acórdão Costa/Enel [24]. O que parece destinado a resolver a questão normativa posta pelo relacionamento entre o direito comunitário e os direitos nacionais a que atrás aludimos [25]. É claro que pode argumentar-se que o princípio deverá ser lido em consonância com os artigos 5º, número 1, e 7º, número 3, do Projecto, e que o primeiro reafirma que “A União respeita a identidade nacional dos seus Estados-Membros, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles”, procurando assim excepcionar-se o direito constitucional nacional (ou alguns dos seus princípios) do âmbito do princípio do primado tal como este é afirmado no artigo 10º, número 1. Mas duvida-se que tal seja compatível com a intencionalidade deste preceito, que se limita a consagrar uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, ou que este órgão jurisdicional se sinta levado a atenuar ou flexibilizar o que a este propósito vem defendendo.
Nestes termos, dificilmente o artigo 10º, número 1, deixará de ser visto como a adesão das instâncias que em cada Estado-Membro exercem o treaty-making power à tese que o Tribunal de Justiça sempre defendeu a propósito do relacionamento entre a ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas nacionais dos Estados-Membros [26]. Com o que isso implica de redução de margem de manobra das instâncias nacionais de controlo da constitucionalidade.
9. Ainda no mesmo sentido, poderemos referir a nova disposição contida no artigo 28º, número 2, do Projecto e onde se estatui que “os Estados-Membros estabelecem as vias de recurso necessárias para assegurar uma protecção jurisdicional efectiva no domínio do direito da União”.
É algo ambíguo o estatuto do presente texto. Pode entender-se que, partindo do reconhecimento das limitações de que enferma presentemente, no domínio do direito comunitário, o princípio da protecção jurisdicional efectiva [27] [28], o “legislador” do Projecto de Tratado tenha querido apenas traçar um programa cuja execução deva ser assegurada no futuro. Tal interpretação poderá explicar a referência aos Estados-Membros que assim assegurariam o compromisso de futuramente, em novo processo de revisão, aprofundar e reforçar o mecanismo de protecção judicial efectiva.
Mas pode igualmente estender-se, diversamente, que, após investir, no número 1, o Tribunal de Justiça na missão de “garantir o respeito pela lei na interpretação a aplicação da Constituição”, aquele legislador tenha querido já particularizar que tal implica a existência das “vias de recurso necessárias para assegurar uma protecção jurisdicional efectiva no domínio do direito da União”. Como quer que seja, o que cremos poder desde já sublinhar é que esta referência poderá ser interpretada no sentido de reforçar a suficiência do sistema jurisdicional da União, tornando o Tribunal de Justiça menos sensível à necessidade de admitir que a sua acção venha a ser complementada pelos sistemas estaduais dos Estados-Membros.
10. Mas a nota fundamental a sublinhar no Projecto, para o fim que ora nos interessa, parece-nos ser a disposição contida no seu artigo 7º, número 1, onde se refere que “A União reconhece os direitos, liberdades e princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais, que constitui a Parte II da presente Constituição”. Tal preceito integra assim expressamente no corpus iuris comunitário a Carta dos Direitos Fundamentais da União que havia sido solenemente proclamada pelas três Instituições em dezembro de 2000, em Nice [29], a fim de, ao conferir-lhes dessa forma maior visibilidade, reforçar a protecção dos direitos fundamentais à luz da evolução da sociedade, do progresso social e da evolução científica e tecnológica [30].
A Carta prevê que os direitos nela consagrados [31] vinculam, nos termos do seu artigo II – 51º, não só as instituições, órgãos e agências da União, mas também os Estados-Membros, ainda que apenas quando apliquem o direito da União. É certo que, ao menos aparentemente, nem todos esses direitos se poderão dizer self-executing, uma vez que quando eles sejam regidos “por disposições constantes de outras Partes da Constituição [32] são exercidos de acordo com as condições e limites nelas definidos” (número 2 do artigo II – 52º) e quando as disposições da Carta contenham tão só princípios estes “poderão ser implementados através de actos legislativos e executivos aprovados pelas instituições e órgãos da União e por actos adoptados pelos Estados-Membros, em aplicação do direito da União, no exercício das respectivas competências”, adiantando-se que “só serão invocados perante o juiz tendo em vista a interpretação destes actos e o controlo da sua legalidade” (número 5 do mesmo artigo).
Ao estabelecer a distinção entre direitos e princípios (que se encontrava ausente do texto tal como proclamado em Nice) o legislador terá procurado reduzir o grau de vinculação dos direitos cuja obrigatoriedade agora consagrou. Mas o certo é que, para além deste limite decorrente, quanto aos princípios, dos termos dos instrumentos (da União ou estaduais) que procedam à respectiva consagração e, quanto aos direitos regidos por outras Partes do Projecto, das condições e limites nelas definidos [33], os direitos ora recenseados na Carta se impõem aos Estados-Membros “quando apliquem o direito de União” [34], o que implica que tal ocorra em domínios progressivamente mais alargados, dado o significativo aumento de competências desta.
O que significa que, no âmbito assim delineado, o controlo, à luz dos preceitos que consagram os direitos fundamentais, da actividade dos Estados passará a ser da competência do Tribunal de Justiça, nos termos previstos pelas diversas vias de recurso previstas no Projecto [35], uma vez que a actividade do sistema jurisdicional comunitário não é excluída no âmbito da Parte II deste [36].
Acrescente-se que esta competência do Tribunal de Justiça em matéria de protecção dos direitos fundamentais não sofre limites pelo facto da existência de sistemas de protecção estaduais (ou internacionais, como é o caso do da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) que persigam idêntico objectivo. Antes o sistema comunitário de protecção dos direitos fundamentais se vê a si próprio como um sistema a se, com o único limite (consagrado no artigo II – 53º) de nenhuma disposição da Carta poder ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelos demais sistemas de protecção de que já beneficiavam anteriormente os seus titulares, em particular os previstos nas Constituições dos Estados-Membros.
Pelo que haverá que reconhecer que por esta forma se potencia uma maior actuação do sistema comunitário de protecção dos direitos fundamentais e, com isso, dos órgãos jurisdicionais que a têm a seu cargo.
III
10. Se procurarmos agora retirar do conjunto de alterações propostas ao direito constitucional da União Europeia as linhas de força essenciais que poderão ter implicações na posição futura dos Tribunais Constitucionais dos Estados-Membros poderemos dizer que o que a este propósito fundamentalmente avulta é o reforço da posição do direito comunitário e das suas instâncias jurisdicionais próprias no seio da ordem jurídica global formada pelo direito comunitário e pelos direitos dos Estados-Membros. Tal reforço decorre, como vimos, por um lado, da própria formalização da constituição material da União e da afirmação no novo texto do primado do direito da União sobre o direito dos Estados-Membros, e, por outro lado, do alargamento da competência do sistema jurisdicional comunitário, em particular no que se refere à questão da protecção dos direitos fundamentais.
Pode pretender-se, em contrário, que o inventário a que procedemos no ponto anterior não permite as conclusões a que acabamos de chegar, e que nada de novo há a sublinhar quer nos dados que se referem à questão material quer nos que se reportam à questão da competência, uma vez que não só eles se limitam a consagrar soluções afinal já bem assentes como as próprias disposições da Carta são afinal bem claras quanto ao seu carácter não inovatório [37]. E que mesmo nos preceitos desta se notam algumas limitações se confrontarmos a sua actual versão com a inicial, proclamada em Nice [38].
No entanto, não cremos que àquela primeira circunstância deva ser dado demasiado relevo. O certo é que a consagração “constitucional” dos princípios afirmados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça dificilmente deixará de ser vista como uma legitimação subsequente desta, o que poderá ter consequências no teor do diálogo a desenvolver futuramente por este com os Tribunais Constitucionais nacionais. E por outro lado é o carácter de tribunal constitucional do Tribunal de Justiça [39], no seio do ordenamento comunitário, que assim surge reforçado com a inserção na lei fundamental comunitária de um catálogo de direitos fundamentais. O que poderá levar, naturalmente, a uma mais intensa actuação da jurisdição comunitária no domínio da protecção dos direitos fundamentais.
O alcance concreto desta actividade não se afigura no entanto que possa vir a desequilibrar a partilha de competências neste momento existente entre o Tribunal de Justiça e os Tribunais Constitucionais nacionais. Por outro lado, o acesso ao pretório na jurisdição comunitária continua significativamente limitado, mesmo se atentarmos no alargamento que acima [40] mencionámos e que é proposto no Projecto ora em discussão. Além disso, este carácter limitado é também consequência natural da situação presente da jurisdição comunitária. Na verdade, nos termos actuais dificilmente ela poderá desempenhar um papel mais relevante do que até agora tem tido na protecção do direitos fundamentais, mau grado a reforma recentemente encetada pelo Tratado de Nice [41].
11. Afigura-se-nos assim que se o Projecto permite a consolidação do papel até hoje desempenhado pelo Tribunal de Justiça ele não autoriza a crer, no momento actual, que este papel possa ser levado demasiado longe. Ademais, outros factores também dele constantes podem contrariar uma eventual tendência neste sentido.
Estamos a pensar na manifestação de vontade formulada no número 2 do artigo 7 no sentido da adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O carácter útil de uma tal adesão, na actualidade, está apenas na sujeição do sistema comunitário como um todo (nele incluído o Tribunal de Justiça) a um controlo externo, na circunstância o levado a cabo pelo Tribunal de Estrasburgo. A concretizar-se este passo, e independentemente dos termos em que ela venha a ter lugar, a “centralidade” e a “solidão” do Tribunal de Justiça não deixariam de ser matizadas e um diálogo mais acentuado com o Tribunal de Estrasburgo, aliás hoje já presente na jurisprudência comunitária [42] e requerido em maior grau pelo número 3 do artigo II-52º do Projecto [43], forçosamente se imporá. Ora idêntica tendência não poderá deixar de se manifestar no relacionamento entre o Tribunal de Justiça e os sistemas jurisdicionais dos Estados-Membros, em particular os Tribunais Constitucionais destes últimos, em matéria de protecção dos direitos fundamentais atentas quer as exigências do princípio da subsidariedade [44] quer a própria impossibilidade de a jurisdição comunitária ir muito mais longe neste domínio. Diálogo este que não deixará de marcar o futuro próximo [45] e em que os Tribunais Constitucionais dos Estados-Membros se não deverão em nosso entender remeter a um papel passivo, utilizando antes a virtualidades oferecidas pelo sistema, em particular a do reenvio prejudicial [46].
Não deixaremos de sublinhar, a concluir,
que se nos afigura que os termos de um tal diálogo não deixarão
de ser influenciados pelo estatuto próprio de cada jurisdição
constitucional. E, a este propósito, que os termos em que o acesso respectivo
é aberto aos particulares como a própria prática (ou a
disponibilidade já manifestada para o efeito) do reenvio prejudicial
podem ter a esse respeito um papel significativo [47].