Relatórios Portugueses das Conferências dos Tribunais Constitucionais Europeus
XIVª Conferência dos Tribunais Constitucionais Europeus
“A Omissão Legislativa na Jurisprudência Constitucional”
Assessoras do Gabinete do Presidente, Joana Costa, Benedita Urbano, Assessor do Gabinete do Vice-Presidente João Raposo e Assessores do Gabinete dos Juízes, Estrela Chaby, João Rodrigues e Francisco Xavier - todos do Tribunal Constitucional, sob a orientação do Presidente do Tribunal, Conselheiro Rui Moura Ramos
[Vilnius-Lituania, junho de 2008]
A
Omissão Legislativa na Jurisprudência Constitucional
[1]
1. Problemática
dos vazios jurídicos na doutrina jurídica (legal gaps)
1.1. Conceito de
vazio jurídico (legal
gap)
Em termos genéricos,
poder-se-á sustentar que existe um vazio jurídico naqueles casos em que se
constata que o “tecido normativo não contém a previsão de um caso”
[2]
.
Uma dita ausência de previsão de um caso (caso omisso), materializada num
silêncio legislativo (na ausência da interpositio legislatoris), pode resultar de variados
factores, como sejam, a incompletude do sistema jurídico, a abertura ou falta
de densidade de certas normas ou, pura e simplesmente, a desnecessidade de
regulamentação. Como afirma Baptista Machado, “nenhum legislador é capaz de
prever todas as relações da vida social merecedoras de tutela jurídica, por
mais diligente e precavido que seja. Há mesmo situações que são imprevisíveis
no momento da elaboração da lei, ao lado das que, embora previsíveis, escapam à
previsão do legislador. Além de que este, em relação a certas questões
previstas, pode não querer decidir-se a regulá-las directamente, por não se
sentir habilitado a estabelecer para elas uma disciplina geral e abstracta
suficientemente definida”
[3]
.
Concretizando um
pouco, é possível descortinar diversos tipos de vazios jurídicos. Assim,
fazendo um apanhado das várias figuras mencionadas na doutrina nacional,
regista-se a referência a lacunas jurídicas, a omissões legislativas, a
situações extra-jurídicas ou espaços jurídicos livres e à abertura das normas.
No âmbito da teoria geral do direito, os vazios jurídicos que mais se destacam
são as lacunas jurídicas. No plano específico do Direito Constitucional, o
relevo é dado por igual às lacunas jurídicas e às omissões legislativas.
1.1.1. A lacuna jurídica
A maior parte da
doutrina portuguesa tem utilizado um conceito de lacuna jurídica tributário da
doutrina alemã, definindo-a como uma “incompleição do sistema normativo que
contraria o plano deste” ou, mais simplesmente, uma “incompletude contrária a
um plano” (planwidrige Unvollständigkeit)
[4]
-
[5]
.
Existem distintos
tipos de lacunas. De seguida, eles irão ser referidos, advertindo-se desde já
para a possibilidade de se verificar alguma sobreposição conceptual.
No plano mais
genérico da teoria geral do direito, são vários os autores que procuram
classificar os diversos tipos de lacunas.
Baptista Machado
começa por distinguir dois tipos de lacunas: as “lacunas da lei” e as “lacunas
do direito”.
As primeiras, também
designadas de “lacunas de regulamentação”, ocorrem naquelas situações em que se
observa uma ausência de regulamentação legal. Elas podem ser lacunas
“próprias”, “de colisão” ou “teleológicas”. As lacunas “próprias” (ou “ao nível
das normas” ou ainda “de primeiro nível”) surgem quando uma norma não pode ser
aplicada se não for acompanhada de uma outra determinação legal não contida na
lei (por exemplo, uma norma que fixa um prazo para a prática de um facto não
pode ser aplicada porque a lei não contém a forma de contagem desse prazo). As
“lacunas de colisão” verificam-se em consequência da contradição entre duas
normas legais que, não podendo aplicar-se simultaneamente, como que se anulam
uma à outra – daí, justamente, resultando uma lacuna. Por fim, quanto às
“lacunas teleológicas” (ou “de segundo nível”), não é já a aplicação de uma
norma que exige uma outra determinação legal não contida na lei, como no
primeiro caso, mas a aplicação da teleologia de uma norma ou de um complexo
normativo que leva à determinação da lacuna e à necessidade do seu
preenchimento (sendo pois este o campo de aplicação da analogia). As “lacunas
teleológicas” podem ser “patentes” (em que não há qualquer regra aplicável ao
caso) ou “latentes” ou “ocultas” (em que há uma regra geral aparentemente
aplicável ao caso, caso que todavia reclama um tratamento especial ou mesmo
excepcional).
No que se refere às
“lacunas do Direito”, elas resultam da ausência de enquadramento por parte do
direito no seu todo – incluídos aqui, pois, todos os princípios e valores
extra-legais. Estas lacunas só poderão preencher-se recorrendo a princípios e
valorações supra-legais (um “desenvolvimento do direito ultrapassando o quadro
da lei, ou ultra legem”)
[6]
.
Oliveira Ascensão,
por seu turno, refere as lacunas de “previsão” e as de “estatuição”.
Relativamente às primeiras, “falha a previsão de um caso que deve ser
juridicamente regulado”. Já no que se refere às segundas, “há previsão mas não
se estatuíram os efeitos jurídicos correspondentes”
[7]
.
O mesmo autor
menciona também as lacunas “ocultas” e as lacunas “técnicas”. As primeiras
verificam-se quando “há regras aparentemente genéricas, que parecem cobrir todo
um sector. Porém, através da interpretação restritiva, conclui-se que não foi
explicitada uma excepção ou restrição que deveria existir de harmonia com o próprio
sentido da lei”. São ainda consideradas lacunas ocultas aquelas situações em
que “a matéria é prevista, mas por interpretação ab-rogante se conclui pela
liquidação dos preceitos em contraste, ou do preceito para o qual se não
encontra um sentido”. Quanto às lacunas técnicas, elas ocorrem “quando a lei
impõe um fim, e falta o processo ou o órgão indispensáveis para a obtenção
desse fim”
[8]
.
Já Pinto Bronze
distingue vários tipos de lacunas a partir da utilização de diferentes
critérios. Temos, antes de mais, a dicotomia traduzida na existência de, por um
lado, as lacunas “normativas”, “de previsão”, ou “autênticas”, e, por outro
lado, as lacunas de “regulação”, “de estatuição”, ou “inautênticas”. As
primeiras registam-se “quando a mediação judicativa não é só por si bastante
para viabilizar a aplicação a um certo caso de uma dada norma jurídica,
exigindo-se para o efeito «uma nova disposição que se encontra a menos na lei»
e tornando-se assim necessária, pelo menos às vezes, «para colmatar essa falha
de política legislativa”, “uma nova decisão do legislador». As segundas, “que
não inviabilizam a estrita aplicação da lei” vão, contudo, afectá-la “(pois,
atento o respectivo plano, podem originar verdadeiras denegações de justiça), e
que se mostram possíveis de ser colmatadas pela instância de decisão, se esta
revelar, como deve, «a intenção […] e […] a teleologia da lei»”.
Temos depois a
distinção entre as “lacunas da lei” e as “lacunas do direito”. Quanto às
primeiras, o autor começa por advertir que se trata de um conceito genérico,
que engloba os tipos já discriminados. No que respeita ao seu conceito, são
lacunas que “ocorrem sempre que o “plano de regulação” ou a “teleologia
própria” de uma certa lei, discretamente considerada, no-la revelem incompleta
ou inadequada, impendendo especialmente sobre a jurisprudência judicial o dever
de as integrar”. Quanto às segundas, elas “traduzem as omissões censuráveis ao
legislador – que ele próprio será chamado, “em primeiro lugar”, a
colmatar”.
Centrando-nos agora
nas “lacunas de direito”, o mesmo autor declara que, de um ponto de vista
normativo, elas “podem ser “patentes” (quando do plano ou da teleologia da lei
decorre que ela deveria oferecer regulação “para um determinado número de
casos” e, todavia, isso não acontece) e “ocultas” (quando a lei disponibiliza a
mencionada regulação, só que esta se revela prático-normativamente inadequada,
pelo que deverá ser objecto de uma restrição, v. gr. sob forma de uma “redução
teleológica”)”. Já numa “perspectiva cronológica”, elas podem classificar-se em
“iniciais” e “subsequentes” “(consoante, e respectivamente, o legislador a quem
a omissão deve ser atribuída ou censurada, dela haja tido, ou não,
conhecimento), - na global pressuposição do deveniente sentido do direito vigente,
nomeadamente atentas as interpelantes exigências sintetizadas nos princípios
normativos e as questões juridicamente significativas inovadoramente
decorrentes do dinamismo da realidade histórico-social”
[9]
.
Passando para o plano
específico do Direito Constitucional, Gomes Canotilho fala em lacunas
constitucionais “autónomas” e “heterónomas”. As primeiras surgem “quando se
constata a ausência, no complexo jurídico-constitucional, de uma disciplina
jurídica, mas esta pode deduzir-se a partir do plano regulativo da constituição
e da teleologia da regulamentação constitucional”. As lacunas constitucionais
“heterónomas” “resultam do não cumprimento das ordens de legislar e das
imposições constitucionais concretamente estabelecidas na constituição”. Como
se verá, este último tipo de lacunas corresponde ao conceito de omissões
legislativas constitucionalmente relevantes (ver infra, ponto 1.2.2.). Retornando às lacunas
“autónomas”, elas consubstanciam autênticas lacunas “de regulamentação”,
subdividindo-se em dois distintos grupos. Pode haver lacunas ao nível das
próprias normas, “quando um determinado preceito constitucional é incompleto,
tornando-se necessária a sua complementação a fim de poder ser aplicado; pode,
igualmente, haver lacunas de regulamentação “quando não se trata da
incompletude da norma mas de uma determinada regulamentação em conjunto”
[10]
.
Ainda no plano
constitucional, Jorge Miranda define as lacunas por confronto com a figura das
omissões legislativas (com as quais não deverão ser confundidas), como
“situações constitucionalmente relevantes não previstas” [na própria Constituição]. O
autor dá conta da existência de lacunas “intencionais” e “não intencionais”,
“técnicas” e “teleológicas”, “originárias” e “supervenientes”, sem contudo
densificar estes conceitos
[11]
.
Bacelar Gouveia
define as lacunas jurídico-constitucionais como “a ausência de uma solução que
o Direito Constitucional requeira, dentro do seu específico âmbito regulativo”.
De forma genérica, o autor assinala o carácter compósito da noção de lacuna
jurídica, a qual é formada por dois elementos: o elemento objectivo, que
consiste numa “incompleição ou ausência de norma aplicável a uma dada
situação concreta e individual,
que não tem uma solução normativa directa”, e o elemento finalístico que consiste
numa “incompleição que contraria o plano do ramo do Direito em causa, pois que,
se tivesse previsto essa situação, não teria nela consentido, estipulando a
orientação em falta, evitando assim que isso pudesse suceder
[12]
.
1.1.2. A situação extrajurídica
[13]
ou os espaços livres de direito
Para Oliveira
Ascensão, a situação extrajurídica reporta-se àqueles casos que não estão
regulados pelo direito pelo simples facto de que não possuem relevância
jurídica específica; mais especificamente, porque não precisam de ser
juridicamente regulados
[14]
.
Na esteira de Oliveira Ascensão, Bacelar Gouveia define como situação
extrajurídica aquela “em que não se estabelece qualquer norma ou princípio, nem
tal se afigurando necessário, pois que se enfrenta um caso que não pertence ao
âmbito regulativo do Direito”. Aproximando-a do plano constitucional, e
extraindo o seu conceito do confronto com a figura da lacuna, este autor
defende que não existirá nenhuma lacuna jurídico-constitucional “se certa
hipótese não encontrar norma por não a merecer (…) seja porque não é, de todo,
juridicamente relevante, seja porque só deve ter uma solução ao nível de outro
ramo do Direito”
[15]
.
Parece poder ser
assimilada a esta figura aquela a que Castanheira Neves e Gomes Canotilho
apelidam, na senda da doutrina alemã, de “«espaços jurídicos livres»” ou
“«espaços livres de direito» (rechtsfreie Räume)”
[16]
.
A propósito desta última, Castanheira Neves ensina que, “se deve perguntar-se
até onde a realidade humana, particularmente a realidade da convivência
humano-social (…) é objecto do direito ou se haverá de considerar
intencionalmente atingida por ele, não deve perguntar-se menos que dimensões,
domínios ou espaços dessa realidade se deverão subtrair ou se hão-de ter por
subtraídos à normatividade jurídica”. Como ajuíza, “o que está essencialmente
em causa é saber até onde e em que termos deverá o direito atingir a vida
humana, ou enquanto será exigível e justificado que ele a atinja como sua
dimensão prático-constitutiva”. Sendo consensualmente aceite entre a doutrina
que existem situações da vida para as quais o ordenamento jurídico vigente não
dispõe de soluções normativas aplicáveis – “e a exigirem assim um juízo
decisório de autonomia normativamente constitutiva” –, isso leva a que, inevitavelmente,
se coloque a questão seguinte: “qual o critério que nos permitirá saber quando
estamos perante um caso desses e não antes já no domínio do espaço livre de
direito?”
[17]
. Poderá
dizer-se que estamos aqui no “domínio do ajurídico”, ou, se se preferir, perante
domínios da realidade em relação aos quais se verificou uma “deliberada
renúncia a uma directa regulamentação”
[18]
.
Jorge Miranda
transpõe para o plano constitucional a figura das situações extrajurídicas ou
extraconstitucionais (por vezes referenciada, como assinala, de situação de
“lacunas absolutas”), fazendo-a corresponder “a situações deixadas à decisão
política ou à discricionaridade do legislador ordinário”
[19]
.
Como se verá em seguida, assim entendida, a situação extrajurídica de Jorge
Miranda assimila-se à ideia de abertura das normas constitucionais de Gomes
Canotilho.
1.1.3. A abertura das normas
Gomes Canotilho chama
a atenção para a circunstância de que no domínio do direito constitucional se
verifica, “com mais intensidade do que noutros domínios jurídicos, a ideia da
abertura e incompletude normativa intencional”. Esta incompletude,
diferentemente do que sucede no caso das lacunas, não é contrária ao plano
regulativo constitucional. Antes foi o legislador constituinte que,
deliberadamente, optou por não disciplinar certos domínios da realidade social,
remetendo a respectiva regulação para as fontes infraconstitucionais (“pode
dar-se o caso de ser a própria constituição a deixar intencionalmente por
regular certos domínios da realidade social”
[20]
).
Quis, deste modo, deixar um espaço livre de actuação normativa ao legislador,
permitir a luta política e adaptação das normas constitucionais à evolução da
realidade constitucional
[21]
.
No direito constitucional a abertura de um grande número das suas normas materializa-se,
deste modo, num silêncio do texto constitucional.
A este propósito da
abertura das normas constitucionais, poder-se-á inferir, sem grande margem de
erro, que a existência de normas abertas se verifica com mais frequência
naquelas constituições que atribuem ao legislador ordinário uma importante
tarefa de inclusão e integração social e económica e que, concomitantemente,
possuem um grande número de normas que fixam, de forma mais ou menos concreta,
fins e objectivos ao Estado, nomeadamente ao legislador ordinário.
Convém, por último,
realçar que a falta de densidade das normas constitucionais que resulta da sua
abertura não deve confundir-se com aquela que resultará da presença de
conceitos indeterminados no texto constitucional. Porventura, poderá afirmar-se
que a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais é mais comum no
direito privado do que no direito constitucional. Seja como for, a verdade é
que eles também estão presentes no texto da nossa Constituição (vejam-se, a título
exemplificativo, os de “igualdade real”, “eficiência do sector público”,
“repartição justa dos rendimentos e da riqueza”, “efectiva ligação à comunidade
nacional”
[22]
), devendo o
seu preenchimento ter em consideração os princípios, os valores e os interesses
constitucionalmente relevantes. Isso mesmo é assinalado por Jorge Miranda, que
alerta ainda para o facto de que o legislador, não obstante nestes casos ter
uma margem bastante razoável de conformação normativa, não poderá “«transfigurar o conceito, de modo a que cubra
dimensões essenciais e qualitativamente distintas daquelas que caracterizam a
sua intenção jurídico-normativa»; e o que se diz do legislador deve dizer-se,
até por maioria de razão, do intérprete”
[23]
.
A propósito ainda dos conceitos indeterminados, Cardoso da Costa chama a
atenção para o papel preponderante que cabe ao Tribunal Constitucional no seu
preenchimento
[24]
.
1.2. A omissão
legislativa inconstitucional
1.2.1. A problemática das omissões
legislativas inconstitucionais tem preocupado moderadamente a doutrina
portuguesa pois se, por um lado, a Constituição de 1976 prevê, no seu artigo
283.º, a existência de um controlo de inconstitucionalidade por omissão,
concentrado e em via principal
[25]
,
por outro lado, não têm sido muitas as ocasiões em que o Tribunal
Constitucional tem tido a oportunidade de efectuar este tipo de controlo
[26]
.
Subjacente a este
tipo de controlo de inconstitucionalidade por omissão está a delicada questão
da conciliação entre a autonomia política do legislador ordinário (e a correspectiva
liberdade de conformação normativa) e a necessidade de assegurar a subordinação
do mesmo legislador à Constituição, alicerçada no reconhecimento da sua
supremacia no seio do ordenamento jurídico (reconheça-se-lhe ou não um carácter
dirigente ou mesmo tão só programático
[27]
).
De forma mais específica, está em causa a conciliação entre a liberdade de
conformação normativa do legislador e o dever de legislar imposto em certos
casos pela Constituição. A questão fundamental a ter em consideração é, deste
modo, a da determinação das fontes do dever de legislar
[28]
.
Como pano de fundo desta problemática, temos o princípio da separação dos
poderes.
A solução para esta
questão – no fundo, a da graduação da subordinação (ou, no caso
específico que interessa, da vinculação) do legislador ao texto da Lei
Fundamental – deve ser encontrada no próprio texto constitucional, mais
especificamente, na densidade das suas normas. Dito de outro modo, esta questão
deve ser encarada como um problema técnico-jurídico e, deste modo, enfrentada
numa óptica normativa – e não vista enquanto questão política ou, pelo
menos, exclusivamente política.
1.2.2. A omissão legislativa configura
uma não-execução constitucional, uma desobediência a uma obrigação constante
das normas do texto constitucional. O legislador constituinte português não
individualizou um conceito de omissão legislativa inconstitucional. Contudo, ao
limitar a actuação do Tribunal Constitucional aos casos em que não foram
adoptadas medidas legislativas necessárias para dar operatividade a normas não
exequíveis por si mesmas, insinuou que não é qualquer silêncio do legislador
que deverá ser atendível para efeitos de uma decisão de inconstitucionalidade
por omissão.
Com base nisto, a
doutrina nacional distingue entre a omissão legislativa e a omissão
(legislativa) inconstitucional ou constitucionalmente relevante
[29]
.
A distinção prende-se com o tipo de normas constitucionais em relação às quais
se verificou a desobediência, a inércia ou a passividade do legislador. Isto faz
com que a maior parte dos autores associe esta temática à da tipologia das
normas constitucionais, procurando estabelecer a sua própria classificação,
para em seguida estabelecer quais aquelas que, ao não serem cumpridas pelo
legislador ordinário, vão originar uma omissão constitucionalmente relevante
[30]
.
Este modo de perspectivar o problema das omissões legislativas é criticado, na
doutrina nacional, por Pereira da Silva, que considera esta abordagem
exclusivamente processualista e, nesse sentido, redutora porque inadequada para
abarcar todo o alcance jurídico da figura das omissões legislativas. Em seu
entender, esta perspectiva processualista inverte em larga medida “a ordem
natural dos factores, porquanto constrói a figura da omissão legislativa –
que se situa no campo substantivo – à luz de um dos termos de uma
classificação de normas constitucionais, apenas porque este se encontra
presente numa norma de natureza processual. Ora, o artigo 283.º, como norma
processual que é, não tem por missão definir a figura material da omissão
legislativa, nada permitindo a conclusão segundo a qual só há omissão do
legislador quando este não emane as normas necessárias à concretização de
normas constitucionais não exequíveis por si mesmas. (…) o artigo limita-se (…)
a estabelecer um meio de controlo, a cargo do Tribunal Constitucional, de uma
modalidade particular de omissão do legislador. Nada no seu enunciado permite
retirar a ilação de que não existem outros meios de controlar
jurisdicionalmente as omissões do legislador, nem tão-pouco que não existem
outras modalidades de omissão legislativa”
[31]
.
1.2.3. Quanto à questão das normas
constitucionais cujo incumprimento pode gerar uma omissão constitucionalmente
relevante, há que fazer algumas observações.
Antes de mais, é
importante reiterar a ideia de que a verificação de uma inconstitucionalidade
por omissão não pode ser aferida em face do sistema constitucional em bloco,
antes sê-lo-á em face de uma específica norma cuja não exequibilidade põe em
causa o cumprimento da Constituição
[32]
.
Para além disso,
importa chamar a atenção para a circunstância de que o legislador constituinte
não estabeleceu nem forneceu qualquer critério para a determinação das normas
não exequíveis por si mesmas, pelo que, como foi oportunamente mencionado, a
generalidade dos autores procura estabelecer uma classificação das normas
constitucionais que impõem um dever de actuar ao legislador de acordo com o
grau de vinculação nelas detectado.
Há uma divergência
doutrinal quanto às habitualmente denominadas “normas programáticas”. Enquanto
a generalidade da doutrina (Gomes Canotilho, Vital Moreira, Vieira de Andrade e
Manuel Afonso Vaz) expressamente afasta a possibilidade de o incumprimento de
uma norma programática poder originar uma inconstitucionalidade por omissão,
Jorge Miranda assume uma posição em alguma medida divergente, admitindo que as
normas não exequíveis, sejam elas preceptivas ou programáticas, quando não
tornadas operativas pelo legislador originário podem gerar uma
inconstitucionalidade por omissão. Reconhece, porém, que não nos mesmos termos.
Assim, na norma preceptiva inexequível, “a inconstitucionalidade produz-se (…)
logo que a norma constitucional entra em vigor ou transcorrido o prazo dado ao
legislador para a complementar. Na norma programática, ocorre quando o
legislador se queda passivo perante os condicionalismos económicos e sociais de
que depende a sua efectivação, não os procurando conformar ou promover, ou, no
limite, estando eles já verificados, não emitindo a correspondente orientação
prospectiva ao serviço dos fins constitucionais”
[33]
.
Por último, está em
causa ainda saber se as normas cujo incumprimento gera uma
inconstitucionalidade por omissão são apenas as regras ou também os princípios
constitucionais. Quanto a esta questão, parece haver hoje um razoável consenso
no seio da doutrina nacional – na verdade, mais no que toca à aceitação
dessa possibilidade e não tanto quanto aos termos em que ela deve ser aceite.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira afigura-se evidente que a
inconstitucionalidade por omissão “deverá abranger, pelo menos, o caso de não
cumprimento dos princípios-normas”. Mais problemático se apresenta, na sua perspectiva, o
“caso dos princípios não escritos, ou seja, (…) os princípios que se deduzem
implicitamente das normas constitucionais mas que não constituem
princípios-normas. Em relação a estes já se poderá aceitar que a sua violação
só por via da inconstitucionalidade por acção possa ser aferida”
[34]
.
Para Jorge Miranda, quase sempre a norma constitucional inexequível por si
mesma será uma “norma-preceito”; o autor defende “que não é de excluir, no
entanto, que também em relação a certos princípios possa ocorrer um problema de
exequibilidade por via legislativa”
[35]
.
Para Pereira da Silva, na grande maioria dos casos a densificação legislativa
dos princípios constitucionais remete para o dever geral de legislar. Admite,
porém, “que apenas perante uma situação determinada se poderá verificar se
certo princípio constitucional exige ou não do legislador que actue no sentido
de o «consolidar normativamente» em determinado sentido”
[36]
.
1.2.4. De tudo o que já foi exposto,
pode, desde já, concluir-se com segurança que no ordenamento jurídico português
se opera com um conceito jurídico, e não naturalístico, de omissão legislativa
[37]
.
Com efeito, não basta um simples não fazer (ou, por outras palavras, não
cumprir um dever geral de legislar), torna-se necessário não fazer algo a que
se estava jurídico-constitucionalmente obrigado (ou também, não cumprir um
dever específico de legislar), pelo que as omissões legislativas
inconstitucionais geram um vazio de regulação que não é colmatável com recurso
ao instrumentarium próprio da integração. Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentam que para a
omissão legislativa assumir relevância do ponto de vista do seu controlo
constitucional, ela deverá “conexionar-se com uma exigência constitucional
de acção”
[38]
.
Ainda assim, ao dever jurídico-constitucional do legislador ordinário “não
corresponde automaticamente um direito fundamental à legislação”, posição que é
partilhada pela generalidade da doutrina
[39]
.
Para além disso,
apesar de algumas divergências doutrinárias em relação aos aspectos
assinalados, poder-se-á ensaiar uma tipologia de situações de omissão
constitucionalmente relevante
[40]
.
São elas as seguintes: situações de ausência, de desadequação e de deficiência
ou insuficiência.
a) As situações de ausência podem consistir na omissão pura
e simples de adopção das medidas legislativas necessárias para dar
exequibilidade às normas constitucionais impositivas (por outras palavras, na
falta ou inexistência total de normas a regular uma determinada matéria).
Podem, de igual modo, existir situações de ausência quando determinadas normas
constitucionais não possuem suficiente densidade para se tornarem exequíveis
por si mesmas, reenviando implicitamente para o legislador ordinário a tarefa
de lhes dar exequibilidade prática
[41]
.
Como exemplo deste tipo particular de situação, os mesmos autores mencionam a
necessidade de definição legal dos crimes de responsabilidade política e a
definição do regime geral do direito de oposição que decorrem, respectivamente
do artigo 117.º, n.º 3, e do artigo 40.º da CRP
[42]
.
b) As situações de inadequação – que alguma doutrina mais
recente invoca – surgem na sequência do não cumprimento, por parte do
legislador ordinário, da obrigação de melhorar, actualizar, aperfeiçoar ou
corrigir as normas existentes.
Reportando-se às
situações em análise, Gomes Canotilho defende que em relação a elas a omissão
não consiste “na ausência total ou parcial da lei, mas na falta de adaptação ou
aperfeiçoamento das leis existentes”. Segundo o autor, “esta carência ou défice
de aperfeiçoamento das leis assumirá particular relevo jurídico-constitucional
quando, da falta de «melhorias» ou «correcções», resultem consequências
gravosas para a efectivação de direitos fundamentais”
[43]
.
Também Pereira da
Silva alude a esta figura. Em seu entender, são dois os casos em que se poderá
falar numa obrigação de correcção ou adequação de normas existentes.
Antes de mais, refere
as denominadas “inconstitucionalidades deslizantes” ou “situações
constitucionais imperfeitas ou em trânsito para a inconstitucionalidade”. A sua
ocorrência fica a dever-se ao facto de “a lei vigente ter ficado estagnada no
tempo, não acompanhando o processo evolutivo da realidade constitucional”.
Existe, nestes casos, “um processo contínuo de inconstitucionalização de
determinada norma, sendo que o prolongamento da inactividade do legislador para
além de determinado limite, mais ou menos preciso, convolará definitivamente a
situação normativa vigente em inconstitucional”. Inconstitucionalidade essa que
não reside propriamente na lei vigente, “que era originariamente conforme com a
Constituição (e, porventura, ainda o será), mas sim na falta de intervenção
legislativa destinada a adaptar às novas realidades a norma jurídica em causa”.
Estará deste modo estabelecida a conexão com a figura da inconstitucionalidade
por omissão
[44]
.
Os outros casos em
que se verifica um dever de correcção ocorrem quando “as prognoses do
legislador se revelam erradas”. Em relação a estes últimos, o autor parece em
larga medida acompanhar a atitude prudente do Tribunal Constitucional (que
assinala), no sentido de que será mais difícil nestes casos de erro de prognóstico
do legislador ordinário impor a figura da inconstitucionalidade por omissão
[45]
.
c) As situações de insuficiência
ou deficiência.
Também em relação a este tipo de situações se podem individualizar duas
hipóteses. Temos, então, os casos de omissão legislativa parcial não
intencional, já anteriormente analisados.
Para além destes,
temos ainda aqueles casos em que a concretização de uma determinada norma
constitucional impositiva está ela mesma dependente do ulterior desenvolvimento
legislativo de uma lei já existente (por exemplo, foi emanada uma lei de bases,
a qual, porém, carece de posterior desenvolvimento através dos respectivos
decretos-leis)
[46]
.
1.2.5. Até agora o discurso centrou-se
mais na questão das normas constitucionais cujo incumprimento determina a
verificação de uma omissão legislativa constitucionalmente relevante. Do mesmo
modo, o decurso do tempo é importante nesta verificação. Será, contudo, ao que
parece, abusivo considerar que a inconstitucionalidade por omissão se
consubstancia numa inconstitucionalidade ratione temporis. Por outras palavras,
exceptuando os casos em que as normas constitucionais impositivas estabelecem
um prazo que o legislador terá que cumprir (apenas o fez a título excepcional
para aquelas normas a que alguma doutrina designa de ordens de legislar), o
mero decurso do tempo não pode ser visto per se como um critério aceitável para
determinar a verificação ou não verificação de uma omissão legislativa
relevante para efeitos de controlo da constitucionalidade. De certa forma, está
aqui presente a ideia de que o que se deve ter verdadeiramente em consideração
são as consequências jurídicas da inércia do legislador, sendo certo que a
partir do momento em que a constituição entra em vigor, o legislador deverá
cumprir as normas constitucionais impositivas. Ou seja, a omissão legislativa
só se tornará relevante quando a inércia ou passividade do legislador ordinário
assumir em concreto – ou perante as circunstâncias concretas que se vivem
num determinado momento histórico – o significado de uma alteração ao
projecto constitucional.
Na doutrina
portuguesa, há quem acentue mais os resultados da inércia do legislador e há
quem acentue mais a questão do decurso do tempo.
Gomes Canotilho
constitui um exemplo do primeiro caso. Para este autor a figura da
inconstitucionalidade por omissão “não se conexiona necessariamente com os
prazos ou tempos dentro dos quais deveria ter havido a interpositio legiferante necessária para
tornar exequíveis os preceitos constitucionais”. A relevância constitucional da
omissão deverá antes ser aferida fundamentalmente pela “importância e a
indispensabilidade da medida legislativa para dar operatividade prática às
normas constitucionais do que a fixação de eventuais limites ad quem”
[47]
.
Posição próxima é a de Vieira de Andrade, para quem a omissão legislativa
(total) é “facilmente detectável, bastando confirmar a necessidade real da
intervenção legislativa para a exequibilidade das normas constitucionais”
[48]
.
Jorge Miranda, por
sua vez, parece atribuir um peso mais relevante ao decurso do tempo,
sustentando que a “ausência ou insuficiência da norma legal não pode ser
separada de determinado tempo histórico”; exceptuando os casos em que no texto
constitucional seja pré-fixado um prazo de cumprimento de certo tipo de normas,
a verificação da inconstitucionalidade por omissão “dependerá da natureza das
coisas, ou seja, da natureza da norma constitucional não exequível por si mesma
confrontada com a situação da vida que esteja a verificar-se à sua margem (inclusive
a situação que, à sua margem, esteja por acção o legislador ordinário a criar).
Em seu entender, o órgão de fiscalização “tem de medir e interpretar o tempo
decorrido – esse tempo que fora dado ao órgão legislativo (competente)
para emanar a lei”, devendo concluir-se pela existência de uma omissão
legislativa relevante “sempre que, tudo ponderado, se reconhecer que o
legislador não só podia como devia ter emitido a norma legal, diante de
determinadas circunstâncias ou situações em que se colocou ou foi colocado”
[49]
.
1.2.6. Fala-se ainda, a propósito das
omissões legislativas relevantes, de situações em que elas geram, não uma
inconstitucionalidade por omissão, mas sim uma inconstitucionalidade por acção
[50]
.
É o caso das
denominadas omissões parciais, distintas das omissões totais
[51]
,
havendo unanimidade na doutrina nacional no sentido de considerar que apenas as
segundas originam sempre uma inconstitucionalidade por omissão, ao invés das
primeiras, que podem gerar, consoante os casos, uma inconstitucionalidade por
omissão ou uma inconstitucionalidade por acção, por violação do princípio da
igualdade.
A omissão parcial
verifica-se naqueles casos em que a lei concretizadora da norma constitucional
impositiva regula uma matéria mas não todos os seus aspectos; a intervenção do
legislador é incompleta porque excluiu ex silentio do seu âmbito de aplicação um grupo de
pessoas ou situações, sem que haja uma razão objectiva e um fundamento razoável
que justifiquem a disparidade de tratamento
[52]
.
O que vai determinar
o tipo de inconstitucionalidade – por omissão ou por acção – é o
saber se a actuação insuficiente ou deficiente do legislador ordinário foi
intencional ou não. Se se confirmar que houve a intenção deliberada de
contemplar certas pessoas ou certas situações, então há uma violação do
princípio da igualdade expressamente consagrado no artigo 13.º da CRP e
presente em muitas outras disposições constitucionais. Se, pelo contrário, a
actuação do legislador ordinário resultar, sem mais, da incompleta ou
incorrecta apreciação das situações de facto, mas sem que tenha havido a
intenção de beneficiar apenas certas pessoas ou situações, então teremos uma
inconstitucionalidade por omissão
[53]
.
Neste último caso, o silêncio é o objecto de controlo, no primeiro é motivo de
impugnação.
Esta figura da
omissão parcial não concita consenso entre a doutrina. Assim, se Gomes
Canotilho afirma que “o conceito jurídico-constitucional de omissão é
compatível com omissões legislativas parciais ou omissões relativas”
[54]
,
a mesma figura é criticada por Rui Medeiros – que a denomina de
“inconstitucionalidade por acção omissiva –, por entender que ela implica
um nítido enfraquecimento do princípio da igualdade
[55]
.
Ainda assim, o autor considera que, “mesmo existindo uma omissão constitucional
de legislar e uma discriminação inconstitucional, o mais que se pode admitir é
que, nestes casos, ocorre, cumulativamente, um fenómeno de
inconstitucionalidade por acção e de inconstitucionalidade por omissão” e, a
ter que se optar por algum deles, deve evitar-se o regime, “praticamente
inócuo, da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão”
[56]
.
Pense-se, outrossim,
naquela situação em que se verifica a abrogação pura e simples das normas
legais que davam exequibilidade às normas constitucionais dela carecidas,
originando com isso o incumprimento da Constituição. Como assinalam a
generalidade dos autores, com base, aliás, no que tem sido a jurisprudência do
Tribunal Constitucional, nestes casos o que há verdadeiramente é uma situação
de inconstitucionalidade por acção, em que o objecto de controlo é a norma
abrogatória e não a situação de omissão legislativa que ela gera
[57]
.
1.2.7. Finalmente, cumpre ainda referir
um último problema relacionado com as omissões legislativas, que é o de saber
se elas ainda deverão ser consideradas constitucionalmente relevantes naqueles
casos em que o pedido de fiscalização foi feito num momento em que o processo
de criação do acto legislativo já está em marcha.
Esta questão já se
colocou na prática quando, por exemplo, foi pedida a fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão por falta de regulação legal do referendo
local constitucionalmente previsto
[58]
.
Quanto a ela, parece haver consenso entre a doutrina no sentido de que não
basta a apresentação de um mero projecto ou proposta de lei e, muito menos, a
manifestação de meras declarações de intenção, para que se possa aceitar que a
omissão legislativa não merece já um juízo negativo por parte do Tribunal
Constitucional. Isso mesmo decorre, com mais ou menos variações, das palavras
de eminentes constitucionalistas.
Para Jorge Miranda,
se o projecto ou proposta de lei ainda não estão aprovados, haverá omissão
legislativa relevante, uma vez que “só conferem exequibilidade a normas
constitucionais medidas legislativas actuais e não futuras ou potenciais”. Já
não se justificará qualquer juízo de inconstitucionalidade por omissão “se o
processo já está concluído no órgão legislativo competente e se dele já não
depende a edição da norma”
[59]
.
Gomes Canotilho e
Vital Moreira entendem que “para cessar a situação de omissão inconstitucional
do legislador é preciso que haja lei, não podendo bastar a existência de
intenções ou processos legislativos. Admite-se que o Tribunal aguarde algum tempo razoável para
se pronunciar no caso de estar pendente uma iniciativa legislativa. Mas quando
se pronuncia o Tribunal Constitucional não pode dar por cessada a omissão pelo
facto de haver tal iniciativa legislativa. A omissão só cessa com a existência
da lei que dê exequibilidade à norma constitucional”
[60]
.
Bacelar Gouveia,
aceitando também ele que “a aprovação na generalidade de projectos de lei, tal
como a iniciativa legislativa, nenhumas garantias oferece de que a lei seja
efectivamente emitida”, vai, no entanto, mais longe, lembrando que o problema
não se confina à Assembleia da República. Com efeito, após a aprovação
parlamentar das leis “há ainda que contar com a intervenção do Presidente da
República e do governo, que podem obstar, respectivamente através do veto e da
recusa de referenda ministerial, à conclusão do procedimento legislativo”.
Conclui o autor que não seria totalmente descabido “formular outro entendimento
da locução «órgão legislativo competente» constante do artigo 283.º, n.º 2, da
Constituição, (…) no sentido de abranger igualmente estes dois órgãos, por
serem intervenientes no processo legislativo”
[61]
.
1.3. A
caracterização das instâncias de justiça constitucional enquanto “legislador
negativo” ou enquanto “legislador positivo”
1.3.1. Antes de se abordar esta
específica questão, é conveniente prestar um esclarecimento prévio.
Não pode deixar de se
aludir ao facto de que a figura da inconstitucionalidade por omissão consagrada
na nossa Constituição sofreu já algumas alterações por força da revisão
constitucional de 1982. Com efeito, em virtude da primeira revisão
constitucional, o órgão controlador deixou de ser o Conselho da Revolução e
passou a ser o Tribunal Constitucional (cuja criação imediata resultava de uma
ordem de legislar inserida nesta mesma revisão), e a “sanção” prevista para os
casos em que se verifica uma omissão legislativa constitucionalmente relevante
passou a materializar-se num simples aviso ou advertência ao legislador,
doravante deixando de existir a possibilidade de o órgão encarregado do
controlo poder sugerir as correcções necessárias (ou fornecer instruções) para
a ulterior intervenção do legislador ordinário. O Conselho da Revolução podia
formular recomendações nos termos dos artigos 146.º e 279.º da CRP
[62]
.
A consagração constitucional destas sentenças de recomendação leva consigo a
ideia de que a sanação da omissão legislativa inconstitucional implica uma
actividade do legislador ordinário
[63]
.
Não se deve entender, porém, que, como assinala Jorge Miranda, o Conselho da
Revolução pudesse “fazer leis sob a forma de recomendações – que o mesmo
seria indicar as normas legislativas adequadas à finalidade de tornar
exequíveis as normas constitucionais”. Do mesmo modo, as recomendações não
podem consubstanciar “qualquer espécie de iniciativa legislativa” e nem
equivaler “a qualquer espécie de solicitação de prioridade na fixação da ordem
do dia”. Como conclui, “velar pela emissão das medidas legislativas necessárias
aos cumprimento das normas constitucionais (…) é tarefa completamente distinta
da de sugerir quais devam ser essas medidas”
[64]
.
1.3.2. Prestado este esclarecimento
prévio, pode dizer-se que, independentemente de se discutir se o controlo da
inconstitucionalidade por omissão visa a conduta omissiva do legislador (visão
mais política) ou as consequências jurídicas a que o silêncio do legislador
conduziu (visão normativa) – questão que não resulta muito debatida na
doutrina nacional
[65]
–, a concepção dominante em Portugal acerca da missão do Tribunal
Constitucional é a de que ele exerce uma função de controlo de carácter essencialmente negativo, não
se podendo substituir ao legislador ordinário ou vinculá-lo na sua actuação
[66]
.
1.3.3. A ideia de que, no controlo
concentrado abstracto, o órgão de justiça constitucional funciona como um
legislador negativo ou tem uma função legislativa negativa – ideia de
origem kelseniana – significa que ele tem uma função de cassação,
limitando-se a expulsar ou eliminar da ordem jurídica as normas que estão em
desconformidade com a Constituição
[67]
.
Transpondo esta ideia
para o instituto da inconstitucionalidade por omissão, dir-se-á que o Tribunal
Constitucional não pode substituir-se ao legislador, criando a norma ou normas
em falta, ou mesmo, tão só, instando o legislador a actuar, indicando o timing e o conteúdo da criação da(s)
mesma(s)
[68]
. Ele é um
contralegislador e não outro legislador
[69]
.
Do texto da nossa Constituição resulta bem claro que existe uma preferência do
legislador como órgão concretizador ou executor da Constituição, do seu
projecto
[70]
.
O controlo da inércia
ou inactividade do legislador ordinário não pode implicar uma efectiva coacção
sobre o mesmo. E isto porque, como se viu, o que está em causa neste tipo de
controlo não é impor a vontade do órgão que controla sobre a do órgão
controlado, antes o que se pretende é reafirmar a supremacia da Constituição.
A ideia, sufragada
pela doutrina nacional, de que o Tribunal Constitucional actua como um
legislador negativo corresponde a uma concepção tradicional acerca das funções
deste órgão de justiça constitucional.
Mais recentemente,
alguns sectores da doutrina estrangeira, apoiando-se, aliás, numa
jurisprudência cada vez mais criativa, têm defendido que a jurisdição
constitucional deve possuir também uma função integradora ou concretizadora,
actuando como um verdadeiro legislador (legislador positivo ou activo). A
doutrina nacional não parece rever-se neste filão doutrinal.
1.3.4. Em termos de efeitos, a doutrina tem qualificado as
decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão como sentenças de mera verificação ou de
reconhecimento
[71]
[72]
,
possuidoras de uma eficácia meramente declarativa
[73]
.
Este tipo de sentenças não se confunde com as sentenças apelativas ou de
delegação
[74]
, uma vez
que o seu objectivo é o de dar conhecimento ao órgão legislativo competente do
incumprimento do seu dever específico de legislar, constitucionalmente fixado.
Sem pôr em causa esta asserção, Gomes Canotilho considera que a função do tipo
de controlo da constitucionalidade em análise é a de assegurar uma forma de
publicidade crítica e formalizada contra os incumprimentos da Constituição.
Ainda no que respeita
aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade por omissão, alguns autores sustentam que
ela não possui nenhuma eficácia jurídica directa ou que está desprovida de
qualquer efeito vinculante
[75]
.
Como compreender estas afirmações? Fundamentalmente, no sentido de que a
decisão proferida pelo Tribunal Constitucional nesta sede não só não elimina
(ou anula) a inconstitucionalidade (esta só deixará de existir quando se
verificar a interpositio do legislador) como, igualmente, tem efeitos negativos e não de conformação
normativa
[76]
e, por fim,
não obriga o legislador a adoptar as medidas legislativas em falta.
1.3.5. Apesar do que acabou de ser dito
sobre a eficácia das sentenças de mera verificação ou reconhecimento, é
oportuno fazer algumas aclarações.
Antes de mais, elas
não são de modo algum inócuas, existindo sempre um juízo mínimo sobre a
oportunidade política da aprovação do acto devido
[77]
.
Para além disso, não
se pode sustentar que, tendo o Tribunal Constitucional verificado a existência
de uma omissão legislativa relevante, o legislador ordinário não fique
vinculado a legislar. Sucede que, como conclui Nunes de Almeida, essa
vinculação deriva do próprio texto constitucional e não da decisão do Tribunal,
a qual não desencadeia, por si própria, um processo legislativo
[78]
.
Uma posição em tudo idêntica é adoptada por Jorge Miranda, que afirma que a
verificação de uma omissão constitucionalmente relevante “tão-pouco cria
qualquer obrigação jurídica para o órgão legislativo, apenas declara uma
obrigação preexistente”.
Finalmente, ao dar
conhecimento ao órgão competente da verificação de uma omissão
constitucionalmente relevante, o Tribunal Constitucional não estará a praticar
um acto de mera cortesia ou simplesmente a transmitir a sua decisão. Com
efeito, a sua actuação deverá ser vista como uma “forma intencionada de
sublinhar perante o órgão competente a ilicitude da omissão inconstitucional em
que está incurso e o seu dever constitucional de lhe pôr cobro”
[79]
.
1.3.6. Em suma, se houvesse que
caracterizar a actividade do Tribunal Constitucional português como activismo,
moderação ou minimalismo, a doutrina nacional optaria pela ideia de actuação
minimalista, associada a uma concepção negativa das respectivas funções no que
toca a esta sua competência fiscalizadora em sede de controlo da
inconstitucionalidade. Parafraseando Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a função
de controlo do TC é essencialmente negativa, sendo a sua vocação não a de definir
aquilo que é (ou seria) conforme à Constituição mas sim o que não é conforme
com ela”
[80]
.
Indo um pouco mais longe, Vital Moreira defende a rejeição, em via de
princípio, das concepções de activismo ou de criatividade do juiz constitucional,
as quais têm fundamentado em larga medida a prática das chamadas «sentenças
manipulativas» ou «construtivas». Porque, como adverte, “aí o juiz
constitucional assume inequivocamente a veste do legislador e, em vez de se
limitar a declarar a inconstitucionalidade das normas que o legislador emitiu,
permite-se criar ele mesmo normas em substituição do legislador, ou imputar
deliberadamente ao legislador normas diferentes das que este efectivamente
emitiu”
[81]
.
2. Os termos do controlo da inconstitucionalidade por
omissão na Constituição, na jurisprudência constitucional e na lei
2.1. O lugar da Constituição na ordem jurídica
portuguesa
Dispõe o n.º 3 do artigo 3.º da CRP que “a validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição”. Trata-se, em suma, da consagração do princípio da constitucionalidade, de que decorre a atribuição à Constituição do carácter de Lei Fundamental do país e a consequente afirmação da sua supremacia sobre todos os demais actos do Estado. Assim, no sistema legal português, a Constituição ocupa o lugar cimeiro na hierarquia das fontes [82] , com a qual todos os demais actos do Estado se hão-de conformar [83] sob pena de invalidade. A doutrina portuguesa [84] tem ainda evidenciado, para o que agora importa especialmente considerar, que não obstante aquele artigo 3.º se referir apenas a actos do Estado, o princípio da constitucionalidade que dele decorre vale igualmente para as omissões inconstitucionais; quer dizer, para os casos em que é omitido um acto legislativo que é exigido pela Constituição.
Sobre o conceito de Constituição adoptado e desenvolvido pelo Tribunal Constitucional deve sublinhar-se, neste contexto, que para além da Constituição formal, entendida como complexo de normas formalmente qualificadas como constitucionais, tem a jurisprudência constitucional feito referência à chamada Constituição material, entendida como um direito constitucional não escrito que, embora tenha na Constituição formal os seus fundamentos e limites, a completa e desenvolve [85] .
O Tribunal tem também frequentemente reconhecido a existência de princípios constitucionais implícitos, como, por exemplo, o “princípio da culpa” ou o “princípio da protecção da confiança”, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático expressamente consagrado no artigo 2.º da Constituição.
O Tribunal Constitucional já tem admitido, na sequência do que também vem sendo o entendimento da doutrina portuguesa mais representativa, que a Constituição não regula tudo quanto dela deveria ser objecto e, nesse sentido, que não se trata de uma lei sem lacunas. A concretização mais desenvolvida do conceito de lacuna constitucional tem sido, porém, mais desenvolvido pela doutrina do que pela jurisprudência constitucional. Segundo Gomes Canotilho [86] “uma lacuna normativo-constitucional só existe quando se verifica uma incompletude contrária ao «plano» de ordenação constitucional. Dito por outras palavras: a lacuna constitucional autónoma surge quando se constata a ausência, no texto normativo-constitucional, de uma disciplina jurídica, mas esta pode deduzir-se a partir do plano regulativo da constituição e da teleologia da regulamentação constitucional”. Também Jorge Miranda [87] admite sem reservas e aponta vários exemplos de lacunas na Constituição [88] , que define como “situações constitucionalmente relevantes não previstas”.
2.2. A expressa consagração constitucional da
competência do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a
inconstitucionalidade por omissão
Referem os artigos
277.º a 281.º da CRP que o objecto do pedido de apreciação da
constitucionalidade ou legalidade (no caso de fiscalização abstracta) ou o
objecto do recurso de constitucionalidade ou legalidade (no caso de
fiscalização concreta) é constituído, necessariamente, por normas jurídicas. Inconstitucionais
são, nos termos do disposto no artigo 277.º da Constituição, “as normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. Dessa
forma, os preceitos supra referidos delimitam a competência do Tribunal
Constitucional, em matéria de fiscalização da constitucionalidade, em função do
conceito de norma, entendida na jurisprudência constitucional como “quaisquer
actos do poder público que contenham uma «regra de conduta» para os
particulares ou para a administração, um «critério de decisão» para esta última
ou para o juiz ou, em geral «um padrão de valoração de comportamento»”
[89]
.
A Constituição estabelece efectivamente, no seu artigo
283.º, n.º 1, que “a requerimento do Presidente da República, do Provedor de
Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos
presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, o Tribunal
Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão
das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais”.
A Constituição não estabelece nenhum processo especial
para a investigação e averiguação da inconstitucionalidade por omissão das
medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais, cabendo essa tarefa, em termos que veremos melhor mais à
frente, à Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional.
2.3. A jurisprudência constitucional relativa à
competência do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a
inconstitucionalidade por omissão
Da Constituição, designadamente do seu artigo 221.º [90] , decorre efectivamente que é ao Tribunal Constitucional que cabe a última palavra em matérias de natureza jurídico-constitucional, sendo, nesse sentido, adequada a referência ao Tribunal Constitucional como o “intérprete oficial da Constituição” [91] .
O Tribunal Constitucional tem efectivamente procurado concretizar com algum detalhe os poderes que, de acordo com a Constituição, lhe estão cometidos em matéria de investigação e apreciação da inconstitucionalidade por omissão de legislar. Assim, em vários acórdãos [92] , tem o Tribunal afirmado que uma inconstitucionalidade por omissão só é verificável quando “existir em concreto uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador e que este se abstenha de a satisfazer”.
Nesse sentido tem o Tribunal sempre repetido que: “(…) a intervenção do legislador não se reconduz aqui ao «dever» que impende sobre o órgão ou órgãos de soberania para tanto competentes de acudir às necessidades «gerais» de legislação que se façam sentir na comunidade jurídica (isto é, não se reconduz ao «dever geral» de legislar), mas é antes algo que deriva de uma específica e concreta incumbência ou encargo constitucional (Verfassungsauftrag). Por outro lado, trata-se de uma incumbência ou «imposição» não só claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir (isto é, quanto ao an da legislação) – em tais termos que bem se pode falar, na hipótese, de uma verdadeira «ordem de legislar» -, como o seu cumprimento fica satisfeito logo que por uma vez emitidas (assim pode dizer-se) as correspondentes normas (…)” [93] .
No mesmo
sentido pode ler-se no Acórdão n.º 424/2001
[94]
:
“(…) à data do pedido, estavam reunidas as circunstâncias típicas de uma
‘omissão legislativa’ (mesmo acolhendo uma visão restritiva do conceito), pois se configurava uma muito concreta
e específica incumbência cometida pela Constituição ao legislador,
perfeitamente definida no seu sentido e alcance, sem deixar qualquer margem de
liberdade quanto à sua decisão de intervir ou não, mostrando-se cumprido o
desiderato constitucional logo que emitidas as correspondentes normas”.
Também na doutrina portuguesa mais
frequentemente referenciada pelo Tribunal é praticamente unânime o entendimento
de que o objectivo do artigo 283.º da Constituição, ao consagrar o instituto da
fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, não consiste em pretender
que se proceda a uma apreciação dos resultados
globais da
aplicação da Constituição, mas apenas a uma apreciação de uma concreta e específica situação de violação dela,
necessariamente demarcada a partir de uma norma suficientemente densificada, a que o legislador ordinário não
confere exequibilidade.
Assim, Gomes Canotilho
[95]
assinala que “o conceito jurídico-constitucional de omissão não se identifica
com o conceito naturalístico”, pelo que “não se trata apenas de um simples
negativo ‘não fazer’ do legislador; trata-se de este não fazer aquilo a que de
forma concreta e explícita estava constitucionalmente obrigado”. Ou seja,
“omissão legislativa, jurídico-constitucionalmente relevante, existe quando o
legislador não cumpre ou cumpre incompletamente o dever constitucional de
emanar normas destinadas a actuar as imposições constitucionais permanentes e
concretas”.
Também Jorge Miranda
[96]
se escuda, quanto a este preciso ponto, na jurisprudência do Tribunal
Constitucional, fixada no Acórdão n.º 276/89 já referido, acrescentando que a
“inconstitucionalidade por omissão – tal como a inconstitucionalidade por
acção – não se afere em face do sistema constitucional em bloco. É
aferida em face de uma norma cuja não exequibilidade frustra o cumprimento da
Constituição. A violação especifica-se olhando a uma norma violada, e não ao
conjunto de disposições e princípios. Se assim não fosse, o juízo de
inconstitucionalidade seria indefinido, fluido e dominado por considerações
extrajurídicas e o órgão de garantia poderia ficar remetido ao arbítrio ou à
paralisia”.
Finalmente,
Vieira de Andrade
[97]
refere, a propósito da inconstitucionalidade por omissão: “[…] Dos diversos
requisitos de verificação deste tipo de inconstitucionalidade, interessa-nos
acentuar agora que tem de tratar-se do incumprimento de uma certa e determinada
norma e não do conjunto de determinações e de princípios constitucionais.
Adoptando uma formulação mais elaborada, dominante na jurisprudência e doutrina
alemãs, há omissão legislativa sempre que o legislador não cumpre, ou cumpre
insuficientemente, o dever constitucional de concretizar imposições
constitucionais concretas. Julgamos que só há inconstitucionalidade por omissão
e, portanto, censura jurídico-constitucional ao legislador na medida exacta em
que o dever de legislar seja materialmente determinado ou determinável. A
possibilidade de verificação da inconstitucionalidade depende, pois, do grau de
densidade da norma impositiva e, consequentemente, do grau de vinculação do
legislador em face da Constituição […]”
Como
se concluiu no Acórdão n.º 474/2002, do que se acaba de dizer decorre, em suma,
que “a disposição constitucional em que se funda a invocação da
inconstitucionalidade por omissão tem que ser suficientemente precisa e
concreta para que o Tribunal possa determinar, com segurança, quais as medidas
jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade, sem ter de se
pronunciar sobre opções políticas eventualmente diversas. Assim, quando as
possibilidades deixadas pela Constituição ao legislador ordinário são
praticamente ilimitadas, o Tribunal não pode determinar, por critérios
estritamente jurídicos, o incumprimento do dever de legislar. E,
consequentemente, como a verificação jurisdicional da inconstitucionalidade por
omissão não pode assentar num juízo político, ela torna-se inviável.
Resumir-se-á, pois, este ponto dizendo que a verificação da
inconstitucionalidade por omissão supõe a existência de uma concreta e
específica situação de violação da Constituição, demarcada a partir de uma
norma suficientemente densificada, a que o legislador ordinário não conferiu
atempadamente exequibilidade”.
O Tribunal Constitucional não elaborou doutrina acerca
das consequências da verificação da existência de uma situação de não
cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias
para tornar exequíveis as normas constitucionais, limitando-se, nos contados
casos em que considerou verificada uma situação de inconstitucionalidade por
omissão, a, em cumprimento do artigo 283.º, n.º 2, da Constituição, “dar disso
conhecimento ao órgão legislativo competente”.
2.4. A concretização, na Lei do Tribunal
Constitucional, da competência do Tribunal Constitucional para investigar e
apreciar a inconstitucionalidade por omissão
Os poderes do Tribunal Constitucional para investigar e apreciar a inconstitucionalidade das omissões legislativas são essencialmente definidos pelo artigo 283.º, n.º 1, da Constituição, preceito a que já nos referimos e, nos termos do qual, a requerimento de alguma das entidades aí indicadas, compete ao Tribunal Constitucional apreciar e verificar o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
Na sequência desta previsão constitucional estabelece-se depois na LTC um processo destinado à apreciação e verificação daquela forma de inconstitucionalidade. No artigo 67.º da referida Lei estipula-se que ao processo de apreciação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais é aplicável, salvo quanto aos efeitos, o regime previsto nos artigos 62.º a 65.º para os processos de fiscalização abstracta sucessiva. Em síntese, aí se refere que o pedido de apreciação da inconstitucionalidade pode ser apresentado a todo o tempo (artigo 62.º, n.º 1), é autuado pela secretaria em 5 dias e apresentado de seguida ao presidente do Tribunal Constitucional que tem 10 dias para decidir da sua admissibilidade (artigo 62.º, n.º 1). Admitido o pedido e junta a resposta do órgão a quem caberia emitir a norma, ou decorrido o prazo fixado para o efeito sem que tenha havido resposta, é entregue uma cópia dos autos a cada um dos juízes, acompanhada de um memorando onde são formuladas pelo presidente do Tribunal as questões prévias e de fundo a que o Tribunal deverá responder bem como de quaisquer elementos documentais reputados de interesse (artigo 63.º, n.º 1). Decorridos 15 dias, pelo menos, sobre a entrega do memorando, é o mesmo submetido a debate e, fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, é o processo distribuído a um relator designado por sorteio ou, se o Tribunal assim o entender, pelo presidente (artigo 63.º, n.º 2). Concluso o processo ao relator é por este elaborado, no prazo de 40 dias, um projecto de acórdão de harmonia com a orientação do Tribunal (artigo 65.º, n.º 1). Esse projecto é posteriormente distribuído a todos os juízes e o processo concluso ao presidente para inscrição em tabela na sessão do Tribunal que se realize decorridos 15 dias, pelo menos, sobre a distribuição das cópias (artigo 65.º, n.º 1).
Sobre as consequências da decisão que vier a ser
proferida pelo Tribunal Constitucional, limita-se o artigo 68.º a dispor que a
decisão em que o Tribunal Constitucional verifique a existência de
inconstitucionalidade por omissão tem o efeito previsto no n.º 2 do artigo
283.º da Constituição, que se limita a estabelecer que quando o Tribunal
Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão dará
disso conhecimento ao órgão legislativo competente. Nem a LTC nem qualquer
outro diploma, designadamente o Regimento da Assembleia da República, se
referem expressamente a quem ou ao modo como deve ser removida a omissão
legislativa, como infra se verá mais
desenvolvidamente no ponto 5.
3. A omissão
legislativa inconstitucional enquanto objecto de apreciação pelo Tribunal
Constitucional
3.1. Formulação do
pedido ao Tribunal Constitucional
No sistema português,
existe para a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão um processo
especial, que compreende uma regra quanto à legitimidade activa. Podem requerer
ao Tribunal Constitucional a apreciação e verificação do não cumprimento da
Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar
exequíveis as normas constitucionais apenas o Presidente da
República, o Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das
regiões autónomas, os presidentes das Assembleias Legislativas das regiões
autónomas dos Açores e da Madeira (artigo 283.º, n.º 1, da CRP).
A legitimidade para
apresentar requerimentos ou recursos ao Tribunal Constitucional português depende
do tipo de processo em causa. Ora, importa antes de mais assinalar que a
competência deste Tribunal não se limita à apreciação da inconstitucionalidade
e da ilegalidade. Estão-lhe também atribuídas, entre outras, competências
relativas a processos eleitorais, a referendos nacionais, regionais e locais, a
declarações de património e rendimentos bem como de incompatibilidades e
impedimentos dos titulares de cargos políticos.
Restringindo a
análise à fiscalização da inconstitucionalidade de normas, importa distinguir,
para demonstrar a especialidade da legitimidade activa para requerer ao
Tribunal Constitucional a verificação da inconstitucionalidade por omissão,
entre, de um lado, os processos de fiscalização concreta e, de outro, os
processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade – artigos
277.º a 283.º da Constituição; artigos 51.º a 85.º da LTC.
Os primeiros
iniciam-se pela interposição para o Tribunal Constitucional de recursos de
decisões proferidas em processos que correm termos nos tribunais da jurisdição
comum (cível, criminal, administrativa), podendo interpor recurso para o
Tribunal Constitucional aqueles que, latu sensu, são sujeitos processuais nestes
processos (assim, v.g.,
o autor e o réu, o arguido, o Ministério Público).
Face à sistematização
da LTC, os processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade
subdividem-se nas seguintes categorias: processos de fiscalização preventiva,
processos de fiscalização sucessiva e processos de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão.
Têm legitimidade para
requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas
o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, um quinto dos Deputados à
Assembleia da República e os Representantes da República nas regiões autónomas
dos Açores e Madeira (artigo 278.º da Constituição). A legitimidade de cada uma
destas entidades depende do tipo de acto normativo em causa (por exemplo, a dos
Representantes da República está limitada às normas constantes de decreto legislativo regional).
Podem dar início a
processos de fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade o Presidente da
República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o
Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República e um décimo dos Deputados
à Assembleia da República. Quando o pedido de declaração de
inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas,
têm legitimidade activa os Representantes da República, as Assembleias
Legislativas das regiões autónomas, os presidentes das Assembleias Legislativas
das regiões autónomas, os presidentes dos Governos Regionais ou um décimo dos
deputados à respectiva Assembleia Legislativa.
No
processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão a legitimidade
activa assume, pois, carácter francamente restritivo.
3.2.
A omissão legislativa inconstitucional nos recursos de constitucionalidade
Como
ficou exposto no ponto anterior, apenas as entidades referidas no n.º 1 do
artigo 283.º da CRP podem colocar ao Tribunal Constitucional questões de
inconstitucionalidade por omissão, objecto de um processo próprio.
Sucede,
porém, que, por vezes, em sede de recursos de fiscalização concreta da
inconstitucionalidade de normas aplicadas pelas decisões dos tribunais comuns,
os recorrentes invocam inconstitucionalidades por omissão. O Tribunal
Constitucional não toma, nestes casos, conhecimento da questão de
inconstitucionalidade por omissão, por falta de legitimidade dos recorrentes e
por não ter sido utilizado o mecanismo processualmente adequado (exemplos:
Acórdãos n.ºs 32/90; 79/94; 190/97; 238/97; 499/97; 125/98; 232/98; 330/98;
326/01).
O
número de processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão é
muito pouco significativo, contando-se, até à presente data, apenas sete
decisões do Tribunal Constitucional proferidas em processos deste tipo (a
primeira em 1 de fevereiro de 1989 e a última em 19 de novembro de 2002)
[98]
.
Importando referir que o Tribunal Constitucional proferiu até ao presente cerca
de 14.300 decisões, não se contando neste número as decisões singulares.
Todos
os processos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão foram
intentados pelo Provedor de Justiça.
A
LTC estabelece que o requerimento que incorpora o pedido de apreciação do não
cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias
para tornar exequíveis as normas constitucionais é dirigido ao presidente do
Tribunal Constitucional. Deve ali ser especificada qual a norma constitucional
(ou quais as normas constitucionais) a que falta exequibilidade por omissão das
medidas legislativas necessárias (artigo 51.º, n.º 1, da LTC, que inicia as
disposições comuns, aplicáveis aos processos de fiscalização abstracta,
conforme definidos na LTC).
Já
sucedeu na prática do Tribunal vir o pedido acompanhado de pareceres ou
informações jurídicas (assim, Acórdãos n.ºs 182/89, 276/89).
No
processo n.º 36/90, o Tribunal admitiu que, num mesmo requerimento, o Provedor
de Justiça apresentasse um pedido de fiscalização sucessiva da
inconstitucionalidade e um pedido de apreciação da inconstitucionalidade por
omissão. Os pedidos – ambos relativos à questão da possibilidade de
transmissão do direito ao arrendamento para habitação nos casos de cessação de
união de facto em que haja filhos menores – foram
apreciados no mesmo processo, e decididos num único Acórdão (n.º 359/91).
3.3.
Apreciação da omissão legislativa inconstitucional por iniciativa do Tribunal
Constitucional
O
Tribunal Constitucional português não tem poderes para, ex officio, apreciar
uma inconstitucionalidade por omissão.
Há
referências, em algumas decisões do Tribunal tiradas em processos de outro tipo
(cfr. supra, ponto 3.1.), à eventualidade
de determinada situação poder configurar uma inconstitucionalidade por omissão,
mas como mero obiter dictum, ou seja, sem qualquer carácter decisório e sem que
dessa afirmação se retirem consequências.
Assim
sucedeu, por exemplo, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85,
proferido num processo de fiscalização concreta, em que o Tribunal analisava
uma norma do Código de Processo Penal. Era recorrente um arguido, condenado
pelos tribunais comuns pela prática de um crime de homicídio.
Ali
se afirmou que, em determinada forma de processo criminal (o processo de
“querela”), por não estarem contemplados meios de conservação dos elementos
probatórios de origem verbal, apenas em casos excepcionais o tribunal de
recurso poderia alterar a decisão de facto. Conclusão face à qual depois se
escreveu:
“Esta objecção, no
plano em que se situa a análise do TC [Tribunal Constitucional] não procede. É
que verdadeiramente ela não põe em causa a constitucionalidade do art. 469.º do
CPP [Código de Processo Penal]. Porá, sim, em questão, e neste ponto, a
constitucionalidade do sistema processual-penal, atacado por não conter normas
que salvaguardem a posição do arguido que pretenda do tribunal de recurso a
reavaliação da decisão de facto da 1ª instância. Mas, neste enfoque, o que tal
raciocínio consequenciará é a existência de uma inconstitucionalidade por
omissão: o legislador não estaria a passar a acto certa imposição legiferante
porventura ínsita no art. 32-º, n.º 1, da CR [Constituição da República].
De uma
inconstitucionalidade deste tipo, prevista no art. 283.º da CR, não tem,
todavia, que se conhecer num processo desta natureza”.
Idêntica
referência à eventualidade de uma inconstitucionalidade por omissão, mas sem
carácter decisório, encontra-se no Acórdão n.º 174/93, proferido no âmbito de
um processo de fiscalização sucessiva da constitucionalidade.
3.4.
Alcance da omissão constitucionalmente relevante
A
Constituição e, em conformidade, a LTC, referem-se expressamente à “omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais” (artigo 283.º, nº 1, da CRP e 67.º da LTC).
Tendo em consideração
a tipologia dos actos legislativos previstos no artigo 112.º, n.º 1, da CRP, as
medidas legislativas em falta poderão ser leis, decretos-leis ou decretos
legislativos regionais. Daqui decorre que se a Constituição não estiver a ser
cumprida por falta de outro tipo de actos normativos ou por falta de actos de
outra natureza (v.g.,
políticos, administrativos), não se verificará uma omissão constitucionalmente
relevante.
Não é pois possível apontar uma inconstitucionalidade
por omissão por falta de um acto que não tenha carácter legislativo nem
apontar uma omissão por não se tornar exequível norma não-constitucional (por
exemplo, uma lei de valor reforçado).
O que está em causa, no sistema português, é apreciar e
verificar, por esta forma, o não cumprimento da Constituição.
3.5.
Decisões do Tribunal Constitucional de não verificação da inconstitucionalidade
por omissão
Conforme
ficou exposto no ponto 3.2., o Tribunal Constitucional recusa a apreciação de
questões de inconstitucionalidade por omissão inseridas em recursos de
fiscalização concreta da inconstitucionalidade, com base na falta de
legitimidade dos requerentes e no erro na forma de processo. Não estão, aqui,
em causa casos de verdadeira recusa de apreciação de pedidos de
inconstitucionalidade por omissão, pois que não estava em causa o uso do meio
processual próprio.
No
que concerne à possibilidade de recusa por razões formais, é de assinalar que
cabe ao presidente do Tribunal Constitucional admitir o pedido de fiscalização
da inconstitucionalidade por omissão, sendo porém certo que esta decisão
preliminar de aceitação não faz precludir a possibilidade de o Tribunal vir, em
definitivo, a rejeitar o pedido (artigo 51.º, n.ºs 2 e 4, da LTC).
Se
o presidente do Tribunal Constitucional considerar que o requerimento inicial
apresenta falta, insuficiência ou manifesta obscuridade quanto aos elementos
que deve conter (supra, ponto 3.2.), notifica o autor
do pedido para suprir as deficiências (artigo 51.º, n.º 3, da LTC).
O
pedido não é admitido quando formulado por pessoa ou entidade sem legitimidade
ou quando as deficiências que o requerimento apresente não sejam supridas
(artigos 52.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, parte final, e 67.º da LTC). A competência
para a decisão de não admissão do pedido não é, no entanto, do presidente, mas
sim colegial (artigo 52.º, n.ºs 2 e 3, da LTC).
Importa
aqui considerar ainda a situação particular que decorre do facto de, na
pendência do processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, vir
a ser publicado acto legislativo que colmate a omissão.
Na
jurisprudência do Tribunal Constitucional português contam-se três casos (os
processos que deram origem aos Acórdãos n.ºs 276/89, 638/95 e 424/01) em que,
durante a pendência do processo, veio a ser publicado no jornal oficial acto
legislativo relativo à matéria objecto dos respectivos pedidos. O Tribunal
proferiu nestes casos, por unanimidade, uma decisão de mérito (afastando
a possibilidade de se estar perante um caso de não conhecimento do pedido, por inutilidade
superveniente com a consequente extinção da lide), tendo por não
verificada, face ao facto da publicação dos actos normativos, a
inconstitucionalidade por omissão. Teve-se, assim, como data relevante para
apreciar a omissão a data da prolação da decisão.
Estas
situações não constituem, pois, na jurisprudência constitucional portuguesa,
casos de recusa de conhecimento da inconstitucionalidade por omissão,
mas antes casos em que, conhecendo de fundo, o Tribunal se pronunciou pela
inexistência de inconstitucionalidade por omissão.
O
mesmo sucedeu no Acórdão n.º 36/90, embora, neste caso, não houvesse ainda, à
data da decisão, acto normativo publicado no jornal oficial. Tinha, porém, sido
já aprovado na generalidade, na Assembleia da República, um projecto de lei
quanto à matéria objecto do pedido, o que foi pelo Tribunal Constitucional
considerado suficiente para não ter por verificada a inconstitucionalidade por
omissão. Na doutrina, esta questão não é consensual, como já se viu supra, no ponto 1.2.7..
No
Acórdão n.º 359/91, o Tribunal Constitucional português não teve por verificada
a inconstitucionalidade por omissão. Foram vários os fundamentos invocados,
entre os quais a inexistência de um específico e concreto dever de
legislar sobre a matéria em causa (a transmissão da posição de arrendatário em
caso de cessação de união de facto em que existam filhos menores) imposto pela
Constituição. A inexistência deste específico dever não foi, pois, vista como
causa de recusa de apreciação da inconstitucionalidade por omissão, mas, mais
uma vez, como fundamento de uma decisão de mérito.
O
Acórdão foi proferido em processo, já referido supra (ponto 3.2.), em que
pelo mesmo requerimento foi formulado um pedido de fiscalização sucessiva
(quanto a um assento do Supremo Tribunal de Justiça, que veio a ser declarado
violador do princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do
casamento) e um pedido de apreciação da inconstitucionalidade por omissão.
Pode
ler-se na referida decisão:
«Em
conformidade com o juízo de avaliação formulado no pedido, verificar-se-ia no
ordenamento jurídico inconstitucionalidade por omissão de
uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, são aplicáveis, com as necessárias
adaptações, as uniões de facto nos casos em que há filhos menores.
Isto
porque, segundo tal entendimento, na eventualidade de o assento vir a ser
declarado inconstitucional, e apesar de os tribunais passarem então a dispôr da
possibilidade de aplicar, por analogia, aquelas normas às uniões de facto em
que haja filhos menores, nada garante que, para os mesmos, a aludida aplicação
analógica seja um imperativo constitucional.
Nos
termos do artigo 283.º, n.º 1, do texto constitucional, assiste ao Provedor de
Justiça legitimidade para requerer a apreciação e verificação do não
cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias
para tornar exequíveis as normas constitucionais.
(…)
uma inconstitucionalidade por omissão só é verificável, quando existir em
concreto uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador
que este se abstenha de satisfazer (cfr., sobre este tema, Gomes Canotilho, Constituição
Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982,
pp. 325 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º
vol., p. 549, e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo
II, 2.ª ed., Coimbra, 1983, pp. 393 e segs.).
Ora, à
luz das considerações anteriores, não pode dizer-se que a medida legislativa reclamada
pelo Provedor de Justiça decorra de um específico e concreto dever
de legislar imposto pela Constituição, em termos de o seu incumprimento gerar
uma inconstitucionalidade por omissão.
A
admitir-se a necessidade dessa medida, decorreria ela do dever geral que
impende sobre os órgão de soberania com competência legislativa de satisfazer
as necessidades «gerais» de legislação sentidas pela comunidade.
Com
efeito, o artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, prescreve que os filhos nascidos
fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer
discriminação, proibindo, simultaneamente, a edição de normas contrárias a esse
princípio.
Não
pode porém sustentar-se que, naquele preceito, se contenha uma imposição
concreta dirigida ao legislador em termos de este se encontrar
constitucionalmente obrigado, sob pena de omissão legislativa, a emitir uma
norma do tipo daquela que vem defendida pelo requerente.
A tudo
isto acresce que, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, do assento de 23 de abril de 1987, nos termos que atrás se definiram,
imporá que o princípio constitucional da não discriminação dos filhos haja
de ser obrigatoriamente aplicado, em termos de o «interesse dos
filhos» na atribuição do direito ao arrendamento a que se reportam as normas
dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, quando erigido
em critério relevante de atribuição daquele direito, haver de ser respeitado
tanto no caso dos filhos nascidos do casamento como no caso
dos filhos nascidos de uniões de facto.
E
assim sendo, não se verifica aqui, a necessidade de qualquer intervenção do
legislador ordinário dirigida ao preenchimento de uma omissão legislativa que,
em bom rigor, não existe».
3.6. “Lugares
paralelos”
No âmbito do processo
de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, referido supra no ponto 3.1., o Tribunal Constitucional, se
não conhecer do pedido ou não julgar verificado o incumprimento da Constituição
por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as
normas constitucionais, mas verificar que a questão colocada se reconduz a
outras situações de inconstitucionalidade que se revelem de “natureza análoga”
às de inconstitucionalidade por omissão
[99]
,
não pode, nem oficiosamente nem a requerimento, utilizar o processo para
apreciar e decidir essas questões, ainda que estejam em causa direitos ou
liberdades fundamentais.
Porém, em processos
de fiscalização de inconstitucionalidade por acção
[100]
,
nos quais adquirem maior relevância os processos de fiscalização concreta de
inconstitucionalidade, em que estão em causa recursos de decisões
jurisdicionais, seja com fundamento em recusa de aplicação de normas por
inconstitucionalidade (artigo 280.º n.º 1, alínea a), da Constituição), seja por
terem sido aplicadas normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela parte
recorrente durante o processo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b)), ou, ainda, por terem aplicado
norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional
(artigo 280.º, n.º 5 da Constituição)
[101]
,
este aprecia e decide questões colocadas pelas partes
[102]
,
que podem revelar casos de inconstitucionalidade “análogos” a situações de
inconstitucionalidade por omissão, em que está em causa a violação de direitos
ou liberdades fundamentais.
Constituem exemplos
destas situações, os casos em que uma nova lei vem revogar a lei até aí vigente
que tornava exequíveis as normas constitucionais, os casos em que a
inconstitucionalidade das normas deriva da falta ou insuficiente concretização
do sistema legal vigente e os casos em que a inconstitucionalidade resulta de a
norma legal não prever na sua regulação determinadas situações ou prever
determinados casos e não outros que se consideram “análogos”, como se
especificará no ponto 4.7.
[103]
.
Nos processos de
fiscalização concreta de constitucionalidade, verificados que estejam os
pressupostos processuais do tipo de recurso em causa, o facto de as partes
invocarem, erradamente, que as normas, segmentos normativos ou interpretações
normativas em apreciação enfermam de inconstitucionalidade por omissão não
impede que o Tribunal Constitucional direccione a sua apreciação para os
concretos vícios de inconstitucionalidade por acção e os declare, de que é
exemplo o Acórdão n.º 47/2007, que se referirá no ponto 4.7., e o Tribunal não está vinculado
a apreciar a questão unicamente face ao parâmetro constitucional invocado pelo
recorrente como tendo sido violado.
4. Apreciação e
verificação das omissões legislativas inconstitucionais
4.1.
Especificidades da apreciação da inconstitucionalidade por omissão
Como decorre das
considerações anteriores, sempre que existir uma imposição constitucional de
legiferação, suportada por uma norma suficientemente densificada quanto ao seu
sentido e alcance, no âmbito da qual a omissão da necessária medida legislativa
origina uma situação de concreta e específica violação, por inexequibilidade da
norma constitucional, poderá o Tribunal, a requerimento das instâncias com
legitimidade para tal, apreciar e verificar o não cumprimento da Lei
Fundamental por omissão dessa medida legislativa.
A “investigação e
análise” da omissão legislativa é feita com base nesse pressuposto, podendo os
respectivos processos de fiscalização dizer respeito a qualquer “matéria” em
relação à qual a Constituição imponha, nos termos referidos, a prolação de
medidas legislativas “necessárias” à exequibilidade das suas normas e, nesse
âmbito, a actividade desenvolvida pelo Tribunal não apresenta qualquer aspecto
diferenciador determinado pela natureza da matéria jurídica envolvida no pedido
de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.
Daqui resultam alguns
traços caracterizadores do controlo da “inconstitucionalidade por omissão”.
Por um lado, esse
controlo fica excluído do âmbito material da maioria dos recursos onde o
Tribunal intervém na sequência de uma decisão judicial – os processos de
fiscalização concreta –, não cabendo ao Tribunal apreciar os problemas de
omissão legislativa que surjam ao nível da resolução judicial dos problemas
jurídicos concretos – cf. pontos 3.6. e 4.7..
Por outro lado,
trata-se de um recurso cujo objecto se esgota na apreciação e verificação do
incumprimento da norma normarum resultante de um concreto dever que o texto fundamental faz
recair sobre as instâncias legiferantes competentes.
No entanto, apesar
destes dados, subsistem alguns traços característicos da intervenção do
Tribunal nesta sede, os quais podem ser facilmente apreendidos a partir da
consideração dos casos onde foi sindicada a omissão de medidas legislativas e
que dizem respeito ao critério seguido no controlo de omissões legislativas
impostas por “direitos, liberdades e garantias” e por “direitos económicos,
sociais e culturais” e à admissibilidade e relevância de omissões legislativas
parciais.
Assim, a partir da
consideração das hipóteses em que o pedido de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão contendia com a exequibilidade de direitos
fundamentais, importa notar que a maioria dos casos colocados à apreciação do
Tribunal incidiu sobre “direitos, liberdades e garantias” (cf. Acórdãos n.ºs
182/89, 359/91, 638/95), cuja aplicabilidade imediata (artigo 18.º, n.º 1, da
Constituição) estava prejudicada pela inexistência de norma legal ordenadora,
concretizadora ou conformadora do direito em causa, por o seu exercício
“pressupo[r] necessariamente uma estrutura organizatório-institucional mais ou
menos complexa, que o legislador ainda não edificou” (Acórdão n.º 90/84).
Assim sucedeu no caso
subjacente ao Acórdão n.º 182/89 – no qual estava em causa a omissão da
medida legislativa prevista no artigo 35.º, n.º 4, da Constituição (“A lei
define o conceito de dados pessoais para efeitos de registo informático”),
necessária para tornar plenamente exequível a garantia constante do n.º 2 do
mesmo artigo (“São proibidos o acesso de terceiros a ficheiros com dados
pessoais e a respectiva interconexão, bem como os fluxos de dados
transfronteiras, salvo em casos excepcionais previstos na lei”). Como se
sublinhou nesse aresto, a omissão legislativa censurada resultava da
inexistência de norma legal que definisse o conceito de dados pessoais de modo
a conferir eficácia à proibição imposta no n.º 2 do referido artigo, tendo o
Tribunal considerado necessária uma “mediação legislativa ou interpositio legislatoris” que garantisse esse efeito.
Já no Acórdão n.º
351/91, o Tribunal apreciou e decidiu um pedido do Provedor de Justiça onde se
requeria, a mais da fiscalização abstracta sucessiva do Assento do Supremo
Tribunal de Justiça, de 23 de abril de 1987 (“as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do
artigo 1110.º do Código Civil [transmissão da posição de arrendatário em caso
de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens] não são aplicáveis às
uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores”), a fiscalização da
“inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente
determine que as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil são
aplicáveis, com as necessárias adaptações, às uniões de facto nos casos em que
há filhos menores”.
Nesse aresto, o
Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do
Assento do Supremo Tribunal de Justiça, por violação do princípio da não
discriminação dos filhos, vertido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição (“os
filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de
qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar
designações discriminatórias relativas à filiação”), mas deu por não verificada
a inconstitucionalidade por omissão entendendo que o referido preceito
constitucional não continha “uma imposição concreta dirigida ao legislador em
termos de este se encontrar constitucionalmente obrigado, sob pena de omissão
legislativa, a emitir uma norma do tipo daquela que vem definida pelo
requerente”.
Por fim, no Acórdão
n.º 638/95 foi analisado o pedido do Provedor de Justiça que requereu ao
Tribunal Constitucional a apreciação e verificação do não cumprimento da
Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar
exequível a norma do artigo 52.º, n.º 3, na qual se consagra o direito de acção
popular (“é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa
dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos
previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou
a perseguição de infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e
da qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de
requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização”). O Tribunal
deu por não verificada a inconstitucionalidade por omissão em virtude de,
posteriormente ao pedido, ter sido promulgada uma lei (Lei n.º 83/95, de 31 de
agosto) que continha, no juízo do Tribunal, “uma disciplina global, integrada e
tanto quanto possível completa do ‘direito de acção popular’ consagrado no
artigo 52.º, n.º 3, da Constituição”.
Apenas numa ocasião
foi o Tribunal confrontado com um pedido de inconstitucionalidade por omissão
envolvendo um direito constante do catálogo dos “direitos económicos, sociais e
culturais” (Acórdão n.º 474/02), não tendo feito qualquer distinção em termos
de os excluir da análise dos casos de omissão legislativa.
Nesse Acórdão, o
Tribunal decidiu um pedido do Provedor de Justiça para que fosse apreciada e
verificada a “inconstitucionalidade resultante da falta das medidas
legislativas necessárias para conferir plena exequibilidade, no que aos
trabalhadores da função pública diz respeito, à norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei
Fundamental” (no qual se dispõe: “[1.] todos os trabalhadores, sem distinção de
idade, sexo, raça, cidadania, religião, convicções políticas ou ideológicas,
têm direito: [e)]
à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de
desemprego”). Neste caso, o Tribunal, concluindo pela existência de uma omissão
parcial, decidiu dar por verificado o não cumprimento das medidas legislativas
necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da
Constituição.
O critério seguido
pelo Tribunal foi o de considerar, independentemente da natureza do direito
fundamental – e da respectiva força jurídica –, se a norma
constitucional “possui as características pressupostas pela verificação da
existência de uma inconstitucionalidade por omissão, ainda que tal direito seja
um direito social e não deva ser tido como análogo aos direitos, liberdades e
garantias” (Acórdão
n.º 474/02).
Quanto ao segundo
aspecto atrás referido, importa começar por notar que, na maioria dos casos
decididos, o Tribunal foi confrontado com uma situação de total silêncio
legislativo perante as concretas imposições constitucionais que estiveram na
origem do pedido de fiscalização.
Cf., além dos citados
Acórdãos n.ºs 182/89 e 638/95, o Acórdão n.º 276/89 – onde o Tribunal
ponderou um pedido de fiscalização do Provedor de Justiça relativo à omissão
das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o artigo 120.º, n.º
3, da Constituição (“a lei determina os crimes de responsabilidade dos
titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos
efeitos”); o Acórdão n.º 36/90 – onde foi pedido ao Tribunal, também pelo
Provedor de Justiça, que fosse apreciado e verificado o não cumprimento do
artigo 241.º, n.º 3, da Constituição (“os órgãos das autarquias locais podem
efectuar consultas directas aos cidadãos eleitores recenseados na respectiva
área, por voto secreto, sobre matérias incluídas na sua competência exclusiva,
nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer”); e o Acórdão n.º
424/01 – que decidiu um pedido do Provedor de Justiça para que fosse
apreciada e verificada a omissão das medidas legislativas necessárias para
tornar exequível a norma do artigo 239.º, n.º 4, da Constituição (“as
candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais podem ser
apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por
grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei”).
Por seu turno, a
omissão de medidas legislativas a partir da “incompletude” de determinado
regime legal ou normativo foi questionada em dois casos.
O primeiro deles foi
decidido pelo referido Acórdão n.º 351/91, no qual o Tribunal afastou a
existência de uma inconstitucionalidade por omissão.
No segundo caso,
resolvido pelo Acórdão n.º 474/02, o Tribunal, apesar de considerar o facto de
não existir consenso doutrinal e jurisprudencial “sobre a questão de saber
se quando ocorre uma violação do princípio da igualdade, em virtude de uma
imperfeita ou incompleta concretização de uma norma constitucional impositiva
de legiferação, de tal modo que se cria uma situação discriminatória entre os
seus destinatários, existe uma inconstitucionalidade por acção, uma
inconstitucionalidade por omissão ou eventualmente ambas” (Acórdão n.º 474/02), concluiu
pela existência de uma omissão parcial, decidiu dar por verificado o não
cumprimento das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o
direito previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.
Impõe-se também uma
observação quanto aos casos relativos à “organização do poder político”,
dirimidos pelos Acórdãos n.ºs 276/89, 36/90 e 424/01, para dar conta de que em
todos eles o legislador acabou por satisfazer, ainda antes da decisão do
Tribunal, a necessidade de regulamentação susceptível de conferir
exequibilidade às normas constitucionais.
Por fim, explicitados
os casos em que o Tribunal Constitucional se pronunciou em sede de fiscalização
da inconstitucionalidade por omissão, resta apenas salientar que o Tribunal tem
tomado conhecimento, no âmbito de recursos de fiscalização concreta da
constitucionalidade, de questões próximas ou análogas aos problemas levantados
por omissões legislativas. Desse assunto tratar-se-á infra no ponto 4.7..
4.2. Critério da
determinação da existência da inconstitucionalidade por omissão
No que diz respeito
aos critérios que presidem à determinação da existência de uma omissão
legislativa susceptível de censura constitucional, importa começar por notar que
as omissões relevantes em sede do processo de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão são aquelas que se traduzem no “não
cumprimento de imposições constitucionais em sentido estrito, ou seja, no não
cumprimento de normas que, de forma permanente e concreta, vinculam o
legislador à adopção de medidas legislativas concretizadoras da constituição”
(cf. Acórdão n.º 474/02).
Em conformidade com
esse entendimento, a verificação de uma omissão legislativa exige a existência,
no plano constitucional, de “uma concreta e específica imposição legiferante,
constante de uma norma com um grau de precisão suficientemente densificado”
(Acórdão n.º 474/02), ou seja, que exista “em concreto uma específica
incumbência dirigida ao legislador que este se abstenha de satisfazer” (Acórdão
n.º 359/91), imposição constitucional essa definida claramente no seu sentido e
alcance.
De facto, de acordo
com o critério seguido pelo Tribunal Constitucional, não está aqui em causa uma
fiscalização do cumprimento do “dever geral de legislar” que impende sobre os
órgãos de soberania com atribuições legiferantes destinado a “acudir às
necessidades ‘gerais’ da legislação que se façam sentir na comunidade jurídica”
e, bem assim, dos resultados decorrentes do exercício desse dever, mas sim uma
sindicância que visa apurar o cumprimento das injunções constitucionais que
estabelecem “uma específica e concreta incumbência ou encargo constitucional”,
“claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador
qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir” (cf.
Acórdão n.º 276/89).
Em síntese, pode
dizer-se, como se afirmou no Acórdão n.º 509/02, que a inconstitucionalidade
por omissão surge quando a “Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente
precisa e concreta, de tal sorte que seja possível determinar, com segurança,
quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade”.
Em todo o caso, o
Tribunal afastou a existência do não cumprimento da Constituição por omissão
legislativa quando, apesar de não existir um regime legal em vigor, exista uma
iniciativa do órgão legislativo no sentido de cumprir a imposição
constitucional. Nestas circunstâncias, retratadas no âmbito do Acórdão n.º
36/90, entendeu o Tribunal que “se pode duvidar-se de que a apresentação de
projecto ou proposta de lei tenha, só por si, a virtualidade de afastar a
existência de omissão para efeito de declaração de inconstitucionalidade, a
aprovação, embora só na generalidade, de [...] projecto ou proposta [de lei] já
deverá considerar-se, em regra, suficiente para tal efeito”.
Como se mencionou, o
objecto destes recursos consiste na fiscalização do não cumprimento da
Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias à exequibilidade das normas
constitucionais. A menção a medidas legislativas deve ser interpretada no sentido de
abranger os actos legislativos das instâncias competentes (Assembleia da
República, Governo e Assembleias Legislativas das regiões autónomas), tal como
os mesmos vêm configurados constitucionalmente.
Porém, ainda que o
problema não tenha sido tratado em qualquer dos arestos mencionados, afigura-se
não ser de excluir, em absoluto, que o Tribunal, para aferir da existência de
um problema de omissão legislativa, possa ter em conta ou relevar actos de
conteúdo normativo que versem sobre a matéria em apreciação.
O Tribunal
Constitucional pode avaliar a omissão legislativa decorrente da revogação de
leis que davam exequibilidade a normas constitucionais, sem que essa revogação
fosse acompanhada da emissão de uma outra lei susceptível de dar resposta à
imposição constitucional.
Porém, nestes casos,
o Tribunal Constitucional tem entendido que esse facto consubstancia uma
verdadeira inconstitucionalidade por acção, susceptível de ser conhecida nos
processos de fiscalização concreta da constitucionalidade. Bem ilustrativo
desse entendimento é a argumentação constante do Acórdão n.º 39/84, onde se
clarifica que “[quando] o Estado não dê a devida realização às tarefas
constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso poderá
ser objecto de censura constitucional, em sede de inconstitucionalidade por
omissão. Mas quando desfaz o que havia sido realizado para cumprir essa tarefa,
e com isso atinge a garantia de um direito fundamental, então a censura
constitucional já se coloca no plano da inconstitucionalidade por acção”,
imputada à lei revogatória.
Por fim, importa
ainda notar que, no âmbito da determinação de uma omissão legislativa, o
Tribunal Constitucional debruça-se essencialmente sobre a verificação dos
conteúdos normativos constitucionalmente exigidos não tendo competência para
pronunciar-se, nesta sede, sobre a aplicação prática que é feita de um dado
regime legal.
4.3. A metodologia
da determinação da inconstitucionalidade por omissão
Quanto à metodologia
subjacente à ponderação de uma omissão legislativa, o cerne da questão, atenta
a configuração do recurso de constitucionalidade em causa, passa pela
determinação do sentido jurídico-normativo do parâmetro constitucional em
causa, maxime no que diz respeito a saber se a norma constitucional estabelece, ou não, uma
imposição legiferante no sentido de justificar a verificação do não cumprimento
da Constituição, sendo esse esforço metodológico realizado, bem se vê, tendo em
conta – recte,
a partir – das medidas
legislativas consideradas omitidas.
A esse nível, pode
dizer-se que o Tribunal tem conferido um peso diferenciado aos “tradicionais”
elementos da interpretação.
Desde logo, quanto ao
elemento gramatical, importa salientar que o Tribunal Constitucional não tem
conferido a esse elemento interpretativo um peso determinante na avaliação das
imposições legiferantes cuja omissão seja censurável (cf. Acórdão n.º 182/89).
Assim, de acordo com as considerações tecidas do citado aresto, pode dizer-se
que não basta a existência uma mera remissão literal para “os termos da lei”, para que se dê por verificada a
existência de uma omissão legislativa inconstitucional.
Mais relevante, para
poder concluir-se que a norma constitucional traça uma imposição legiferante
com o sentido atrás exposto será a teleologia da norma, seja, num primeiro
momento, quanto à intencionalidade prática nela manifestada, seja,
posteriormente, na aferição da necessidade de medidas que a ponham em prática,
sendo essa teleologia compreendida tendo em atenção a ratio iuris determinante da norma (elemento
sistemático).
Também o elemento
histórico tem sido chamado à colação nas decisões do Tribunal, quer ao nível da
definição do critério subjacente à determinação do sentido da norma
constitucional (cf. Acórdão n.º 276/89), quer no que concerne à ponderação de
um dado regime legal (cf. Acórdão n.º 474/02).
Para além do exposto,
importa ainda referir que, naqueles casos em que o silêncio legislativo é quebrado
posteriormente ao pedido de fiscalização, mas antes da decisão do recurso, o
Tribunal tem-se preocupado em verificar se as medidas legislativas adoptadas
satisfazem, ou não, o desiderato constitucional (cf. Acórdãos n.ºs 276/89,
638/95 e 424/01).
Outro aspecto
metodológico relevante tem a ver com o facto de, perante uma omissão parcial, o
Tribunal perscrutar na delimitação legal existente o cumprimento ou o
incumprimento da imposição constitucional.
Por fim, ao contrário
do que sucede no âmbito dos demais recursos decididos pelo Tribunal
Constitucional, não é comum encontrar nas decisões proferidas nesta sede
referências de direito comparado e a casos dirimidos em instâncias
internacionais.
4.4. Medidas
adicionais
Nos processos de
fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal Constitucional,
quando conclua pela inexistência de medidas legislativas necessárias à
exequibilidade de uma norma constitucional, limita-se a dar por verificado o
não cumprimento da Constituição, por omissão dessas medidas, sem adoptar
quaisquer medidas adicionais, mesmo no caso da omissão estar relacionada com a
tutela de direitos fundamentais.
4.5.
A omissão legislativa como elemento do exame de uma questão de
constitucionalidade
Como transparece das considerações supra tecidas, a arquitectura jurídico-funcional da fiscalização de uma
“inconstitucionalidade por omissão” resulta na criação de um instituto
processual de contornos bem delimitados que não esgota, num plano
extensivo-horizontal, a esfera de valoração judicativa de problemas de
constitucionalidade conexos com uma alegada incompletude de uma determinada
norma ou regime legal, a ponderar nos processos de fiscalização da
constitucionalidade por acção – como infra se verá, mais detalhadamente, no ponto 4.7..
Atenta
a configuração dos poderes de intervenção e das competências cognitivas
reservadas ao Tribunal Constitucional, cumpre assinalar, no entanto, que o
julgamento da questão de constitucionalidade passa apenas pela formulação de um
juízo de mérito relativamente à(s) norma(s) que constituem o objecto do
recurso, não lhe competindo definir o direito aplicável a um problema jurídico
concreto e, bem assim, proceder à integração de eventuais omissões legislativas
(relativas), ainda que a sua existência possa implicar um juízo de
desconformidade constitucional, podendo, no entanto, ser chamado, em sede de
fiscalização concreta da constitucionalidade, a sindicar os critérios
normativo-jurídicos jurisprudencialmente criados no seio de um processo
metodológico de integração de lacunas legais (ex vi o disposto no artigo 10.º, n.º 3, do
Código Civil) – como sucedeu no Acórdão n.º 264/98.
Em
todo o caso, não são raros os casos em que o Tribunal Constitucional, a
propósito de uma questão de constitucionalidade normativa em sede de
fiscalização da constitucionalidade por acção, é chamado a ponderar uma
situação de omissão de um determinado conteúdo legislativo susceptível de
inquinar a validade constitucional de uma norma.
Tal
realidade, apesar de assumir maior expressão no âmbito dos processos de
fiscalização concreta da constitucionalidade, pode ser prudencialmente
ponderada, em sede de fiscalização abstracta (preventiva ou sucessiva), sendo
que a projecção da decisão do Tribunal e da motivação que a suporta assume, em
face dessa diferenciada composição processual, uma geometria claramente
variável.
De
facto, não pode olvidar-se que nos processos de fiscalização concreta os
efeitos da decisão do Tribunal – e o alcance da respectiva motivação
– são directa e imediatamente dirigidos a um operador judicial incumbido
da concreta realização judicativo-decisória do direito, valendo, com força de
caso julgado, apenas no âmbito do concreto processo no qual se suscitou a
intervenção do Tribunal Constitucional.
Assim,
nessa sede, os fundamentos de um eventual juízo de inconstitucionalidade apenas
podem considerar-se mediatamente endereçados ao legislador, sendo
incontornável, no entanto, que a produção legiferante pátria não se mostra
indiferente ao teor dessas decisões e à motivação que as sustenta.
De
qualquer modo, estando em causa um juízo apenas vinculativo no domínio intra processual, é sobretudo ao nível dos critérios normativos de decisão que se
projecta o julgamento do Tribunal Constitucional, sendo que, um juízo de
antítese com a norma normarum, fundado na ponderação de uma
omissão legislativa relativa, acaba por envolver no excurso motivatório, como
contra-pólo negativo, o desenho de um critério jurídico passível de ser
mobilizado no caso concreto sem ruptura perante as injunções constitucionais.
Por
outro lado, mas no seio da mesma realidade processual, cumpre assinalar que, em
face do regime previsto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, o Tribunal pode mesmo
impor uma determinada interpretação da norma circunstancialmente em causa e “ordenar
que ela seja aplicada no processo com a interpretação que é conforme às
exigências constitucionais”, definindo, por esse meio, uma solução de
constitucionalidade totalmente “modeladora” do sentido da regulamentação
controvertida em juízo, comunicando, por essa via, aos operadores jurídicos o
modo como deve ser compreendido um determinado regime em conformidade com a
Constituição.
Já no que concerne aos processos de fiscalização
abstracta da constitucionalidade, pode entender-se que um juízo de
inconstitucionalidade fundado na incompletude de um dado regime constitui um indirizzo ao
autor da norma, traduzido na necessidade de corrigir a insuficiência assim
sancionada.
4.6.
Verificação da inconstitucionalidade por omissão
Nos termos do artigo
283.º, n.º 2, da Constituição, “quando o Tribunal Constitucional verificar a
existência de uma inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao
órgão legislativo competente”.
Esta formulação,
menos incisiva do que a constante do texto original da Constituição –
onde se consagrava a possibilidade do órgão de fiscalização da
constitucionalidade fazer recomendações aos órgãos legislativos – traduz a
ideia de que o Tribunal, ao dar conhecimento da existência de uma omissão
legislativa, está a realizar uma chamada de atenção para a necessidade da
omissão legislativa ser colmatada. Trata-se, no fundo, de “um apelo do Tribunal
Constitucional, com significado político e jurídico, aos órgãos competentes no
sentido de estes actuarem e emanarem actos legislativos necessários à
exequibilidade das leis constitucionais” (cf. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 7ª edição, p. 1039).
Como tal, da decisão
do Tribunal Constitucional não transparece qualquer critério
modelador-concretizador da regulamentação legal em falta, nem, tão-pouco, a
adopção de prazos recomendados para a adopção de alterações.
Por outro lado, não
havendo dúvida de que o Tribunal Constitucional na fundamentação da sua
decisão, ao explicitar os motivos que justificam a decisão de não cumprimento
da Constituição, acaba por determinar o sentido e a extensão da omissão
legislativa, daí não resulta a definição de qualquer critério normativo que
tenha a virtualidade de alterar ou suplantar, com efeitos práticos, a omissão
legislativa no que toca ao “desenvolvimento” do regime legal, maxime, quanto à sua aplicação pelas
instâncias jurisdicionais.
Deste modo, no que
tange especificamente com a decisão do Tribunal Constitucional neste âmbito,
designadamente quanto aos seus efeitos, temos que esta se esgota na verificação
do não cumprimento da Constituição de que se dá conhecimento ao órgão
legislativo competente, não se encontrando previstos quaisquer outros efeitos.
4.7. Apreciação de
“lugares paralelos” e decisões a esse propósito proferidas
Como se disse no
ponto 3.6., é
nos processos de fiscalização de inconstitucionalidade por acção, em particular
nos processos de fiscalização concreta, que incidem sobre recursos de decisões
proferidas por outros tribunais, que o Tribunal Constitucional aprecia as
“questões análogas”. Estas questões de constitucionalidade dizem respeito a
normas, segmentos ou dimensões normativas, desaplicadas pelas decisões sob
recurso com fundamento em inconstitucionalidade, ou que, não obstante a
acusação do vício de inconstitucionalidade pela parte recorrente, foram
aplicadas pela decisão judicial como ratio decidendi, e constituem o objecto do
recurso de constitucionalidade.
No Acórdão n.º
47/2006
[104]
[105]
o Tribunal Constitucional teve que apreciar se ocorria ou não uma situação
típica de inconstitucionalidade por omissão. Estava em causa o recurso de uma decisão de desaplicação normativa efectuada
pelo Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade, em
que o Tribunal apreciou a inconstitucionalidade de normas revogatórias de
normas que consagravam o direito de participação de representantes dos
trabalhadores nos órgãos sociais das empresas pertencentes ao sector público,
normas estas que tornavam exequíveis as normas constitucionais que previam esse
direito.
Entendeu
o Tribunal que tal situação não consubstanciava um caso de inconstitucionalidade
por omissão (como os recorrentes invocavam), mas sim de inconstitucionalidade
por acção, em virtude de não existir a omissão de medidas
legislativas para tornar exequível a participação de representantes dos
trabalhadores nos órgãos sociais da empresa em causa, mas antes a publicação de
legislação revogatória de leis que já consagravam essa participação.
A este respeito
escreveu-se, citando Jorge Pereira da Silva:
«“De facto, não há
grandes dúvidas de que a revogação integral de uma lei constitucionalmente
devida acarreta a inconstitucionalidade por acção da própria lei revogatória. É
certo que esta lei só enferma de tal desvalor na medida em que, fazendo
renascer uma situação de incumprimento de um dever específico de actuação
legislativa, está na origem de uma inconstitucionalidade por omissão. Por
outras palavras, embora tenha sido a lei revogatória a desencadear uma situação
de vazio normativo constitucionalmente inadmissível, do ponto de vista dos
valores jurídicos negativos tudo se passa em sentido inverso, assumindo a
inconstitucionalidade da lei revogatória (inconstitucionalidade por acção)
natureza consequente em relação à referida situação de vazio normativo
(inconstitucionalidade por omissão). No entanto, é igualmente verdade que, na
situação em análise, o legislador não está apenas a ‘não fazer algo’ imposto
pela Constituição, como é próprio das omissões legislativas. O legislador está
antes a ‘desfazer’ e, mais precisamente, está a ‘desfazer algo’ que era e é
prescrito pela Constituição. Por isso, a lei revogatória, que consubstancia o
acto de desfazer, não é fiscalizável (enquanto geradora de uma inconstitucionalidade)
por omissão, mas sim por via de acção” (Dever de legislar e protecção
jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa,
Universidade Católica, 2003, p. 245 e ss., especialmente pp. 282 e ss. e 286).»
Assim, decidiu-se
neste aresto julgar inconstitucionais tais
normas revogatórias, por ofensa dos direitos de participação dos trabalhadores
nos órgãos sociais das empresas públicas, consagrados nos artigos 54.º, n.º 5,
alínea f), e 89.º da
Constituição da República Portuguesa.
O
Tribunal Constitucional também já apreciou casos em que se discutia a
inconstitucionalidade de normas em que era invocada falta de habilitação
legal suficiente ou falta de densidade normativa suficiente do quadro
habilitante, em matéria de restrição de direitos fundamentais.
Assim,
no recente Acórdão n.º 155/2007
[106]
,
o Tribunal Constitucional teve que apreciar, além do mais, da conformidade com
a Constituição da norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a
colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do
seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa
em colaborar ou permitir tal colheita.
Colocou-se
a questão de saber se a Constituição autoriza a restrição dos direitos fundamentais que estão em
causa – à
integridade física, à liberdade geral de actuação, à reserva da
vida privada e à autodeterminação
informacional –, designadamente para a prossecução das
finalidades específicas do processo penal, tendo em conta que o artigo 18.º,
n.º 2, da Constituição refere, na parte que ora importa considerar, que “a lei só
pode restringir
os direitos, liberdades e garantias, nos casos expressamente previstos na
Constituição…”.
Concluiu-se, porém, que a Constituição autoriza, tendo em vista a
prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais
e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos
fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da
vida privada ou à autodeterminação informacional, citando-se o que se disse a este
respeito no Acórdão n.º 254/99
[107]
.
De seguida, o
Tribunal teve de averiguar se as normas contidas nos artigos 61.º, n.º 3, alínea d) e 172.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal e na
Lei n.º 45/2004, de 19 de agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias
médico-legais e forenses) constituem habilitação legal suficiente para as restrições que aqui
estão em causa ou se, pelo contrário, seria necessária uma outra lei
específica que
explicitamente autorizasse a recolha coactiva de substâncias biológicas e a sua
análise genética não consentida, ao mesmo tempo prescrevendo o respectivo
regime (i.e.,
estabelecendo os seus pressupostos materiais, formais, orgânicos e
procedimentais), tendo, no entanto, concluído que o problema não estava tanto
na falta de
habilitação legal (i.e., na
falta de norma que autorize a realização coactiva do exame - essa existe e
decorre da conjugação dos preceitos constantes do artigo 6.º da Lei n.º
45/2004, de 19 de agosto, e do artigo 172.º do Código de Processo Penal), mas,
eventualmente, na falta de densidade normativa suficiente desse quadro legal habilitante,
que considerou não ocorrer na situação em análise.
O fundamento da inconstitucionalidade
da norma em apreciação radicou no facto de o acto em causa contender, de forma
relevante, com direitos liberdades e garantias fundamentais e, por isso, a sua
admissibilidade no decurso da fase de inquérito depender da prévia autorização do
juiz de instrução, que, no caso em apreço, não ocorreu.
Porém,
a maioria dos casos típicos de apreciação de “questões análogas” ocorrem em
situações de discriminação, em que, além de outros princípios, estão em causa
situações de desigualdade material, de que se cita, a título de exemplo, os
Acórdãos n.ºs 690/98, 1221/96 e 359/91.
Assim,
no âmbito criminal, no Acórdão n.º 690/98, julgou-se inconstitucional, por violação do disposto no
artigo 20.º, n.º 1, conjugado com o artigo 67.º, n.º 1, da Constituição, a
norma constante do artigo 68.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal,
interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em
processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja
sobrevivido cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de
pessoas e bens, e não tenha descendentes.
No Acórdão n.º
1221/96, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por
violação do disposto no n.º 4 do artigo 36.º da Constituição da República,
a norma do n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, na interpretação segundo a
qual o regime nela previsto não é aplicável às situações de cessação de
união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores
nascidos dessa união.
Esta norma do Código
Civil previa a possibilidade de o tribunal, em caso de divórcio, dar de
arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da
família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando,
nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos
do casal.
Estava, pois, em
análise a determinação do universo de destinatários da norma, que no caso,
consistia em saber se era igualmente aplicável às situações de cessação de
união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos menores nascidos dessa
união.
Considerou-se que não
estava em causa determinar se o texto constitucional pode, ou não, ser
interpretado de forma a tornar extensível à união de facto o regime
jurídico do direito de família, ou se às situações de facto podem ser aplicadas
por via analógica as regras estabelecidas para o casamento, mas, sim, face
ao artigo 36.º, n.º 4, da Constituição
[108]
, cuidar de assegurar que o
interesse dos filhos menores nascidos fora do casamento não deixa de
integrar um dos vectores do critério a utilizar pelo julgador na determinação
da casa de morada da família
[109]
.
Neste aresto,
manteve-se a linha jurisprudencial anteriormente seguida no Acórdão n.º 359/91
[110]
,
por se entender haver uma correlação entre as situações contempladas nos n.ºs 2
e 3 do artigo 1110.º, do Código Civil – na interpretação que lhes foi
dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de abril de 1987, no
sentido de não serem aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos
menores –
e no n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, já que visam, aquelas, além do
mais, a destinação da casa de morada de família quando os cônjuges vivam em
casa arrendada, e, esta última, a destinação da casa de morada de família
pertença em comum ou própria de um dos cônjuges.
4.8. Instrumentos
técnico-jurídicos utilizados pelo Tribunal Constitucional para evitar lacunas
resultantes de decisões que consideram que uma norma viola a Constituição
Quanto aos “meios
técnico-legais utilizados pelo Tribunal Constitucional quando procura evitar
lacunas legais que possam advir da decisão por meio da qual se declarou que a
lei ou outro acto [normativo] violam a Constituição”, importa salientar que a
configuração constitucional e processual relativa aos recursos de fiscalização
da inconstitucionalidade por omissão não faz menção a qualquer instrumento
normativo específico mobilizável com esse objectivo.
No entanto, em lugar
paralelo – relativamente aos processos de fiscalização abstracta
sucessiva da constitucionalidade –, a Lei Fundamental confere ao Tribunal
alguns poderes ao nível da conformação dos efeitos da inconstitucionalidade.
De facto, enquanto
que no n.º 1 do artigo 282.º da CRP se dispõe que “a declaração de
inconstitucionalidade (...) produz efeitos desde a entrada em vigor da norma
declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela,
eventualmente, haja revogado”, no artigo 282.º, n.º 4, prevê-se a possibilidade
do Tribunal fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito
do que o assinalado, quando “a segurança jurídica, razões de equidade ou
interesse público de excepcional relevo (...) o exigirem”.
Ou seja, o Tribunal
pode restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade relativamente
ao efeito repristinatório daí decorrente e pode protelar o início da produção
dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, eliminando a eficácia ex
tunc decorrente
do referido regime-regra (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 140/02, 616/03 e 323/05, nos quais o Tribunal determinou que os efeitos da
declaração de inconstitucionalidade se produzissem apenas com a publicação dos
respectivos arestos).
Por fim, o Tribunal
pode também, nos termos do artigo 282.º, n.º 3, da CRP, excluir a ressalva de
caso julgado aí prevista quando a norma declarada inconstitucional respeitar a
matéria penal, disciplinar ou de ilícito do mera ordenação social e for de
conteúdo menos favorável ao arguido, circunstância essa que confere ao Tribunal
poderes de ampliar os efeitos normais da declaração de inconstitucionalidade (v. Acórdão n.º
232/04, que constitui, até à data, o único aresto em que o Tribunal lançou mão
do assinalado expediente, aí decidindo “fixar os efeitos da
inconstitucionalidade das normas [declaradas inconstitucionais] de modo que não
fiquem ressalvados os casos julgados relativamente a penas acessórias de
expulsão ainda não executadas aquando da publicação desta decisão”).
5. Efeitos da verificação de uma inconstitucionalidade
por omissão
5.1. Deveres resultantes para o legislador parlamentar
Nos termos do artigo 283.º, n.º 2, da CRP, a verificação
da existência de uma inconstitucionalidade por omissão obriga o Tribunal
Constitucional a dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente.
No âmbito do sistema de controlo da constitucionalidade
consagrado nacionalmente, os efeitos da verificação de uma
inconstitucionalidade por omissão não diferem em função do órgão legiferante
com competência para editar as medidas legislativas consideradas necessárias para
tornar exequível determinada norma constitucional.
Quer a competência para emanar a medida legislativa cuja
falta conduziu à verificação de uma inconstitucionalidade por omissão se
encontre constitucionalmente cometida à Assembleia da República, ao Governo ou
às Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os efeitos de tal
verificação esgotam-se no dever que sobre o Tribunal Constitucional impende de
dar conhecimento dessa omissão ao órgão com competência legiferante para editar
a norma necessária à superação da lacuna.
Quer isto significar que, ao invés do que sucede no
âmbito da fiscalização da inconstitucionalidade por acção, a decisão que
verifique uma inconstitucionalidade por omissão não dispõe de eficácia jurídica
concreta, sendo insusceptível de, por si mesma e enquanto tal, produzir
qualquer tipo de alteração na ordem jurídica.
Trata-se aqui de uma decorrência do tipo de controlo
cometido ao Tribunal Constitucional que, sendo estruturalmente negativo, não
contempla a faculdade de imposição positiva das iniciativas normativas
consideradas necessárias para suprir a omissão inconstitucional verificada no
âmbito do processo típico, nem, a jusante, o poder de sindicar ou reverter uma
eventual inércia do órgão legislativo destinatário da comunicação,
designadamente o de o substituir na edição da norma em falta se este não suprir
a omissão.
Tal solução, justificada com fundamento nos princípios
democrático e da separação de poderes entre os órgãos de soberania, conduz a
que a competência a exercer pelo Tribunal Constitucional no âmbito da
fiscalização do não cumprimento de imposições constitucionais legiferantes se
situe, quanto ao seu alcance possível, num nível puramente declarativo, sem
possibilidade de interferência autónoma, directa ou imediata sobre o sistema do
direito constituído.
Embora sem carácter vinculativo, os pronunciamentos do
Tribunal Constitucional que concluam pela existência de uma
inconstitucionalidade por omissão, na exacta medida em que são objecto, quer de
imperativa comunicação ao legislador destinatário da imposição constitucional
legiferante considerada incumprida, quer de obrigatória publicitação através da
respectiva publicação na I Série-A do Diário da República (artigo 119.º, n.º 1, alínea g), da
Constituição, e artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da
LTC), não deixam de constituir apelos à iniciativa do órgão com competência
para editar a norma tida por necessária à exequibilidade da Constituição,
apelos esses aos quais tende a reconhecer-se na doutrina um certo «significado
político e jurídico» (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 7ª edição, pág. 1039).
Vejamos mais de perto.
O Regimento da Assembleia da República é omisso no que
toca às consequências da comunicação da decisão que verifica a existência de
uma inconstitucionalidade por omissão legislativa, não prevendo ou impondo que
a tal comunicação se siga algum tipo de iniciativa parlamentar, designadamente
o agendamento para discussão na câmara da questão sobre que versou o pronunciamento
do Tribunal Constitucional.
Daqui se segue que a susceptibilidade da decisão que
declara a existência de uma inconstitucionalidade por omissão vir a
influenciar, de forma positiva e consequente, o processo legislativo se
encontra na directa dependência da iniciativa dos próprios grupos
parlamentares, surgindo a superação da lacuna tanto mais facilitada quanto
maior se revelar a viabilidade de formação de consensos no âmbito da área
temática carecida de intervenção legislativa mediadora por reconhecida
imposição constitucional.
Tal efectivo condicionalismo constituirá, de resto, um
princípio de explicação para o diferente modo como o legislador ordinário
reagiu nas duas únicas situações em que o Tribunal Constitucional verificou a
existência de uma inconstitucionalidade por omissão.
A primeira delas diz respeito ao Acórdão n.º 189/92, de
01 de fevereiro, através do qual o Tribunal Constitucional deu por verificado o
não cumprimento da Constituição por omissão da medida legislativa prevista no
n.º 4 do seu artigo 35.º, necessária para tornar exequível a garantia
constitucional do n.º 2 do mesmo artigo.
Proibindo o n.º 2 do artigo 35.º da Constituição, na
versão de 1982 (utilização da informática), o acesso de terceiros a ficheiros
com dados pessoais, salvo em casos excepcionais previstos na lei, e remetendo o
n.º 4 desse mesmo artigo para a lei ordinária a definição do conceito de dados
pessoais, o Tribunal Constituição considerou essencial à plena exequibilidade
daquela garantia uma mediação legislativa definidora do conceito de dados
pessoais.
Este Acórdão foi publicado no Diário da República de 03 de março de 1989, tendo-se-lhe seguido no Parlamento diversas
iniciativas tendentes a propiciar uma intervenção legislativa no âmbito da
defesa dos cidadãos contra o tratamento informático de dados pessoais.
Exemplificativo da pronta reacção do legislador registada
neste caso foi a apresentação e admissão, logo na sessão parlamentar de 05 de
abril de 1989, de um projecto de resolução (projecto de resolução n.º 24/V) com
vista à realização de um debate sobre a protecção dos direitos dos cidadãos
face à utilização da informática e ao tratamento automatizado de dados de
carácter pessoal.
Dada sequência ao processo legislativo na Assembleia da
República, a lei da protecção de dados pessoais face à informática (Lei n.º
10/91) viria a ser finalmente aprovada em 19 de fevereiro de 1991, tendo sido
promulgada pelo Presidente da República em 09 de abril de 1991 e publicada no Diário
da República de 29 de abril de 1991.
Diferentes foram, porém, as consequências que se
associaram ao segundo dos pronunciamentos do Tribunal Constitucional no âmbito
da verificação da existência de uma inconstitucionalidade por omissão.
Através do seu Acórdão n.º 474/2002, de 19 de novembro de
2002, o Tribunal Constitucional deu por verificado o não cumprimento da
Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar
exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1
do seu artigo 59.º, relativamente a trabalhadores da Administração Pública.
Considerou-se, então, que o direito à assistência
material previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea e),
da Constituição, tendo que assumir necessariamente a forma de uma prestação
específica, impunha ao legislador a previsão, também no que concerne aos
trabalhadores da Administração Pública, de uma prestação social para aqueles
que se encontrassem em situação de desemprego involuntário.
Este Acórdão foi publicado no Diário da República de 18 de dezembro de 2002.
Todavia, justamente por se tratar de uma área de
intervenção em que, em razão provável dos efeitos associados em matéria de
crescimento da despesa pública, o consenso parlamentar se encontra dificultado,
designadamente quanto aos aspectos relacionados com os termos e o contexto do
regime a aprovar, ainda hoje subsiste a lacuna legislativa denunciada pelo
Tribunal Constitucional.
Pese embora a persistência da omissão legislativa
considerada inconstitucional, a repercussão que no Parlamento não deixou de
conferir-se ao pronunciamento contido no Acórdão n.º 474/2002 é, ainda assim,
expressiva da influência política e jurídica que, não obstante os seus efeitos
meramente declarativos, as decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional
tendem a exercer sobre o processo legislativo e, em especial, sobre a concreta
prestação dos seus agentes concretizadores.
Com efeito, por iniciativa do grupo parlamentar do
Partido Comunista Português, aos 20 de fevereiro de 2003 deu entrada na
Assembleia um projecto de lei para atribuição do direito a subsídio de
desemprego ao pessoal docente e investigador contratado por instituições do
ensino superior e de investigação públicas (projecto de lei n.º 234/IX).
Discutido e votado em reunião plenária de 02 de outubro
de 2003, tal projecto viria, porém, a ser rejeitado com os votos contra dos
Deputados dos grupos parlamentares que integravam a coligação de apoio ao
Governo então em funções.
Esta iniciativa legislativa viria a ser repetida na
legislatura seguinte (X Legislatura), tendo-lhe correspondido a apresentação do
projecto de lei n.º 159/X, uma vez mais da autoria do grupo parlamentar do
Partido Comunista Português.
Dando expressão ao renovado objectivo de atribuição do
direito a subsídio de desemprego ao pessoal docente e investigador contratado
por instituições do ensino superior e de investigação públicas, este projecto
de lei, discutido e votado em reunião plenária de 08 de fevereiro de 2007,
viria a ser aí rejeitado por se lhe terem oposto os Deputados do grupo
parlamentar que apoia o Governo presentemente em funções.
Nessa mesma sessão plenária foram igualmente rejeitados,
uma vez mais com os votos contra dos Deputados que integram o grupo parlamentar
que apoia o Governo, os projectos lei n.º 346/X/2 e n.º 348/X, ambos entrados
na Assembleia em 31 de janeiro de 2007, o primeiro por iniciativa do Bloco de
Esquerda e o segundo pela mão do Partido Popular (CDS/PP).
Ambos os projectos se destinavam a permitir a atribuição,
embora em termos não inteiramente coincidentes, do direito ao subsídio de
desemprego ao pessoal docente e investigador contratado por instituições de
ensino superior e de investigação públicas.
Apesar de as iniciativas legislativas tendentes à
superação da lacuna legislativa identificada no Acórdão n.º 474/2002 se não
haverem revelado até ao momento consequentes, a verdade, porém, é que o órgão
legislativo competente nunca dissentiu do pronunciamento contido naquele
aresto, nem por qualquer forma rejeitou a necessidade de lhe dar seguimento.
Demonstrativa disso mesmo é a circunstância de, no âmbito
da X Legislatura, mas desta feita por ocasião da discussão e votação, na
especialidade, do Orçamento do Estado para 2006 (proposta de lei n.º 40/X),
ocorrida na reunião plenária de 29 de novembro de 2005, o pronunciamento do
Tribunal Constitucional contido naquele aresto haver influenciado o debate
parlamentar no sentido em que, para além de aí expressamente relembrado,
conduziu a que pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares então presente fosse
justificado o atraso na mediação legislativa considerada necessária à execução
da Constituição, o que passou pelo anúncio da existência de documentos
preparatórios em discussão com os sindicatos tendo em vista a criação de um
quadro de protecção, estendido também à função pública, nas eventualidades de
doença e desemprego.
Pese embora a influência que nestes termos se pode
considerar exercida pelo pronunciamento do órgão fiscalizador, o certo é que a
persistente ausência de mediação legislativa conduziu já a que este caso fosse
designado por “caso de inconstitucionalidade por omissão agravada” (Jorge
Miranda ao Jornal Público, edição on-line de 07 de
fevereiro de 2007).
Em suma: ainda que sem eficácia constitutiva possível e
mesmo que prontamente se lhes não siga a aprovação da medida legislativa em
falta, as decisões de verificação de uma inconstitucionalidade por omissão
produzem sempre um efeito à distância – o de sinalizar institucionalmente
a existência de uma imposição constitucional legiferante por cumprir, não deixando
de conferir assim, no contexto do debate público, um certo tipo de legitimidade
às reivindicações que porventura vierem sendo realizadas pelo sector ou
sectores da sociedade mais prejudicados pela omissão legislativa, nem, em
última instância, de criar condições para uma eventual responsabilização, no
âmbito da discussão parlamentar, dos agentes a cuja inércia puder ser imputada
a persistência da omissão legislativa denunciada em acórdão.
5.2. Deveres resultantes para outros órgãos com
competência de produção normativa
Uma vez que, conforme começou por ser referido, a
previsão normativa dos efeitos produzíveis pela verificação de uma
inconstitucionalidade por omissão é una e indiferenciada, não há qualquer
particularidade de regime a assinalar em razão do órgão legiferante a quem
caiba a competência para editar a medida legislativa em falta, valendo tudo
quanto acima ficou dito quer essa competência se encontre cometida à Assembleia
da República, ao Governo ou às Assembleias Legislativas das regiões autónomas.
Conclusões
A Constituição da República Portuguesa prevê, no seu artigo 283.º, um processo específico destinado ao controlo do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais. Considerando, porém, o modo bastante restritivo como a lei e a jurisprudência constitucional concretizam os termos da sua admissibilidade, deve concluir-se que a sua importância é relativamente marginal. Para o demonstrar bastará evidenciar que, em cerca de 25 anos de existência do Tribunal Constitucional, apenas foram apresentados sete pedidos de fiscalização da constitucionalidade por omissão de legislar e, destes, apenas em duas situações o Tribunal Constitucional considerou efectivamente verificada uma situação de inconstitucionalidade.
No que se refere às consequências de uma tal decisão a Constituição apenas determina que o Tribunal Constitucional deve “dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente”. Nem a Lei do Tribunal Constitucional nem qualquer outro diploma, designadamente o Regimento da Assembleia da República, se referem ao modo como deve ser ultrapassada a identificada omissão de legislar, não prevendo ou impondo que a tal comunicação se siga qualquer tipo de iniciativa legislativa. Porém, como mais desenvolvidamente já se evidenciou, quer a imperativa comunicação ao órgão legislativo competente, quer a obrigatória publicitação da decisão através da respectiva publicação em Diário da República, constituem relevantes apelos à iniciativa do órgão com competência para editar a norma tida por necessária è exequibilidade da Constituição, aos quais tende a reconhecer-se um certo significado político e jurídico.
Pode, por outro lado, concluir-se que os mecanismos legais de que o Tribunal Constitucional dispõe para apreciar a inconstitucionalidade por omissão são suficientes. Para esta conclusão muito contribui o facto de, no sistema jurídico-constitucional português, o processo específico de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, a que nos temos vindo a referir, não esgotar o leque de possibilidades de que o Tribunal Constitucional dispõe para controlar situações de inconstitucionalidade por omissão. Como mais desenvolvidamente se demonstrou no ponto 4.7. do presente relatório, também no âmbito dos processos de fiscalização da inconstitucionalidade por acção o Tribunal frequentemente aprecia e controla situações muito próximas das tipicamente consideradas como de inconstitucionalidade por omissão, com efectiva influência das suas decisões no processo de criação do Direito.
ANEXO
[1]
No presente relatório, a menção à Constituição da República Portuguesa (ou,
abreviadamente, CRP), de 2 de abril de 1976, refere-se, salvo indicação em
contrário, à redacção resultante das alterações introduzidas pelas Leis
Constitucionais n.ºs 1/82, de 30 de setembro, 1/89, de 8 de julho, 1/92, de 25
de novembro, 1/97, de 20 de setembro, 1/2001, de 12 de dezembro, 1/2004, de 24
de julho e 1/2005, de 12 de agosto.
É ainda utilizada, no que respeita à Lei
sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, a
abreviatura LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na
redacção resultante das alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 143/85, de 26
de novembro, 85/89, de 7 de setembro, 88/95, de 1 de setembro e 13-A/98, de 26
de fevereiro). Em
Anexo a este Relatório, apresenta-se o Acórdão nº 474/2002, do Tribunal
Constitucional.
Os Acórdãos do Tribunal Constitucional português citados estão disponíveis no endereço electrónico www.tribunalconstitucional.pt.
[2]
Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e
Teoria Geral. Uma perspectiva luso-brasileira, Coimbra, 1995, p. 425.
[3]
J. Baptista Machado, Introdução ao direito e
ao discurso legitimador,
Coimbra, 1990, pp. 192-3.
[4]
No plano da teoria geral
vejam-se Oliveira Ascensão, ob.
cit., p. 427, J. Baptista Machado, ob. cit., p. 194 e F. J. Pinto Bronze, Lições de Introdução ao
Direito,
Coimbra, 2002, pp. 881-2.
No plano jurídico-constitucional, vejam-se J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional
e Teoria da Constituição,
7ª edição, Almedina, p. 1235, e Jorge
Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, vol. I, Coimbra, 2005, p. 668.
[5]
Considera demasiado redutora
esta concepção de lacuna jurídica, Castanheira Neves. A propósito do conceito
adoptado pela generalidade da doutrina, o autor critica a “insistente
fidelidade aos postulados ideológicos do positivismo jurídico e ao seu
legalismo – pois não só se continua a imputar ao legislador legal a plena
titularidade e disponibilidade (ainda que potencial) sobre o mundo jurídico,
como também apenas pela extensão (se não já explícita, pelo menos implícita) do
ordenamento positivo-legal se traçam os limites do próprio direito. (…)
subsistem contra este entendimento das lacunas as exigências da vida jurídica
concreto-real, com a historicidade que lhe é essencial e os imperativos do
próprio cumprimento da função da validade normativa específica do direito, ao
serviço da qual não pode deixar de estar também a lei e o seu prescrito sistema
positivo”. Cfr. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 216-7.
[6]
Cfr. J. Baptista Machado, ob. cit., pp. 194-9.
[7]
Oliveira
Ascensão, ob. cit.,
p. 428.
[8]
Oliveira
Ascensão, ob. cit.,
pp. 429-30.
[9]
Cfr. F.J. Pinto Bronze, ob. cit., p. 883.
[10]
Ver J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.
[11]
Jorge
Miranda, Manual,
II, Coimbra, 2003, pp. 270 e 274.
[12]
Jorge
Bacelar Gouveia, Manual, cit., pp. 668-9.
[13]
Oliveira
Ascensão, ob. cit.,
pp. 426-7.
[14]
Ibidem.
[15]
Jorge
Bacelar Gouveia, Manual, cit., pp. 668-9.
[16]
A.
Castanheira Neves, ob. cit., pp. 207-8, e J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.
[17]
Ver A. Castanheira Neves, ob. cit., pp. 207-8 e 213.
[18]
A.
Castanheira Neves, ob. cit., pp. 216 e 224.
[19]
Jorge
Miranda, Manual,
II, cit., p. 270.
[20]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1236.
[21]
Neste preciso sentido, J.J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional,
cit., p. 1236.
[22]
Conceitos indeterminados
extraídos, respectivamente, dos artigos 9º, 81º, 103º e 121º CRP.
[23]
Cfr. Jorge Miranda, Manual, II, cit., p. 262.
[24]
José
Manuel Cardoso da Costa, “A jurisdição constitucional em Portugal”,
Coimbra, 1992, p. 67.
[25]
Em Portugal existe, à luz da
Constituição de 1976, um controlo “misto-complexo” (Gomes Canotilho). Assim,
prosseguindo com uma tradição que vem da Constituição de 1911 (primeira
constituição republicana), está consagrado o controlo concreto e difuso (de
matriz norte-americana), cabendo a todos os tribunais controlar a conformidade
constitucional das normas, não devendo aplicar aquelas que julgue
inconstitucionais (art. 204º CRP). Das decisões dos tribunais ordinários em
matéria de inconstitucionalidade poderá haver recurso para o Tribunal
Constitucional, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na Lei
Orgânica do Tribunal Constitucional. Para além deste controlo concreto e
difuso, existe ainda um controlo abstracto das normas, preventivo e sucessivo,
e o controlo da inconstitucionalidade por omissão, a cargo do Tribunal
Constitucional.
[26]
Jorge Miranda propõe, como meio
de revitalização deste tipo de controlo, a possibilidade de vir a admitir-se
uma segunda via de subida ao Tribunal Constitucional, difusa e concreta.
Pereira da Silva, por seu turno, manifesta a sua perplexidade pelo facto de o
problema das omissões legislativas se encontrar excluído do controlo concreto e
difuso. Como se verá mais adiante (vide infra ponto 4.7.), esta possibilidade, ainda
que não consagrada constitucionalmente, de certa forma já é uma realidade na
nossa prática jurisprudencial.
Ver Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra, 2001, p. 294, e Jorge Pereira da Silva, Dever de
legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas. Contributo
para uma Teoria da Inconstitucionalidade por Omissão, Lisboa, 2003, p. 17.
[27]
José
Manuel Cardoso da Costa, “A jurisdição”, cit., p. 32.
[28]
Neste exacto sentido, J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 15.
[29]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1033-35; Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade
por omissão”, in Estudos sobre a Constituição, 1º vol., Lisboa, 1977, pp. 341-2 e, do
mesmo autor, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Coimbra, 2001, p. 283; Jorge Bacelar Gouveia, Manual, cit., p. 671; Luís Nunes
de Almeida, “El Tribunal Constitucional y el contenido, vinculatoriedad
y efectos de sus decisiones”, in Revista de Estudios Politicos, nº 60-61, abril-setembro, 1988,
p. 867.
[30]
L.
Nunes de Almeida, “El Tribunal Constitucional”, cit., p. 865; Gomes Canotilho, Direito
Constitucional,
cit., pp. 1034-5 e 1172-3; Jorge Miranda,
“Inconstitucionalidade”, cit., pp. 333 e 335 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 287 e Manual, II, cit., pp. 244 e ss, em
especial a partir da p. 251; Vieira de
Andrade, ob. cit.,
pp. 381-2; Pereira da Silva, ob.
cit., p. 23.
[31]
Ver J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 14.
[32]
Neste preciso sentido, Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”,
cit., pp. 341-2 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 284, e J. C. Vieira
de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, Coimbra,
2001, p. 380.
[33]
Jorge
Miranda, Manual,
VI, cit., p. 287. Ver ainda, Manual, II, cit., pp. 255-6. Uma posição
próxima da de Jorge Miranda é a adoptada por J.
Pereira da Silva, ob. cit., pp. 31 e 33.
Cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 383; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 21-3.
[34]
J.J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada,
Coimbra, 1993, p. 1048.
[35]
Jorge
Miranda, Manual,
VI, cit., p. 285.
[36]
J.
Pereira da Silva, ob. cit., pp. 27.
[37]
J.J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047. Ver ainda J.J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional,
cit., p. 1033, e J. Pereira da Silva, ob. cit., pp.
11 e 58.
[38]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1033. Num sentido idêntico, Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 286; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 11-2.
[39]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1036-7, e J. Pereira da Silva, ob. cit., p. 11.
[40]
Ver J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047.
[41]
Como alertam Gomes Canotilho e
Vital Moreira (ob. cit.,
p. 1047), esta hipótese “só adquire autonomia quando as normas constitucionais
não se configurem, juridicamente, como ordens concretas de legislar ou como
imposições permanentes e concretas”.
[42]
J.J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1047 e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.
[43]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.
[44]
J.
Pereira da Silva, ob. cit., p. 59.
[45]
J.
Pereira da Silva, ob. cit., pp. 59 e 66.
[46]
Ver J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1047-48.
[47]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1037.
[48]
Cfr. J. C. Vieira de
Andrade, ob. cit.,
p. 382.
[49]
Jorge
Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 345-6 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., pp. 287-8.
[50]
Vide infra ponto 3.6..
[51]
Havendo quem utilize ou refira a
existência de uma diferente terminologia para identificar a mesma dicotomia.
Mais concretamente, fala-se em omissões absolutas e relativas. Na doutrina
nacional, veja-se José Manuel Cardoso da
Costa, “La justice constitutionnelle dans le cadre des pouvoirs de
l’État (Rapport Général)”, in Annuaire International de Justice
Constitutionnelle,
III, 1987, p. 22, e J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
cit., p. 1035.
[52]
Sobre a omissão parcial ver,
entre outros, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
cit., pp. 1035-6; Jorge Miranda, Manual, VI, cit., pp. 286 e ss..
[53]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1036. Ver ainda, Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 288.
[54]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1035.
[55]
Cfr. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade. Os
autores, os conteúdos e os efeitos da decisão da inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, p. 513.
[56]
Rui
Medeiros, ob. cit.,
p. 520.
[57]
Ver L. Nunes de Almeida,
“El Tribunal”, cit., p. 867, e, do mesmo autor, “Le Tribunal”, cit., pp. 202-3; J. M. Cardoso da Costa, “La
justice”, cit., p. 23; J.J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1050; Jorge Miranda, Manual, VI, cit., p. 289, e, do mesmo autor, Manual, II, cit., pp. 254-5; J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 382, nota 30; J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 17-8.
[58]
Vejam-se, a este propósito, os
pontos 3.5. e 4.2..
[59]
Jorge
Miranda, Manual,
VI, cit., p. 290.
[60]
Cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1048-9;
[61]
Ver Jorge Bacelar Gouveia, Anotação ao Acórdão nº 36/90 do
Tribunal Constitucional,
in O Direito,
Ano 122º, II (abril-junho), 1990, p. 423.
[62]
O artigo 146º (Competência como
garante do cumprimento da Constituição), entretanto revogado, dispunha o
seguinte: “Na qualidade de garante do cumprimento da Constituição, compete ao
Conselho da Revolução:
a) (…)
b) Velar pela emissão das medidas
necessárias ao cumprimento das normas constitucionais, podendo para o efeito
formular recomendações;
c) (…)”.
Por
sua vez, o artigo 279º (Inconstitucionalidade por omissão) dispunha nos
seguintes termos: “Quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão
das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais, o Conselho da Revolução poderá recomendar aos órgãos
legislativos competentes que as emitam em tempo razoável”.
[63]
Sobre o papel do Conselho da
Revolução enquanto órgão de controlo da constitucionalidade por omissão, ver Armindo Ribeiro Mendes, “El Consejo de
la Revolución y la Comisión Constitucional. El control de la constitucionalidad
de las leyes (1976-1983)”, in Revista de Estudios Politicos, nº 60-61, abril-setembro, 1988,
pp. 844 e 848 (este autor informa que o Conselho da Revolução usou
parcimoniosamente a sua faculdade de formular recomendações, apenas o tendo feito duas vezes durante
a vigência do texto constitucional originário: uma para recomendar à Assembleia
da República que emitisse as medidas legislativas necessárias para tornar
exequível a norma constitucional que proibia as organizações de ideologia
fascista, e a outra para recomendar ao governo que adoptasse as medidas
legislativas necessárias relativas ao trabalho doméstico. Mais informa o autor
que houve mais três iniciativas de fiscalização que, todavia, não deram lugar a
recomendações. Ver ainda J.J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1049, e José Manuel Cardoso da Costa, “El Tribunal
Constitucional português: origen histórico”, in Revista de Estudios
Politicos, nº
60-61, abril-setembro, 1988, p. 837.
[64]
Jorge
Miranda, “Inconstitucionalidade”, cit., pp. 351-2. Ver ainda, do mesmo
autor, Manual,
VI, cit., p. 280.
[65]
Mas não totalmente esquecida.
Assim, Pereira da Silva (ob. cit., p. 13) sustenta que o objectivo do apuramento da
desconformidade constitucional pressuposta na omissão legislativa “não é a
conduta omissiva em si mesma, mas a situação objectivamente registada na ordem
jurídica em consequência dessa conduta – o sentido normativo implícito
que se deduz do silêncio e que atenta contra a Constituição”.
[66]
Ver L. Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit., p. 876; Rui Medeiros, A decisão de
inconstitucionalidade. Os autores, os conteúdos e os efeitos da decisão da
inconstitucionalidade da lei,
Lisboa, 1999, pp. 494-5 e 514; J.J. Gomes
Canotilho, “A concretização da constituição pelo legislador e pelo
Tribunal Constitucional”, in Nos dez anos da Constituição, Lisboa, 1986, p. 353; J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob.
cit., pp.
1048-9; Jorge Miranda,
“Inconstitucionalidade”, cit., pp. 346 e 351 e, do mesmo autor, Manual, VI, cit., p. 283; Vital Moreira, “Princípio da maioria e
princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça
constitucional”, in Legitimidade e legitimação da Justiça Constitucional (Colóquio no 10º Aniversário do
Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993), Coimbra,
1995, pp. 195 e 197; José
Manuel Cardoso da Costa, “Algumas reflexões em torno da
justiça constitucional”, in Perspectivas do Direito no início do século XXI (Studia Iuridica –
Colloquia, nº 3), Coimbra, p. 121; J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 384.
[67]
Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 891.
[68]
Neste preciso sentido, Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p.
875.
[69]
Vital
Moreira, ob. cit.,
p. 196.
[70]
J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., pp. 1310-11, e Jorge Miranda, “Inconstitucionalidade”,
cit., p. 336. Perfilha ainda esta ideia Rui
Medeiros, ob. cit.,
p. 497.
[71]
Nunes de Almeida fala em
decisões de mero reconhecimento ou meramente verificativas (“El Tribunal”, cit,
pp. 875 e 882); Vital Moreira, ob.
cit., p. 197
(refere que as decisões de inconstitucionalidade por omissão são de «mero
reconhecimento» da inconstitucionalidade).
[72]
J.
M. Cardoso da Costa, “Algumas reflexões”, cit., p. 123 e, do mesmo
autor, “A jurisdição constitucional em Portugal”, cit., p. 62.
[73]
Salientam a eficácia meramente
declarativa das decisões proferidas em sede de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão, entre outros, Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 875.
[74]
Assim o entende Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p.
876.
[75]
J.J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1049, Vital Moreira, ob. cit., p. 197, e Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit, p. 882 e, do mesmo
autor, “Le Tribunal”, cit., p. 213.
[76]
Vital
Moreira, ob. cit.,
p. 198.
[77]
J.
M. Cardoso da Costa, “A jurisdição constitucional em Portugal”, cit., p.
62.
[78]
Cfr. Nunes de Almeida, “El Tribunal”, cit., p. 882 e, do mesmo
autor, “Le Tribunal”, cit., p. 209.
[79]
J.J.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 1049.
[80]
Cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 1049.
[81]
Vital
Moreira, ob. cit.,
pp. 197-8.
[82]
Controvertida na doutrina portuguesa tem sido
apenas a questão da sua relação com o direito da União Europeia. Sobre o tema
dispõe hoje expressamente o artigo 8º, nº 4, introduzido pela Lei
Constitucional nº 1/2004 (6ª revisão constitucional), nos termos do qual: “As
disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das
suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na
ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Trata-se, porém, de
questão sobre a qual o Tribunal Constitucional nunca foi (antes ou depois da
introdução na Constituição do preceito supra referido) expressamente chamado a pronunciar-se.
[83] Não apenas no sentido de que não podem, pelo seu conteúdo, contrariar princípios ou preceitos constitucionais, mas também no sentido de que hão-de ser praticados por quem, nos termos da Constituição, possui competência para o efeito e hão-de observar a forma e seguir o processo constitucionalmente previstos.
[84] Assim, nomeadamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 217
[85] Nas palavras de Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 1013-1014 entende-se por Constituição material “o conjunto de fins e valores constitutivos do princípio efectivo da unidade e permanência de um ordenamento jurídico (dimensão objectiva), e o conjunto de forças políticas e sociais (dimensão subjectiva) que exprimem esses fins ou valores, assegurando a estes a respectiva prossecução e concretização, algumas vezes para além da própria constituição escrita. Por sua vez Jorge Miranda (Manual, cit., p. 29) define-a como “o acervo de princípios fundamentais estruturantes e caracterizantes de cada Constituição em sentido material positivo; a manifestação directa e imediata de uma ideia de Direito que se impõe numa dada colectividade (seja pelo consentimento, seja pela adesão passiva); a resultante primária do exercício do poder constituinte material; e, em democracia, a expressão máxima da vontade popular livremente formada”.
[86]
Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, cit., pp. 1107-8.
[87] Jorge Miranda, Manual, cit., pp. 299-303.
[88] Ob. cit., pp. 302-303.
[89]
Assim, e independentemente
do seu carácter geral e abstracto, cabem dentro do conceito de norma, tal como
este vem sendo concretizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, não
apenas os actos legislativos (leis, decretos-lei e decretos legislativos
regionais), mas quaisquer outros actos normativos do poder público, tais como
regulamentos, provindos do Estado, de institutos públicos, de associações públicas
ou de entes públicos territoriais distintos do Estado, como sejam as regiões
autónomas ou as autarquias locais, desde que, como se refere no texto,
contenham uma regra de conduta para os particulares ou para a administração, um critério
de decisão para esta última ou para o juiz ou, em geral, um padrão de valoração de
comportamento.
Fora do conceito de norma ficam, para este efeito, os actos políticos, os actos
administrativos, as decisões judiciais e os actos jurídico-privados, tais como
os negócios jurídicos.
[90] Nos termos do qual compete especificamente ao Tribunal Constitucional a função de “administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”.
[91] Convirá aqui recordar que o sistema português de fiscalização concreta da constitucionalidade tem sido frequentemente designado como um “sistema misto”, que assenta num esquema de repartição de competências entre as diferentes instâncias e o Tribunal Constitucional. Não é, por um lado, um sistema, como o austríaco ou o alemão, onde, existindo também um Tribunal Constitucional, as instâncias não têm competência para se pronunciar sobre questões de constitucionalidade. Mas também não é, por outro lado, um sistema de judicial review, na medida em que as decisões dos tribunais da causa são recorríveis para um tribunal constitucional específico, exterior à jurisdição ordinária.
[92] Cf. mais recentemente, o Acórdão nº 474/2002, já disponível por via electrónica em www.tribunalconstitucional.pt, que refere a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional - e, já antes, da própria Comissão Constitucional - nesta matéria.
[93] Assim, designadamente, para além do já citado Acórdão nº 474/2002, também o Acórdão nº 276/89.
[94] Igualmente disponível no endereço electrónico supra citado.
[95] Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 1982, 332 e segs. e 481 e segs.
[96]
Jorge Miranda, Manual
de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora,
2001, 284 e segs.
[97] Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp 380 e segs.).
[98] Houve ainda um processo, iniciado no sistema anterior à criação do Tribunal Constitucional, e que para este veio a transitar, em que foi proferido o Acórdão n.º 9/83. Nesta decisão, o Tribunal decidiu não tomar conhecimento do pedido, formulado pelo Conselho da Revolução, e mandar arquivar um processo transitado da Comissão Constitucional em que era solicitado parecer sobre a eventual existência de inconstitucionalidade por omissão.
[99] Situações que não constituindo típicos casos de inconstitucionalidade por omissão originam inconstitucionalidades de normas ou interpretações normativas que são susceptíveis de revelar casos de natureza análoga.
[100] Abrange os processos de fiscalização preventiva (artigos 278º e 279º da Constituição e 57º a 61º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (LTC)), de fiscalização abstracta sucessiva (artigos 281º e 282º da Constituição e 62º a 66º da LTC) e de fiscalização concreta da constitucionalidade (artigos 280º da Constituição e 69º a 85º da LTC).
[101] Cf. ainda artigo 70º, nº 1, alíneas a), b), g) e h), da LTC.
[102] O Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela recorrerem (artigo 72º, nº1, alíneas a) e b), da LTC), em regra, as partes vencidas e os terceiros directamente prejudicados pela decisão.
[103] Quanto ao reflexo destes casos na doutrina ver supra ponto 1.2.6..
[104]
Neste
aresto o Tribunal Constitucional decidiu:
a)
Julgar inconstitucional o artigo 40º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de dezembro,
enquanto revoga os artigos do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de abril, que prevêem
a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais de empresas públicas, por
violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da Constituição da República Portuguesa;
b)
Julgar
inconstitucional o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 276/2000, de 10 de
novembro, enquanto aprova os novos
estatutos da SATA, S. A. e revoga os anteriores, na parte em que prevêem a
participação dos trabalhadores nos órgãos sociais desta empresa pública, por
violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da Constituição da República Portuguesa.
[105]
Este acórdão foi tirado por maioria, com 2 votos de vencido.
[106] Neste acórdão o Tribunal decidiu:
«i) Julgar inconstitucional, por violação do
disposto nos artigos n.ºs 25.º, 26.º e 32.º, nº 4, da Constituição, a norma
constante do artigo 172.º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita
coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil
genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em
colaborar ou permitir tal colheita;
ii) consequencialmente, julgar
inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, nº 4, da
Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2 alíneas a)
e c) e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de
considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e
valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na
alínea anterior.»
[107] “[…] Também o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar é consagrado à partida no nº 1 do artigo 25º da Constituição sem qualquer limite e, no entanto, o Tribunal Constitucional admitiu que em hipóteses de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (e, portanto, de conflito com o interesse na prossecução penal e com o princípio da verdade material) pode haver intercepção e gravação de comunicações telefónicas (Acórdão nº 7/87, Acórdãos cit., 9, pp. 7 ss., 35; cf., de modo semelhante, quanto ao uso, não consentido pelo visado, de fotografia como prova em processo de divórcio, o Acórdão nº 263/97, Diário da República, II Série, de 1-7-1997, pp. 7567, 7569). […] Também o direito de acesso a cargos públicos electivos (artigo 50º, nº 1 da Constituição) era, antes da revisão de 1989, consagrado sem limites à partida além dos que resultavam de outros preceitos constitucionais directamente para os magistrados judiciais (artigo 221º, nº 3, hoje 216º, nº 3) ou através de reservas de lei para os militares e agentes militarizados (artigo 270º) e para as eleições para a Assembleia da República (artigo 153º, hoje 150º). Mas nos acórdãos nºs 225/85 e 244/85 (Acórdãos cit., 6, pp.793 ss., 798-801 e pp. 211 ss., 217-228) o Tribunal admitiu restrições legais para os funcionários judiciais (em vista do interesse na separação e independência das funções autárquica e judicial) e para os funcionários e agentes da administração autárquica directa da mesma autarquia (em vista do interesse na independência e imparcialidade do poder local). Em ambos os casos as restrições expressas na Constituição ou resultantes das reservas de lei em certas matérias fundaram argumentos no sentido da admissibilidade de outras restrições, em hipóteses de conflito de direitos ou interesses constitucionalmente reconhecidos.[…]”
[108] O artigo 36º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Família, casamento e filiação”, determina no seu n.º 4 que: “Os filhos nascidos fora do casamento, não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação”.
[109]
Entendeu-se ainda neste aresto que não se podia
objectar que o artigo 1793º do Código Civil implica, na medida em que reportado
aos efeitos do divórcio, o status institucional adquirido pelo
casamento, porque a valorização meramente formal desse argumento operaria uma
discriminação reflexa quanto aos filhos nascidos fora do matrimónio,
pois o seu interesse na manutenção da residência familiar não poderia ser
atendido sempre que o poder paternal fosse atribuído ao progenitor não
proprietário da casa de morada da família.
[110] O acórdão n.º 359/91, de 9 de julho de 1991 (publicado no Diário da República, I Série, de 15 de outubro de 1991), tirado em plenário, por maioria, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de abril de 1987 (publicado no Diário da República, I Série, de 28 de maio de 1987), por força da violação do princípio da não discriminação dos filhos contido no artigo 36º, n.º 4, da Constituição.